Revista Veja
O escândalo do MEC é uma escaramuça pré-eleitoral ou traduz um padrão no trato da coisa pública?
Muita gente pode achar o caso dos pastores
e do Ministério da Educação algo um tanto bizarro e irrelevante. Não é o meu
caso. O episódio todo, que levou à saída do ministro Milton Ribeiro, mostra a
sobrevivência de velhos males de nosso mundo político. Para começar, a
desorganização da política pública. Um órgão que se supunha técnico, como o
FNDE, surge como presa fácil ao pequeno grupo de compadrio, com acesso ao
poder. Com uma agravante: a mistura da religião com política, algo sem
cabimento em um Estado laico. Por último, a lembrança de que nosso velho
patrimonialismo continua vivo e forte. Sua melhor definição foi aquela frase do
ministro: “A prioridade são os amigos do pastor Gilmar”. É a realização da
profecia de Sérgio Buarque: a cordialidade como o doce pecado de nosso mundo
público. A vitória do trato pessoal sobre o procedimento técnico, imparcial,
regrado, republicano. A polidez que esconde critérios de exclusão, de quem
comanda, e não faz muito segredo disso.
O escândalo do MEC é uma escaramuça pré-eleitoral ou traduz um padrão no trato da coisa pública? “Não há novidade nenhuma nisso”, ouvi de um comentarista. “Em Brasília tem pressão de tudo que é lado.” Se o veredicto é esse, segue-se o barco. Meu ponto é dizer que não. Há um problema aí precisamente porque se configura um padrão, feito da captura de nacos de poder, recursos, pequenos e grandes monopólios por parte do estamento público. Ainda esta semana se divulgou o excelente estudo do professor Luciano de Castro e outros pesquisadores sobre nosso Congresso. Os dados são de cair o queixo. Nosso Parlamento custa 0,15% do PIB. É o mais caro do mundo. Cada parlamentar custa 5 milhões de reais por ano. Na Inglaterra, 477 000 reais. Eles fizeram o Bill of Rights, em 1688, e são bem mais ricos do que nós, mas custam dez vezes menos. Vamos lá, só pode haver um problema bastante complicado por aqui.
No mundo dos partidos e das eleições, o
padrão se repete. Estudo conduzido pela economista Marina Helena Santos mostrou
a situação do Fundão Eleitoral. Candidatos que já eram parlamentares, nas
últimas eleições, receberam, na média, 996 000 reais para fazer campanha. Os de fora,
70 000 reais. Os
deputados-candidatos já tinham seus 25 assessores, dinheiro para viagens e
despesas, e já haviam distribuído coisa de 60 milhões de reais, em emendas
individuais, ao longo do mandato. No final, levam catorze vezes mais recursos
do que seus competidores de primeira viagem. É o que o cinismo nacional costuma
chamar de garantir mais “equidade” na disputa eleitoral.
No campo do Judiciário não é diferente.
Nosso sistema de Justiça é o mais caro, proporcionalmente, entre as grandes
democracias. Nos custa 1,4% do PIB, contra apenas 0,4% na Alemanha. Colecionamos
notícias de vencimentos muito acima do teto do funcionalismo, por parte de
nossos magistrados. Mesmo assim, tramita no Congresso, com chances de
aprovação, a PEC 63, criando um adicional de 5% a cada cinco anos, nos
vencimentos da magistratura. E pasmem: com chance de ser retroativo, extensivo
aos aposentados e não sujeito ao teto salarial. Temendo alguma injustiça, o
Senador Alessandro Vieira propôs que o benefício seja dado a todo o
funcionalismo. Ou seja: além de termos engavetado a reforma administrativa, que
iria extinguir as progressões por tempo de serviço, corremos o risco de criar
agora uma superprogressão. O mesmo Congresso que descumpre a determinação da
Constituição, no Artigo 41, de disciplinar a avaliação de desempenho dos
servidores, arrisca criar agora um benefício sem conexão alguma com mérito.
Talvez não passe. Mas só o fato de que isso seja seriamente considerado já é um
indicativo do peso da cultura estamental, na elite política de Brasília.
Muita gente não vê problema algum nisso
tudo. “A democracia custa caro”, escuto em rodas elegantes. Custa caro no
Brasil, respondo. Temos a maior carga tributária da América Latina, fora Cuba,
e fomos o país que mais expandiu o gasto público, na década que se seguiu à
crise de 2008. Em pouco mais de dez anos, fomos de 29,5% para 41% de
comprometimento do PIB com despesa pública. Pouco mais de 13% gastamos com
funcionalismo. Nosso aparado estatal tem tamanho europeu; nossa miséria, padrão
latino-americano. Gastamos o equivalente à Itália e países com welfare state
consolidado, como o Canadá e a Alemanha. Em matéria de pobreza, ficamos atrás
de países como Peru, Bolívia e Paraguai.
Vai aí o dilema: nosso aparato público é
caro, para o contribuinte, e funciona, ele mesmo, como entrave ao crescimento e
fator a mais de concentração de renda. Não há como entender isso sem decifrar
nosso vezo patrimonialista. O vezo que vem do fundo de nossa formação. Do país
que nasce do Estado. Do rei que se apossa da terra e distribui à vassalagem, da
república dos coronéis, do Estado Novo organizando o sindicalismo oficial. O
vezo que está lá, em cada privilégio, em cada monopólio, em cada priorização
dos “de cima”, em cada desoneração fiscal gerada pelo lobby. Signo de um país
vulnerável à ação dos grupos organizados, diante de uma sociedade passiva e uma
legião de brasileiros dependentes de transferências públicas. País carente de
grupos de advocacy para os interesses difusos, a começar pelos direitos do contribuinte,
e de uma cultura frágil de direitos individuais.
Por essas e outras que volto à leitura da
obra-prima de Raymundo Faoro, Os Donos
do Poder. Ela já tem mais de seis décadas, mas prossegue atual. Nos
mostra como a oposição fundamental de nosso mundo político não se dá entre quem
produz, no mercado, seja grande ou pequeno empreendedor, trabalhador com
carteira ou entregador de aplicativo, nas ruas de São Paulo. A clivagem
essencial é entre o mundo que gira em torno da captura do Estado e o restante
da sociedade, que paga a conta. O contribuinte, o cidadão destituído de lobby,
o usuário dos serviços públicos, o tomador de risco, na economia real.
É sobre isso o debate que vamos travar nas
eleições deste ano. Haverá muita bobagem, como sempre, mas a questão central
continua a mesma: se desejamos um país moderno e de mercado, com um Estado
enxuto e feito de direitos iguais, ou se vamos seguir com nossos
pastores-lobistas, e parlamentares recebendo 528 vezes a renda média de um
trabalhador. Se o desejo for de mudança, será preciso enfrentar a “social
enormity”, na expressão dura de Faoro, que herdamos da tradição. A deformação
segundo a qual “instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo
virgem”. Vai aí meu toque de otimismo. A tradição nos puxa pelo pé, mas não nos
amarra. A democracia nos dá, a cada momento, uma nova chance. Nos assopra ao
ouvido a ideia por vezes incômoda de que somos o resultado de nossas próprias
escolhas.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
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