Ameaça de João Doria não cumprida, tumultua ainda mais o já atribulado caminho da terceira via, marcada por candidatos com baixas intenções de voto
Bruno Ribeiro, Reynaldo
Turollo Jr., Tulio Kruse
Previsto para fazer parte do ritual de
despedidas de João
Doria do governo de São Paulo e marcar o início de sua
nova caminhada na tentativa de chegar ao Palácio do Planalto como
presidenciável escolhido nas prévias do PSDB, o jantar ocorrido na última
quarta, 30, na mansão do empresário Marcos Arbaitman, no Jardim Europa, um dos
bairros mais valorizados da capital paulista, contou com um discurso emocionado
do homenageado. Citando no começo de suas palavras o anfitrião, que é uma das
pessoas mais próximas ao governador, Doria falou sobre atitudes de grandeza na
política e a expectativa do que pode acontecer nos próximos dias de positivo e
de bom para o Brasil. “Esse respeito não parte do pressuposto de que tem de ser
eu”, disse, sem citar explicitamente a briga dele com outros candidatos para se
tornar o nome de consenso de PSDB, MDB e União Brasil, os partidos que
trabalham nos bastidores para marchar juntos com um candidato capaz de
representar a terceira via. “Essa grandeza, a religião nos ensina… Tenha o
espírito elevado e exercite o diálogo no limite do possível”, completou.
Num primeiro momento, as palavras não
soaram como novidade para o grupo de convidados, que incluiu quase todos os
secretários de Doria. Afinal, em ocasiões anteriores, ele já havia dito
publicamente que estaria disposto a abrir mão de encabeçar a chapa da terceira
via em nome da união do centro contra a polarização entre Lula e Bolsonaro. Poucos, é verdade, levavam
a sério essas palavras, dada a obstinação com que o governador se entrega ao
seu projeto presidencial. Esse tipo de discurso sempre foi encarado como um
antídoto às críticas recorrentes de adversários de que ele sempre põe seus
interesses pessoais acima de qualquer acordo. Foi o mesmo sentimento que o
discurso causou na maior parte dos presentes ao evento na casa de Arbaitman.
O que nenhum deles sabia é que, desta vez, as palavras eram para valer.
Horas antes, num gesto surpreendente, Doria tinha comunicado a um dos seus
principais nomes de confiança sua desistência de concorrer ao Palácio do
Planalto. Além disso, contou que não mais renunciaria ao governo de São Paulo
para se manter no cargo até o fim do mandato, em dezembro. A falta de união do
PSDB em torno da sua candidatura presidencial, inegavelmente, era o principal
motivo para a mudança brusca de direção.
Num rápido e tenso encontro no Palácio dos Bandeirantes, Doria comunicou os novos planos ao vice Rodrigo Garcia, que não gostou nada da história. Oriundo do DEM, Garcia assinou a ficha de filiação ao PSDB para se lançar o candidato à sucessão de Doria. Preterido por essa escolha do governador, Geraldo Alckmin, que alimentava o sonho de voltar ao Palácio dos Bandeirantes, bateu asas do ninho tucano e, recentemente, acertou o ingresso no PSB para se tornar o vice da chapa presidencial de Lula. Pouquíssimos imaginavam que o governador seria capaz de romper o pacto com Garcia, ainda mais pelo fato de que um depende do outro no pleito deste ano. Pouco conhecido do eleitorado, o vice precisa se amparar no bom saldo de realizações da atual gestão e contar com a máquina do governo para decolar na campanha. Por sua vez, o bom desempenho local de Garcia ajudaria Doria a diminuir a rejeição dele junto ao eleitorado, uma das mais altas entre os presidenciáveis.
Na conversa entre os dois ocorrida por
volta das 17 horas da última quarta, na sala do governador, Doria comunicou que
continuaria apoiando Garcia como seu sucessor. O diálogo durou cerca de vinte
minutos e terminou com Garcia deixando o local bastante contrariado. Apesar de a
convivência ter sido diplomática entre os dois nos últimos anos no Palácio dos
Bandeirantes, a diferença de estilos sempre foi enorme. Mais recentemente, em
meio à agitação com a proximidade das eleições, enquanto o chefe ficava cada
vez mais isolado politicamente dentro e fora do PSDB, o vice construiu um
formidável arco de alianças em São Paulo, com o apoio de mais de 500 prefeitos
e acordos formados junto ao MDB, União Brasil, Cidadania e Solidariedade.
Garcia contava ainda com um tempo para se distanciar da imagem de Doria, de
forma a não ter que carregar na campanha a alta rejeição do governador. Quando
estivesse fortalecido nas pesquisas de São Paulo, Garcia prometia voltar a se
reaproximar de D
Entre a madrugada de quarta e a manhã de
quinta houve um esforço para reverter a situação, que se revelou bem-sucedido.
Em conversa com o presidente do PSDB, Bruno Araújo, Doria pediu uma declaração
pública de apoio à sua pretensão presidencial e foi atendido. “As prévias serão
respeitadas pelo partido”, dizia a nota. No início da tarde de quinta, Doria
voltou a se reunir com Garcia e acertou os ponteiros. Horas depois, no Palácio
dos Bandeirantes, o governador confirmou publicamente a manutenção do plano
original. “Sim, serei candidato à Presidência da República pelo PSDB, o PSDB (enfatizou), o nosso partido. Vamos
vencer o populismo, a maldade e a corrupção”, discursou, em um auditório com
mais de 1 500 pessoas. Até
esse momento, tucanos paulistas insatisfeitos com as idas e vindas de Doria
chegaram a mandar recados ameaçando-o de impeachment caso mantivesse a decisão
de não deixar o cargo (só não ficou claro por qual motivo o governador seria
obrigado a sair).
