sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Oposição autofágica – Opinião | O Estado de S. Paulo

Os partidos com potencial para construir uma alternativa ao mesmo tempo viável e responsável para derrotar Jair Bolsonaro parecem perdidos

A confortável vitória dos candidatos governistas ao comando do Congresso parece ter tido o condão de pôr a nu as profundas divergências internas em partidos que teoricamente serviriam de oposição ao presidente Jair Bolsonaro. Nem é preciso dizer o mal que essa autofagia oposicionista faz ao País, justamente no momento em que se faz mais necessário um obstáculo político sólido à razia bolsonarista.

O mais recente entrevero se deu no PSDB, protagonizado pelo governador de São Paulo, João Doria, e pelo deputado federal Aécio Neves. O parlamentar, ex-presidente da sigla, acusa o governador de oportunismo e autoritarismo por, segundo ele, tentar impor sua candidatura à Presidência na eleição de 2022.

Em nota duríssima, Aécio Neves não deixou dúvida sobre o mal-estar: “Se o senhor João Doria, por estratégia eleitoral, quer vestir um novo figurino oposicionista para tentar apagar a lembrança de que se apropriou do nome de Bolsonaro para vencer as eleições em São Paulo, através do inesquecível Bolsodoria, que o faça, sem utilizar indevidamente e de forma oportunista outros membros do partido”.

O governador Doria respondeu no mesmo tom, lembrando que o deputado é suspeito de corrupção no escândalo estrelado pelo empresário Joesley Batista, em 2017: “O deputado Aécio Neves precisa entender que o novo PSDB não pode se subordinar a projetos pessoais, que se perderam pela conduta inapropriada em relação à ética pública”.

O fulcro da querela é o papel do PSDB ante o governo Bolsonaro. O governador paulista trabalha para isolar os focos bolsonaristas no partido e identificou no deputado Aécio Neves um dos tucanos que operaram pela candidatura vitoriosa do deputado Arthur Lira, apoiado por Bolsonaro, à presidência da Câmara. Doria quer a presidência do PSDB para consolidar sua candidatura à Presidência da República, que seria, em sua visão, a vanguarda da oposição de centro a Bolsonaro.

A acrimônia do atrito entre os tucanos já havia se verificado, em igual medida, na implosão do DEM, provocada pelo dissídio entre o presidente do partido, ACM Neto, e o deputado Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara. Rodrigo Maia acusou ACM Neto de “traição” por ter entregado o DEM “de bandeja” a Bolsonaro, trabalhando para que o partido fosse “anexado” ao governo. Em resposta, ACM Neto chamou Maia de “descontrolado”.

A exemplo dos tucanos, o busílis é a atitude que o DEM deveria adotar em relação ao governo Bolsonaro. Enquanto Rodrigo Maia presidia a Câmara e, nessa função, parecia ter grande influência no partido, o DEM era tido como pilar de uma possível frente de centro, junto com o PSDB, para desafiar Bolsonaro em 2022. Derrotado fragorosamente em sua sucessão, Maia foi atropelado – e o DEM retomou um papel que parecia esquecido no passado.

No que diz respeito aos interesses maiores do País, é ocioso discutir quem tem razão no meio desse banzé. O que importa é que os partidos com potencial para construir uma alternativa ao mesmo tempo viável para derrotar Bolsonaro e responsável o bastante para construir um projeto civilizado de País parecem perdidos. Nessa toada, o eleitor pode se ver novamente diante da terrível tarefa de escolher entre a delinquência bolsonarista e o embuste lulopetista.

Rusgas internas não são necessariamente sintomas de fragilidade de um partido. Ao contrário, partidos dignos do nome costumam consolidar suas bandeiras a partir de francos debates internos. Mas o que está acontecendo no DEM e no PSDB é de outra natureza: trata-se do desdobramento natural da crise de identidade que tomou de assalto o centro democrático desde a ascensão irresistível do imoral populismo lulopetista e de seu congênere, a demagogia brucutu bolsonarista.

Pode até ser que, em meio a essa depuração a céu aberto, as forças que deveriam estar na oposição consigam se reorganizar em bases mais firmes e coerentes que as atuais. Hoje, contudo, é preciso candura excessiva para apostar nisso; o mais provável é que a maior oposição a Bolsonaro continue a ser seu próprio desgoverno.

