Revista Veja
Imposição de prazo às campanhas atenta
contra a liberdade e não combate o criminoso abuso de poder
Os arcaicos meios e modos da política
brasileira, que sabidamente não acompanharam a evolução de variados setores
desde a redemocratização do país, volta e meia dão as caras. Suscitam breves
debates, mas de pronto voltam ao recôndito de suas obsoletas tocas.
Foi o caso da tentativa do partido do
presidente de interditar, via Tribunal Superior Eleitoral, manifestações de
artistas no festival Lollapalooza. A decisão de um juiz do TSE provocou
indignação geral, mas o assunto candidatou-se ao esquecimento em meio ao
turbilhão de acontecimentos e depois de Jair Bolsonaro mandar o PL
retirar a ação.
Ato desastrado aquele, diga-se, pois que
reclamações à Justiça Eleitoral no curso das campanhas não é hábito dos
partidos. Preferem a tolerância cúmplice, por medo de que decisões contrárias
ao adversário venham a confirmar que a madeira bate com intensidade igual em
Chico e em Francisco.
Provavelmente essa conta de reciprocidade
inspirou a ordem de Bolsonaro para o PL recolher os flaps. Com a cena tomada
pela demissão do ministro da Educação, a troca de comando na Petrobras e, num
segundo plano, a volta de Eduardo Leite à disputa pela legenda do PSDB para
concorrer à Presidência, o tema das restrições a campanhas subiu no pódio das
irrelevâncias.
Não deveria, dada a importância do assunto. Com esse desdém perde-se a chance de lançar luz, dúvidas e contestações sobre a questão: precisamos mesmo que o Estado nos diga quando, onde e como deve ser permitido fazer campanha eleitoral? Claro que não, assim como não temos a menor necessidade de ser obrigados a votar, por definição o exercício de um direito.
São amarras estatais absolutamente anacrônicas, tentativas de controle incompatíveis com a realidade que, além de infantilizar o eleitorado, desviam o foco daquilo que realmente precisa ser combatido e corrigido. Deixemos por ora de lado o voto obrigatório para nos concentrarmos na questão da campanha antecipada, cuja urgência reside demonstrada em sua total incompatibilidade com os fatos.
A lei que estabelece o momento a partir do
qual as campanhas eleitorais são permitidas data de 1997, ocasião em que o
mundo era outro e nem se sonhava com o uso ampliado da internet na forma como
agora conhecemos. Até 2015, as campanhas tinham duração de noventa dias, mas
desde então o prazo foi reduzido para 45 dias e assim é ainda hoje.
Antes disso não são permitidos comícios,
divulgação de candidaturas nos espaços reservados aos partidos no rádio e na
televisão e muito menos pedir votos em quaisquer atos públicos. Pergunto: tais
regras, individualmente ou em conjunto, são respeitadas?
Não são. Inexiste fiscalização, viceja a
tolerância por parte da Justiça Eleitoral, grassa a cumplicidade leniente entre
partidos, mas principalmente não são normas respeitadas porque não fazem
sentido. Comícios tais como se faziam antigamente já não existem. Se a regra
fosse aplicada com rigor, estariam enquadradas nela as manifestações de
natureza política que acontecem o tempo todo e nas quais o pedido de votos está
implícito.
Temos campanhas autorizadas por 45 dias e
vivemos em clima de eleição há mais de três anos, desde a proclamação dos
resultados eleitorais de 2018. Não só Bolsonaro se comporta como candidato
diuturnamente. Luiz Inácio da Silva governou por oito anos ao modo de palanque.
Se os presidentes dão o exemplo — cuidado
aqui para não se atribuir culpa à reeleição, pois o defeito não é da norma, é
dos homens e das mulheres —, natural que seus adversários atuem da mesma
maneira. Esperado que a imprensa registre os movimentos e normal que a parcela
da sociedade interessada em política entre na onda. De acordo com a lei, são
todos infratores: políticos, partidos e brasileiros engajados na discussão
eleitoral.
A restrição em vigor cria um falso delito
lastreado em amarra arcaica. Fere a liberdade de expressão, mas deixa de lado o
que realmente é grave: o criminoso, por inconstitucional, abuso de poder
político e econômico cometido principalmente, mas não só, por governantes.
Essa é a delinquência mestra a que a
Justiça, o Ministério Público, o Congresso, as demais instâncias de
fiscalização e as torcidas eleitorais deveriam dar, mas não dão, a devida
atenção. O controle deveria estar aí, e não na tutela do exercício da liberdade
e dos direitos dos cidadãos.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783
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