sábado, 2 de abril de 2022

Ascânio Seleme: A última chance da terceira via

O Globo

Foi apenas uma jogada eleitoral. Fosse verdadeira, a renúncia de João Doria causaria um impacto formidável no cenário eleitoral. A ausência de Doria na cédula eleitoral somada à saída de Sergio Moro da corrida presidencial, ainda que temporariamente, acomodaria as forças de centro, centro-esquerda e centro-direita em favor de uma candidatura quiçá viável para enfrentar o protagonismo de Lula e Bolsonaro e desalojar um deles do segundo turno.

Com Doria e Moro fora da disputa, dois nomes buscariam espaço para se viabilizar. No PSDB, obviamente o nome é do ex-governador Eduardo Leite. Fora dele, mas buscando o seu apoio e de outros partidos, aparece a senadora do MDB Simone Tebet. Um seria cabeça da chapa, e outro, o seu vice. Ambos são uma certa novidade no cenário político nacional. Leite, que cumpriu um mandato no governo do Rio Grande do Sul, antes foi prefeito de Pelotas também por um período, mas elegeu sua sucessora. Simone foi vice-governadora do Mato Grosso do Sul e está no final do seu primeiro mandato de senadora.

O cálculo que se teria de fazer não seria aritmético, mas político. Não significa que a soma das intenções de votos de Doria, Moro, Leite e Simone não devesse ser levada em conta. Afinal, são 12 pontos percentuais, o dobro de Ciro Gomes e pouco menos da metade de Bolsonaro. Claro que nem todos os eleitores de Moro iriam para a dupla, mas muitos dos bolsonaristas que fugiram para a candidatura do ex-juiz tendem a manter distância do capitão. Por outro lado, eleitores descontentes mas que ainda estão com Bolsonaro poderiam se sentir à vontade para migrar para uma candidatura de centro aparentemente viável.

O movimento que Doria não fez seria bom para ele e para o seu partido, inclusive em São Paulo. O governador perderia imediatamente a rejeição nacional ao seu nome que contamina fortemente sua posição no estado. E claro que não estaria traindo Rodrigo Garcia. Seria traição se o governador escolhesse outro nome para a disputa. Com Doria na disputa, Fernando Haddad teria um adversário mais forte. O petista poderia até ganhar a eleição, mas com menos votos. E os votos perdidos de Haddad poderiam também significar votos perdidos de Lula.

Embora mais adiante Lula também pudesse ser alcançado por uma mudança no cenário, o primeiro a sentir o golpe seria Bolsonaro. Para chegar ao segundo turno, o candidato do centro teria de quebrar a polarização entre Bolsonaro e Lula. Como é praticamente impossível tirar Lula com seu patamar de mais de 40% dos votos, o nome para defenestrar seria o de Bolsonaro. E este tem fragilidades enormes que podem ser exploradas na campanha. Esqueça os grandes problemas do presidente, como seus ataques às instituições, seu papel infame no combate à pandemia, suas bênçãos a pastores que fazem negócio com dinheiro público. Concentre-se no eleitor e seus anseios.

Metade dos 54% dos eleitores brasileiros que deram um mandato a Bolsonaro em 2018 já o abandonaram, segundo as pesquisas. A maior parte deles é formada pelos desiludidos, aqueles que se deram conta que entraram numa furada. Uma parte menor, mas ainda assim importante, é composta pelos frustrados, os que queriam um governo liberal e honesto e não viram isso se concretizar com seu candidato. Estes, poderiam voltar a Bolsonaro se ele desse em algum momento sinais de que vai se emendar. Com uma nova candidatura de centro, reforçada e unificada, tanto os desiludidos quanto os frustrados teriam uma alternativa.

Lula, por sua vez, se a terceira via se consolidasse e fosse para o segundo turno, teria um concorrente mais difícil que Bolsonaro. Neste caso, o candidato do centro atrairia os eleitores que seriam do presidente e aqueles que foram para Lula com o nariz tampado. Nas próximas semanas, com novas pesquisas diante de um quadro sem Moro, vamos saber como a novidade vai mexer no tabuleiro eleitoral. O certo é que Doria, agora ainda mais desgastado, não será o polo de atração desses votos, como seriam Tebet e Leite.