Tormenta nacional e bonança subnacional – Opinião | O Estado de S. Paulo

Estados e municípios precisam urgentemente arrumar suas contas e olhar para o todo

Nos estertores do ano parlamentar de 2020, a Câmara dos Deputados quase aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional (319/17) prevendo aumento de 1% (R$ 4 bilhões por ano) nos repasses da União às prefeituras via Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Em janeiro, secretários de Fazenda de 18 Estados pediram ao Congresso que seja prorrogado, entre outros subsídios, o socorro federal a Estados e municípios. Em tese, tais propostas apelam ao senso de solidariedade dos parlamentares e da opinião pública em face da covid-19. Na prática, elas revelam justamente o contrário: a insensibilidade com as mazelas fiscais e sociais agravadas pela pandemia.

Segundo o Tesouro Nacional e o Banco Central, em 2020, enquanto as contas públicas federais fecharam com um rombo de R$ 745,3 bilhões e uma dívida que se aproxima de 100% do PIB, Estados e municípios fecharam com quase o dobro de dinheiro em caixa em relação a 2019: de R$ 42,7 bilhões para R$ 82,8 bilhões.

A União repassou aos entes subnacionais um total de R$ 60 bilhões em caráter emergencial – tendo por contrapartida o congelamento nos reajustes salariais do funcionalismo até 2021. Foi o segundo maior gasto federal, atrás apenas dos R$ 239 bilhões do auxílio emergencial. Estados e municípios também foram contemplados com a suspensão do pagamento de dívidas com a União, no valor de R$ 65 bilhões. Além disso, a arrecadação caiu menos do que se esperava, e em alguns casos cresceu, chegando a até dois dígitos porcentuais. Tudo somado, governadores e prefeitos têm a maior disponibilidade de caixa em 19 anos.

Em poucas palavras, o grande problema dos entes subnacionais não é como conseguir mais dinheiro para cobrir os déficits de caixa causados pela pandemia, mas, ao contrário, como administrar responsavelmente o superávit gerado em razão dela.

O Tesouro Nacional tem alertado para a deterioração crônica das contas subnacionais, especialmente por causa das despesas com o funcionalismo. Em 2019, nove Estados romperam os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Apesar disso, a maioria segue procrastinando suas reformas previdenciárias e administrativas.

No caso dos municípios, por exemplo, um aumento permanente de repasses, como o proposto para o FPM, pode servir de pretexto para projetar aumentos na remuneração de servidores, que em nada foram afetados pela pandemia.

Enquanto os entes subnacionais não implementam suas reformas, o mais prudente seria preservar a “gordura” resultante do socorro federal para cobrir passivos previdenciários e aumentos nos gastos fixos, além de eventuais reveses da pandemia. Até porque algumas despesas devem crescer. Com a aprovação do novo Fundeb, o piso salarial dos professores pode subir até 30%. No caso dos servidores ativos, o aumento será coberto pelo próprio Fundeb, mas no caso dos inativos a conta sobrará para Estados e municípios.

Outro uso que não se pode descartar seria justamente o resgate de parte desse excedente para compor a nova rodada do auxílio emergencial federal, que se mostra cada vez mais inevitável. “Os entes subnacionais poderiam devolver parte dessa transferência a maior participando do financiamento do pagamento do auxílio. Isso garantiria pelo menos R$ 10 bilhões”, defendeu o economista Marcos Mendes, em artigo no Brazil Journal.

A transformação do excedente de caixa em auxílio social, além de cumprir a função humanitária de socorrer as camadas desprovidas da população, também seria revertida em receita para os entes federados. Como se sabe, o auxílio emergencial foi em grande parte responsável pela arrecadação acima das expectativas do ICMS, para os Estados, e do ISS, para os municípios.

Fato é que os entes subnacionais precisam urgentemente arrumar suas próprias contas e olhar para o todo. As pressões fiscais sobre a União, além de inviabilizarem programas de assistência emergencial, podem deteriorar as condições de crédito, impactando todos os entes federados. A melhor resposta à generosidade da União em 2020 é a responsabilidade de Estados e municípios em 2021.

A judicialização dos resultados eleitorais – Opinião | O Estado de S. Paulo

Pesquisa sobre relação entre poder econômico e política ajuda a entender aumento de contestações

Ao contrário do que se imagina, as eleições para cargos legislativos não têm apenas um turno e os pleitos para cargos executivos nem sempre terminam no segundo turno. Muitas vezes, o turno final é travado nos tribunais com a judicialização dos resultados das urnas, seja por iniciativa dos candidatos derrotados, seja por denúncias feitas pelo Ministério Público.

