quarta-feira, 2 de março de 2022

Martin Wolf*: Putin reacendeu velhos conflitos

Valor Econômico

Frequentemente as sanções são ineficazes. As impostas desta vez não serão

Ninguém sabe como isso vai terminar. Mas sabemos como tudo começou. Vladimir Putin montou um ataque não provocado a um país inocente. Ele cometeu o pior ato de agressão em solo europeu desde 1945 e justificou esse ato vil com mentiras ultrajantes. Ele também, no momento, uniu o Ocidente contra ele. Putin não é o primeiro tirano a confundir desejo de paz com covardia. Em vez disso, ele despertou a ira dos povos ocidentais. O resultado é uma série de sanções contra a Rússia tão impressionantes quanto justificadas.

Putin pode ser o homem mais perigoso que já viveu. Ele se dedica a restabelecer o império perdido da Rússia, indiferente ao destino de seu próprio povo e, acima de tudo, domina uma vasta força nuclear. Ainda assim a resistência, por mais arriscada que seja, é imperativa.

Este não é um conflito com o povo russo. Não podemos viver em paz e segurança com um vizinho desses. Esta invasão não pode continuar, uma vez que seu sucesso ameaçaria a todos nós. Estamos em um novo mundo. Precisamos entender isso e agir de acordo

Alguns insistirão que as ações de Putin são culpa do Ocidente e, acima de tudo, resultado de sua decisão de ampliar a Otan. Mas é o contrário. Putin nos lembrou por que países que conhecem melhor o domínio russo estavam desesperados pela expansão da Otan. Ele também demonstrou porque isso era necessário.

A Europa precisava de uma fronteira defendida entre a Rússia e suas antigas possessões. A tragédia da Ucrânia é ela estar do lado errado dessa linha. Ela não representa uma ameaça para a Rússia, a não ser a de querer ser livre; a Rússia representava uma ameaça a isso.

Frequentemente as sanções são ineficazes. As impostas desta vez não serão. Os Estados Unidos impuseram sanções ao mercado secundário de dívida soberana em 22 de fevereiro. A Alemanha suspendeu a homologação do controvertido gasoduto Nord Stream 2 no mesmo dia.

Em 24 de fevereiro, EUA, União Europeia (UE) e outros membros do G-7 limitaram a capacidade da Rússia de transacionar em moedas estrangeiras. E dois dias depois, vários bancos russos foram removidos do sistema de pagamentos Swift, um congelamento foi imposto aos ativos do Banco da Rússia e transações com o banco central foram proibidas.

Uma análise minuciosa pelo Institute for International Finance (IIF) resume tudo isso: “Esperamos que as sanções impostas nos últimos dias tenham um efeito dramático sobre o sistema financeiro da Rússia e o país como um todo”.

Uma grande parcela das reservas líquidas de US$ 630 bilhões do país será inutilizada. O banco central já precisou dobrar as taxas de juros. Há uma corrida aos bancos. Com exceção da energia, a economia ficará substancialmente isolada.

O sofrimento não recairá todo sobre a Rússia. Os custos do petróleo e do gás ficarão altos por mais tempo, agravando a pressão inflacionária global. Os preços dos alimentos também aumentarão. Se a Rússia cortar suas exportações de energia (a um grande custo para si mesma), a ruptura será ainda pior. O gás natural russo gera 9% da energia bruta disponível na zona do euro e na UE como um todo. Mas o inverno, a estação de maior necessidade, pelo menos está passando.

Além desses efeitos relativamente específicos, a combinação de guerra, ameaças nucleares e sanções econômicas aumenta muito as incertezas. Os bancos centrais terão ainda mais dificuldades para decidir como apertar a política monetária. O mesmo valerá para os governos que tentam amortecer o golpe dos choques energéticos.

No longo prazo, os efeitos econômicos seguirão a geopolítica. Se o resultado for uma divisão profunda e prolongada entre o Ocidente e um bloco centrado na China e na Rússia, divisões econômicas se seguirão. Todos tentariam reduzir sua dependência de parceiros contenciosos e não confiáveis. Num mundo desses, a política prevalece sobre a economia. No âmbito global, a economia seria reconfigurada. Mas em tempos de guerra, a política sempre prevalece sobre a economia. Ainda não sabemos como.

A Europa certamente é a que vai mudar mais. Um passo enorme foi dado pela Alemanha, com seu reconhecimento de que sua posição pós-Guerra Fria é agora insustentável. Ela precisa se tornar o coração de uma poderosa estrutura de segurança europeia capaz de se proteger contra uma Rússia revanchista. Isso terá de incluir um grande esforço para reduzir a dependência energética.

Tragicamente, a Europa precisa reconhecer que os EUA não serão um aliado confiável enquanto Donald Trump, que vê Putin como um “gênio”, comandar o Partido Republicano. O Reino Unido, por sua vez, precisa reconhecer que sempre será uma potência europeia. Ele precisa se comprometer mais com a defesa do continente e acima de tudo de seus aliados europeus do leste. Tudo isso exigirá resolução e dinheiro.

Nesse novo mundo, a posição da China será uma preocupação central. Sua liderança precisa entender que apoiar a Rússia é agora incompatível com as relações amigáveis com os países ocidentais. Muito pelo contrário, a China terá de fazer da segurança estratégica um imperativo primordial de sua política econômica.

Se a China decidir contar com um novo eixo de autoritários irredentistas contra o Ocidente, a divisão econômica mundial deverá prosseguir. As empresas precisam tomar nota disso. Uma guerra de escolha sobre os filhos de uma democracia pacífica não é uma ação que nós, no Ocidente, podemos nos permitir esquecer.

Também não podemos perdoar aqueles que a começaram ou que a apoiaram. As memórias de nosso próprio passado devem proibir isso. Estamos em um novo conflito ideológico, não entre comunistas e capitalistas, mas em um entre a tirania irredentista e a democracia liberal.

De muitas maneiras, esta será mais perigosa que a Guerra Fria. Putin detém um poder arbitrário e descontrolado. Enquanto ele estiver no Kremlin, o mundo será perigoso. Não está claro se o mesmo vale para Xi Jinping da China. Mas ainda poderemos descobrir que sim.

Este não é um conflito com o povo russo. Devemos ainda esperar para eles um regime político digno de sua contribuição para a nossa civilização. É um conflito com seu regime. A Rússia emergiu como um pária governado por um gangster.

Não podemos viver em paz e segurança com um vizinho desses. Esta invasão não pode continuar, uma vez que seu sucesso ameaçaria a todos nós. Estamos em um novo mundo. Precisamos entender isso e agir de acordo. (Tradução de Mário Zamarian)

*Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times

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