sábado, 2 de abril de 2022

Fernando Schüler*: Os donos do poder

Revista Veja

O escândalo do MEC é uma escaramuça pré-eleitoral ou traduz um padrão no trato da coisa pública?

Muita gente pode achar o caso dos pastores e do Ministério da Educação algo um tanto bizarro e irrelevante. Não é o meu caso. O episódio todo, que levou à saída do ministro Milton Ribeiro, mostra a sobrevivência de velhos males de nosso mundo político. Para começar, a desorganização da política pública. Um órgão que se supunha técnico, como o FNDE, surge como presa fácil ao pequeno grupo de compadrio, com acesso ao poder. Com uma agravante: a mistura da religião com política, algo sem cabimento em um Estado laico. Por último, a lembrança de que nosso velho patrimonialismo continua vivo e forte. Sua melhor definição foi aquela frase do ministro: “A prioridade são os amigos do pastor Gilmar”. É a realização da profecia de Sérgio Buarque: a cordialidade como o doce pecado de nosso mundo público. A vitória do trato pessoal sobre o procedimento técnico, imparcial, regrado, republicano. A polidez que esconde critérios de exclusão, de quem comanda, e não faz muito segredo disso.

O escândalo do MEC é uma escaramuça pré-eleitoral ou traduz um padrão no trato da coisa pública? “Não há novidade nenhuma nisso”, ouvi de um comentarista. “Em Brasília tem pressão de tudo que é lado.” Se o veredicto é esse, segue-se o barco. Meu ponto é dizer que não. Há um problema aí precisamente porque se configura um padrão, feito da captura de nacos de poder, recursos, pequenos e grandes monopólios por parte do estamento público. Ainda esta semana se divulgou o excelente estudo do professor Luciano de Castro e outros pesquisadores sobre nosso Congresso. Os dados são de cair o queixo. Nosso Parlamento custa 0,15% do PIB. É o mais caro do mundo. Cada parlamentar custa 5 milhões de reais por ano. Na Inglaterra, 477000 reais. Eles fizeram o Bill of Rights, em 1688, e são bem mais ricos do que nós, mas custam dez vezes menos. Vamos lá, só pode haver um problema bastante complicado por aqui.

No mundo dos partidos e das eleições, o padrão se repete. Estudo conduzido pela economista Marina Helena Santos mostrou a situação do Fundão Eleitoral. Candidatos que já eram parlamentares, nas últimas eleições, receberam, na média, 996000 reais para fazer campanha. Os de fora, 70000 reais. Os deputados-candidatos já tinham seus 25 assessores, dinheiro para viagens e despesas, e já haviam distribuído coisa de 60 milhões de reais, em emendas individuais, ao longo do mandato. No final, levam catorze vezes mais recursos do que seus competidores de primeira viagem. É o que o cinismo nacional costuma chamar de garantir mais “equidade” na disputa eleitoral.

No campo do Judiciário não é diferente. Nosso sistema de Justiça é o mais caro, proporcionalmente, entre as grandes democracias. Nos custa 1,4% do PIB, contra apenas 0,4% na Alemanha. Colecionamos notícias de vencimentos muito acima do teto do funcionalismo, por parte de nossos magistrados. Mesmo assim, tramita no Congresso, com chances de aprovação, a PEC 63, criando um adicional de 5% a cada cinco anos, nos vencimentos da magistratura. E pasmem: com chance de ser retroativo, extensivo aos aposentados e não sujeito ao teto salarial. Temendo alguma injustiça, o Senador Alessandro Vieira propôs que o benefício seja dado a todo o funcionalismo. Ou seja: além de termos engavetado a reforma administrativa, que iria extinguir as progressões por tempo de serviço, corremos o risco de criar agora uma superprogressão. O mesmo Congresso que descumpre a determinação da Constituição, no Artigo 41, de disciplinar a avaliação de desempenho dos servidores, arrisca criar agora um benefício sem conexão alguma com mérito. Talvez não passe. Mas só o fato de que isso seja seriamente considerado já é um indicativo do peso da cultura estamental, na elite política de Brasília.

Muita gente não vê problema algum nisso tudo. “A democracia custa caro”, escuto em rodas elegantes. Custa caro no Brasil, respondo. Temos a maior carga tributária da América Latina, fora Cuba, e fomos o país que mais expandiu o gasto público, na década que se seguiu à crise de 2008. Em pouco mais de dez anos, fomos de 29,5% para 41% de comprometimento do PIB com despesa pública. Pouco mais de 13% gastamos com funcionalismo. Nosso aparado estatal tem tamanho europeu; nossa miséria, padrão latino-americano. Gastamos o equivalente à Itália e países com welfare state consolidado, como o Canadá e a Alemanha. Em matéria de pobreza, ficamos atrás de países como Peru, Bolívia e Paraguai.

Vai aí o dilema: nosso aparato público é caro, para o contribuinte, e funciona, ele mesmo, como entrave ao crescimento e fator a mais de concentração de renda. Não há como entender isso sem decifrar nosso vezo patrimonialista. O vezo que vem do fundo de nossa formação. Do país que nasce do Estado. Do rei que se apossa da terra e distribui à vassalagem, da república dos coronéis, do Estado Novo organizando o sindicalismo oficial. O vezo que está lá, em cada privilégio, em cada monopólio, em cada priorização dos “de cima”, em cada desoneração fiscal gerada pelo lobby. Signo de um país vulnerável à ação dos grupos organizados, diante de uma sociedade passiva e uma legião de brasileiros dependentes de transferências públicas. País carente de grupos de advocacy para os interesses difusos, a começar pelos direitos do contribuinte, e de uma cultura frágil de direitos individuais.

Por essas e outras que volto à leitura da obra-prima de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Ela já tem mais de seis décadas, mas prossegue atual. Nos mostra como a oposição fundamental de nosso mundo político não se dá entre quem produz, no mercado, seja grande ou pequeno empreendedor, trabalhador com carteira ou entregador de aplicativo, nas ruas de São Paulo. A clivagem essencial é entre o mundo que gira em torno da captura do Estado e o restante da sociedade, que paga a conta. O contribuinte, o cidadão destituído de lobby, o usuário dos serviços públicos, o tomador de risco, na economia real.

É sobre isso o debate que vamos travar nas eleições deste ano. Haverá muita bobagem, como sempre, mas a questão central continua a mesma: se desejamos um país moderno e de mercado, com um Estado enxuto e feito de direitos iguais, ou se vamos seguir com nossos pastores-lobistas, e parlamentares recebendo 528 vezes a renda média de um trabalhador. Se o desejo for de mudança, será preciso enfrentar a “social enormity”, na expressão dura de Faoro, que herdamos da tradição. A deformação segundo a qual “instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem”. Vai aí meu toque de otimismo. A tradição nos puxa pelo pé, mas não nos amarra. A democracia nos dá, a cada momento, uma nova chance. Nos assopra ao ouvido a ideia por vezes incômoda de que somos o resultado de nossas próprias escolhas.

*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783

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