sábado, 2 de abril de 2022

Pablo Ortellado: Um passe livre para as fake news

O Globo

Depois de idas e vindas, o relator do PL das Fake News, deputado Orlando Silva, finalmente entregou seu relatório, que substitui o projeto aprovado pelo Senado. O texto dá tratamento cuidadoso e sistemático para problemas importantes das mídias sociais, mas apresenta pelo menos dois problemas relevantes.

Antes de apontar os problemas, seria justo com o trabalho do relator apresentar os méritos da proposta. O texto regulamenta os relatórios de transparência de plataformas de mídia social como Facebook e Twitter, que passariam a ter de informar semestralmente ao público os usuários ativos, os detalhes das medidas de moderação, o cumprimento de decisões judiciais e a quantidade de conteúdos irregulares identificados. Exigências análogas passariam a valer também para ferramentas de busca como Google ou Bing.

A moderação de conteúdo, uma das ações mais controversas das plataformas, passa a ser regulamentada. A moderação é o arsenal de ações das plataformas para excluir, limitar o alcance ou rotular as postagens dos usuários que ferem os termos de uso. Há muita reclamação de usuários, porque essa moderação é predominantemente feita por meios automatizados, e erros acontecem com muita frequência. A proposta obriga as plataformas a avisar o usuário quando uma postagem é moderada, a informar a regra infringida e a abrir um canal de apelação e revisão da medida.

Outra medida positiva é a transparência dos impulsionamentos — ampliação do alcance de uma postagem mediante pagamento. No texto do relator, passam a ser sempre identificados e, no caso do impulsionamento eleitoral, os usuários poderão saber detalhes das estratégias de divulgação dos candidatos, como valor gasto e perfil a que a propaganda foi dirigida.

Se o texto consolidou avanços nestes pontos, houve grande retrocesso na regulação de serviços de mensageria como WhatsApp e Telegram. Na versão do projeto aprovada pelo Senado, esses serviços teriam de rastrear mensagens virais, resguardando o sigilo da comunicação, que é interpessoal e privada. Isso permitiria identificar os autores de mensagens desinformativas virais que tanto dano causaram nas eleições de 2018 e na pandemia. Com a retirada da rastreabilidade de conteúdos virais, o vácuo regulatório de 2018 permanece, e poderemos esperar mais uma dura rodada de abusos no WhatsApp em 2022.

As contas de mídias sociais de interesse público —do presidente, governadores, prefeitos, parlamentares, juízes e promotores —passariam a ter regras especiais. Não poderiam bloquear usuários — já que privariam o bloqueado de acessar informação de interesse público. Mas o relator incluiu também duas medidas muito preocupantes.

A primeira diz que, caso essas contas sejam bloqueadas pelas plataformas — como aconteceu com o ex-presidente americano Donald Trump —, a conta poderá ser recuperada por meio de ação judicial, com celeridade, desde que mostre que “seguiu os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Isso significa que, se as plataformas bloquearem uma conta por ferir algum termo de uso, mas a Justiça entender que ela não feriu os princípios da administração pública, a conta volta. Na prática, essas contas dificilmente serão bloqueadas, mesmo que sistematicamente desobedeçam aos termos de uso que valem para todos os usuários comuns.

Além de não poderem ser bloqueadas, as contas de parlamentares passariam a ter a prerrogativa da “imunidade parlamentar material”. Esse princípio garante a inviolabilidade civil e penal das opiniões, palavras e votos dos parlamentares. Há amplo temor de que a menção à imunidade parlamentar seja interpretada como o direito de parlamentares a não ser submetidos a moderação de suas postagens. Isso é muito preocupante porque as pesquisas têm seguidamente mostrado que parlamentares são os maiores disseminadores de desinformação nas mídias sociais.

Chega a ser irônico que um projeto de lei que nasceu para coibir a desinformação —daí o apelido “PL das Fake News”— não enfrente o jogo sujo no WhatsApp e confira tanta proteção aos políticos, os que mais difundem desinformação. Se for aprovado com essa redação, eles poderão alegar que seu conteúdo não pode ser moderado e, se suas contas forem suspensas pelas plataformas, poderão facilmente resgatá-las por meio de um sistema de fast track na Justiça. É um passe livre para as fake news.

 

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