O Globo
Depois de idas e vindas, o relator do PL
das Fake News, deputado Orlando Silva, finalmente entregou seu relatório, que substitui o projeto aprovado pelo
Senado. O texto dá tratamento cuidadoso e sistemático para problemas
importantes das mídias sociais, mas apresenta pelo menos dois problemas
relevantes.
Antes de apontar os problemas, seria justo com o trabalho do relator apresentar os méritos da proposta. O texto regulamenta os relatórios de transparência de plataformas de mídia social como Facebook e Twitter, que passariam a ter de informar semestralmente ao público os usuários ativos, os detalhes das medidas de moderação, o cumprimento de decisões judiciais e a quantidade de conteúdos irregulares identificados. Exigências análogas passariam a valer também para ferramentas de busca como Google ou Bing.
A moderação de conteúdo, uma das ações mais
controversas das plataformas, passa a ser regulamentada. A moderação é o
arsenal de ações das plataformas para excluir, limitar o alcance ou rotular as
postagens dos usuários que ferem os termos de uso. Há muita reclamação de
usuários, porque essa moderação é predominantemente feita por meios
automatizados, e erros acontecem com muita frequência. A proposta obriga as
plataformas a avisar o usuário quando uma postagem é moderada, a informar a
regra infringida e a abrir um canal de apelação e revisão da medida.
Outra medida positiva é a transparência dos
impulsionamentos — ampliação do alcance de uma postagem mediante pagamento. No
texto do relator, passam a ser sempre identificados e, no caso do
impulsionamento eleitoral, os usuários poderão saber detalhes das estratégias
de divulgação dos candidatos, como valor gasto e perfil a que a propaganda foi
dirigida.
Se o texto consolidou avanços nestes
pontos, houve grande retrocesso na regulação de serviços de mensageria como
WhatsApp e Telegram. Na versão do projeto aprovada pelo Senado, esses serviços
teriam de rastrear mensagens virais, resguardando o sigilo da comunicação, que
é interpessoal e privada. Isso permitiria identificar os autores de mensagens
desinformativas virais que tanto dano causaram nas eleições de 2018 e na
pandemia. Com a retirada da rastreabilidade de conteúdos virais, o vácuo
regulatório de 2018 permanece, e poderemos esperar mais uma dura rodada de
abusos no WhatsApp em 2022.
As contas de mídias sociais de interesse
público —do presidente, governadores, prefeitos, parlamentares, juízes e
promotores —passariam a ter regras especiais. Não poderiam bloquear usuários —
já que privariam o bloqueado de acessar informação de interesse público. Mas o
relator incluiu também duas medidas muito preocupantes.
A primeira diz que, caso essas contas sejam
bloqueadas pelas plataformas — como aconteceu com o ex-presidente americano Donald
Trump —, a conta poderá ser recuperada por meio de ação judicial, com
celeridade, desde que mostre que “seguiu os princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Isso significa que, se
as plataformas bloquearem uma conta por ferir algum termo de uso, mas a Justiça
entender que ela não feriu os princípios da administração pública, a conta
volta. Na prática, essas contas dificilmente serão bloqueadas, mesmo que
sistematicamente desobedeçam aos termos de uso que valem para todos os usuários
comuns.
Além de não poderem ser bloqueadas, as
contas de parlamentares passariam a ter a prerrogativa da “imunidade
parlamentar material”. Esse princípio garante a inviolabilidade civil e penal
das opiniões, palavras e votos dos parlamentares. Há amplo temor de que a
menção à imunidade parlamentar seja interpretada como o direito de
parlamentares a não ser submetidos a moderação de suas postagens. Isso é muito
preocupante porque as pesquisas têm seguidamente mostrado que parlamentares são
os maiores disseminadores de desinformação nas mídias sociais.
Chega a ser irônico que um projeto de lei
que nasceu para coibir a desinformação —daí o apelido “PL das Fake News”— não
enfrente o jogo sujo no WhatsApp e confira tanta proteção aos políticos, os que
mais difundem desinformação. Se for aprovado com essa redação, eles poderão
alegar que seu conteúdo não pode ser moderado e, se suas contas forem suspensas
pelas plataformas, poderão facilmente resgatá-las por meio de um sistema de fast track na Justiça. É
um passe livre para as fake news.
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