O golpista voltou

Depois de um bom tempo sem desafiar as instituições, Jair Bolsonaro voltou a instigar a sua turma. Num comício ilegal, em Parnamirim, no Rio Grande do Norte, ele gritou: “Votos serão contados no Brasil. Não serão dois ou três que decidirão como serão contados esses votos. Povo armado jamais será escravizado”. Claro que o presidente é uma pessoa de inteligência média-baixa, mas a burrice não explica o discurso, já que ele sabe muito bem que quem vai contar os votos são as urnas eletrônicas; e não foram dois ou três que decidiram isso, mas o conjunto de 513 deputados e 81 senadores, referendados por 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. Não ache que é apenas mais um cacoete golpista do golpista número 1 do país. O subversivo sugeriu o uso de armas para defendê-lo caso não seja reeleito.

Desordem do dia

O ministro da Defesa mentiu desbragadamente na nota em que comemorou o golpe de 1964. Braga Netto fez coro com o discurso abusado de Bolsonaro pronunciado no mesmo dia. Fala em liberdade, estabilidade, legado de paz, amadurecimento político, mas não menciona assassinato, tortura, fechamento de Congresso, cassação de mandatos e empastelamento de jornais. O general tinha sete anos em 1964. Ao que parece, Braga só leu os livros de História produzidos na ditadura.

Generais e civis

Bolsonaro troca generais como se trocasse de camisa. Já foram defenestrados da administração pública uma dúzia deles, a maioria com humilhação. O desrespeito com os oficiais superiores só não é maior do que o desprezo que o capitão tem por quem não lhe obedece prontamente. Esta, aliás, a causa da queda do último general, o Silva e Luna da Petrobras. Por outro lado, a sem cerimônia com que trata os generais prova que militar no governo é mais do mesmo. Os generais podem ser melhores ou piores do que os civis. Em alguns casos são bem piores. Pazuello, por exemplo. Já Silva e Luna não deve nada ao seu substituto. Embora Adriano Pires saiba mais de petróleo do que o general demitido, pode ser pior do que ele se piscar e atender a uma demanda de Bolsonaro. Qualquer uma.

Caciques

Curiosos são os velhos líderes do PSDB que não querem João Doria na disputa presidencial e não o aceitam concorrendo à sua própria reeleição. O que será que eles querem, além do controle do caixa do partido?

No mundo da lua

O astronauta Marcos Pontes, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, desafiou numa única tacada o seu chefe, Jair Bolsonaro, e o Centrão. Quando apareceu um nome indicado pelo grupo parlamentar para o seu lugar, disse que não sairia do ministério para não abrir vaga para uma indicação política. Numa entrevista ao GLOBO, acrescentou que na sua função não cabe um político porque aquilo ali é como pilotar um avião, é preciso ter técnica. Fala sério. Marcos Pontes é engenheiro com especialização em tecnologia aeronáutica. Sua qualificação de aviador o qualifica para o posto? Claro que não. Não cabe aqui nenhuma defesa do Centrão, longe disso, mas qualquer cargo ministerial exige experiência e força política. Não por outra razão, o melhor ministro da Saúde dos últimos anos foi o economista José Serra. Na Ciência, outro economista, o ex-deputado Aloizio Mercadante, foi dez vezes melhor que Pontes.

Será que dura?

O substituto interino de Milton Ribeiro no Ministério da Educação, Victor Godoy Veiga, é um funcionário de carreira. Isso não o torna um santo, mas diante das outras duas opções apresentadas, qualifica o seu nome de maneira inequívoca. Resta saber se ele vai durar no posto, já que um dos seus contendores é indicação de Silas Malafaia, e o outro, de Valdemar Costa Neto. Foram os dois que exigiram de Bolsonaro que não efetivasse Godoy Veiga por enquanto. O lobby contra ele vai ser pesado.

O povo não é bobo

Pesquisa Datafolha revela que 53% dos brasileiros acham que a corrupção vai aumentar no Brasil. Depois de ouvir as marteladas fakes de Bolsonaro de que seu governo não tem casos de corrupção, o número havia caído para 36% em dezembro do ano passado. Detalhe: o campo da pesquisa foi feito antes da eclosão do escândalo dos pastores enviados por Bolsonaro aos cofres do MEC.

Midiaticamente

Exemplo de que basta estar na mídia de modo intenso para se habilitar a uma vaga de deputado é o caso de Fabiano Guimarães, tradutor de libras de Bolsonaro. Nunca se ouviu ou se leu uma palavra sua sobre não importa qual assunto, mas por estar ali, traduzindo as barbaridades ditas pelo presidente, o sujeito se julga qualificado para pedir o seu voto. E o pior é que ele pode ser eleito. Se há um fim da picada, chegamos a ele.

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