O Globo
Um dos bichos-papões da minha infância se
chamava Nélson Carneiro. Era — diziam — o homem que queria acabar com a família
brasileira, instituindo o divórcio. Tive medo dele até o dia em que
descobri que o divórcio era só para quem quisesse se divorciar. Meus pais não
seriam separados à força. Teriam fim apenas os casamentos falidos, as uniões
infelizes. Como, então, alguém poderia ser contra?
Tempos depois, a família esteve novamente
ameaçada, com a perspectiva do “casamento gay” — o bicho-papão agora era a
Marta Suplicy. Não cheguei a ter pesadelos com a homossexualidade compulsória
que, pela reação dos tradicionalistas, seria imposta à população. Tinha
aprendido que a lei é para todos — mas que há uma diferença crucial entre
“permitido” e “compulsório”.
As pautas progressistas sempre apavoraram os conservadores, como se mudanças naturais nas instituições, nas relações, na sociedade, ao ser incorporadas à legislação, se tornassem mandatórias. Daí o medo irracional que parte do eleitorado tem cada vez que a esquerda se aproxima do poder. Tolice.
A grande ameaça de Lula não é o
progressismo, mas o atraso. O PT contou, por 13 anos, com os meios e a
oportunidade — e não houve descriminalização de drogas para uso pessoal
(experiência já empreendida com sucesso em Portugal, Holanda, Espanha, Canadá e
parte dos EUA). Não colocou em pauta a eutanásia (direito sancionado, sob a
esquerda, no Chile, na Argentina e no Uruguai, e, sob a centro-direita, na
Colômbia). Nem houve a regulamentação do aborto (a interrupção da gravidez em
caso de anencefalia fetal foi obra do STF).
Energia limpa? O PT sempre esteve mais interessado
em garantir apoio do Centrão (distribuindo “diretoria que fura poço”) do que em
fazer evoluir a matriz energética. Ou em tocar obras como Belo Monte, Abreu e
Lima e Comperj, de olho nas possibilidades de corrupção — exploradas com
maestria.
O perigo da volta do PT está nos crimes que
cometeu (e de que não se arrepende), não na agenda liberal, que só apoia
pró-forma, para consumo interno. Aborto, drogas e eutanásia assustam — e tiram
votos.
No entanto descriminalizar o porte e uso de
drogas não quer dizer que elas possam vir a ser vendidas na porta das escolas,
mas que haverá regulação estatal (retirando recursos do tráfico, que sustenta o
crime organizado) e investimento na redução de danos (não no encarceramento
injusto, ineficaz). Legalizar o aborto não é chancelar um morticínio, mas
tratar a questão como de saúde pública — com aconselhamento, acolhimento e
segurança para a mulher. Aprovar a eutanásia não é promover o extermínio de
idosos, mas permitir um fim digno e sem sofrimento para quem assim desejar.
Apesar de Dilma já estar convidando para a
posse, ainda é abril, e muita enxurrada passará por baixo (ou por cima) da
ponte. Há tempo para que surja uma alternativa liberal, que trate temas
controversos (como um dia foram o divórcio ou o casamento entre pessoas do
mesmo sexo) com mais racionalidade do que Bolsonaro e menos hipocrisia do que
Lula.
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