Vários fatores pesaram na surpreendente
movimentação de Doria, a começar pela encruzilhada política. Depois da vitória
nas prévias de seu partido para a disputa presidencial, ele não conseguiu
apaziguar o ninho e, nos últimos dias, cresceu enormemente a possibilidade de
ser descartado por um nome de consenso entre os dirigentes de PSDB, MDB e União
Brasil. Mesmo derrotado por Doria na disputa interna, o governador gaúcho
Eduardo Leite nunca abandou o sonho presidencial e, após flertar seriamente com
o PSD de Gilberto Kassab, acabou sendo enquadrado a permanecer no PSDB pelo
senador Tasso Jereissati e pelo deputado federal Aécio Neves, dois dos maiores
adversários de Doria. Nesse contexto, a renúncia de Leite ao cargo foi
interpretada como mais um sinal de que ganha corpo o movimento para tirar o
governador paulista da disputa ao Planalto. Caso realmente os tucanos decidam
rasgar o resultado das prévias, que consumiram 6 milhões de reais em
dinheiro público, via Fundo Partidário, a imagem da legenda, já bastante
desgastada, poderia chegar ao fundo do poço.
Outro obstáculo que pesou na ameaça de
Doria de recolher as asas para o tão sonhado voo mais alto é o próprio Doria. A
despeito de sua capacidade de gestão acima da média e da carreira pública até
aqui extremamente bem-sucedida, ele continua sendo um estranho no ninho entre
seus pares, que enxergam nele um comportamento artificial, uma vaidade
exacerbada e uma dificuldade enorme de entender e seguir as mais básicas regras
do bom catecismo político. A visão do eleitorado hoje não é muito diferente,
como demonstram os decepcionantes resultados dele nas projeções de votos dos
institutos especializados. Uma pesquisa qualitativa que circulou recentemente
entre os tucanos jogou um novo balde de água fria nas possibilidades de Doria
virar esse jogo. Segundo o levantamento, até o maior ativo do governador, o
eficiente e corajoso trabalho para iniciar no país a vacinação contra a
Covid-19, é motivo de críticas. Para muitas pessoas, o exagero de Doria em
faturar politicamente com a CoronaVac, contrapondo-se ao negacionismo do
presidente Jair Bolsonaro, foi um exemplo que comprova como os políticos agem
sempre movidos por seus interesses — no caso, a vontade de Doria em suceder ao
próprio Bolsonaro no Palácio do Planalto. A pesquisa apontou ainda a enorme
dificuldade para a candidatura roubar votos dos favoritos Lula e Bolsonaro,
agravada pelo fato de ele ainda disputar o eleitorado com outros nomes da
terceira via, em particular o de Sergio Moro — que resolveu se
filiar ao União Brasil, mas decidiu abrir mão da campanha presidencial nesse
momento, conforme nota divulgada por ele.
Mesmo com tantas dificuldades, Doria acha
perfeitamente possível reverter a situação. Só que, inegavelmente, sua
movimentação recente criou ainda mais tumulto na já bastante atribulada
terceira via. Além de Doria e Moro, estão na disputa Eduardo Leite, a senadora
Simone Tebet, pré-candidata do MDB, Ciro Gomes e até o deputado Federal André
Janones, do Avante. Por enquanto, só um fator une essa heterogênea turma: todos
eles possuem baixas intenções de votos nas pesquisas. Mesmo com essa realidade,
Doria acredita que, à medida que a campanha avançar, alguns desses personagens
sairão do páreo e sua eficiente gestão, além da atuação durante a pandemia,
será reconhecida pelos brasileiros. É claro que as circunstâncias confusas do
lançamento de sua candidatura não ajudam muito, assim como o desgaste que isso
provocou na sua relação com Rodrigo Garcia.
Empresário bem-sucedido na iniciativa
privada antes de decidir entrar na política (veio literalmente de baixo,
trabalhando até de office-boy na juventude no período de graves problemas
familiares), Doria nunca se sentiu totalmente à vontade nesse meio, mas sempre
se jactou de sua capacidade de comunicação e de ser um craque em marketing,
atributos que considera terem ajudado decisivamente em sua trajetória pública. Para
um político conhecido por seu comportamento extremamente metódico, as recentes
mudanças bruscas de rumo só podem ser explicadas por alguém que, isolado e sob
intensa pressão, teve como única alternativa de sobrevivência a arriscada
tática de incendiar de vez o ninho tucano, chamuscando de quebra o tortuoso
caminho da terceira via. Aparentemente, se nenhuma novidade surgir, ele entrou
de vez no páreo. Mas ainda falta muito para que Doria, ou algum outro nome
alternativo, consiga avançar a ponto de ameaçar os favoritos Lula e Bolsonaro.
E o relógio eleitoral é cruel para quem busca espaço: restam apenas seis meses
para o pleito.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783
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