Essa é a conclusão de uma pesquisa sobre a relação entre dinheiro e política em ações que tramitaram na Justiça Eleitoral após as eleições municipais de 2008, 2012 e 2016. Das 38.525 candidaturas analisadas nesses pleitos, 3.873 – 10,1% do total – sofreram processos judiciais. As ações questionaram, basicamente, o uso do dinheiro nas campanhas eleitorais e denunciam abuso de poder econômico, captação ilícita de recursos financeiros, corrupção e fraude. Os pesquisadores não levaram em conta casos mais comuns, como crimes contra a honra e publicidade irregular. O objetivo foi saber em que medida o poder financeiro interfere no processo eleitoral. 

Financiada pela Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa e pela Fapesp e realizada por cientistas políticos da USP/Leste, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais da Universidade Federal do ABC, em parceria com o Departamento de Sociologia da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, a pesquisa aponta o peso dos recursos financeiros no sucesso eleitoral. O risco de a democracia ser corroída pela força do dinheiro, uma vez que candidatos que gastam mais tendem a obter mais votos, é um tema clássico nos estudos de ciência política. Nos pleitos analisados, a diferença média de gastos entre os candidatos que se elegeram vereadores e os derrotados foi de 629% em 2008, de 685% em 2012 e de 664% em 2016. A pesquisa também mostra que as campanhas eleitorais para o Executivo municipal estão cada vez mais profissionalizadas, com a formação de custosas equipes profissionais de advogados, publicitários e contadores. “Os políticos perceberam a importância da via jurídica e a usam cada vez mais. O resultado é a formação de um exército de advogados especializados”, diz Vanessa de Oliveira, uma das coordenadoras do estudo.

Segundo a pesquisa, entre as eleições municipais de 2008 e 2012 a possibilidade de um candidato a prefeito processar um adversário cresceu 293%. Na comparação desses pleitos com o de 2016, o porcentual caiu um pouco, em parte por causa de uma decisão de 2015 que proibiu doações de empresas, mas permaneceu alto. “A contestação eleitoral é essencialmente contra candidatos competitivos, talvez porque a Justiça não tenha recursos para examinar todos, talvez porque os candidatos usem os processos como arma política contra quem está na frente”, afirma outro coordenador da pesquisa, Wagner Mancuso. 

Desse modo, a judicialização tem duas facetas distintas, conclui o estudo. Se por um lado tende a tornar o processo eleitoral mais honesto, evitando abusos e estratégias desleais, por outro permite que o mau perdedor recorra à estratégia da judicialização do processo eleitoral para tentar a sorte. Ou seja, muitos candidatos apelam para a Justiça Eleitoral tanto para influenciar o resultado político como para marcar posição, simbolicamente, sobre determinadas questões.

Ao divulgar esse levantamento em sua revista Pesquisa, a Fapesp menciona outras importantes investigações quantitativas sobre gastos em processos eleitorais que estão sendo realizadas por outros grupos acadêmicos no País. Em princípio, iniciativas como essas cobrem apenas o período posterior a 2008, quando as ações judiciais foram digitalizadas. O acesso aos processos em papel envolvendo pleitos anteriores exigiria um esforço extraordinário. Ao estudar a relação entre o poder econômico de alguns candidatos e a crescente judicialização dos resultados eleitorais, essas pesquisas permitem um novo olhar sobre a democracia brasileira.

Autonomia do BC é avanço, mas fica longe do ideal – Opinião | O Globo

É positiva a aprovação na Câmara da nova lei que concede autonomia operacional ao Banco Central. O BC precisa ser gerido com base em princípios técnicos e preservado de ingerências políticas, cujo resultado pode ser desastroso, como já ficou demonstrado diversas vezes na história brasileira (a última delas com o “cavalo de pau” dado na taxa de juros durante a gestão de Alexandre Tombini). A nova lei dá um passo importante, ao deixar explícito o mecanismo que, mesmo que de modo imperfeito, vinha funcionando implicitamente nas últimas décadas. Apesar disso, não significa que seja uma solução ideal.

Está claro que foi aprovada a toque de caixa para que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pudesse transmitir ao mercado um sinal de compromisso com a agenda liberal de reformas, sabotada com frequência pelo presidente Jair Bolsonaro. Mas é um sinal fraco, insuficiente. O projeto, já aprovado no Senado, era fruta madura, pronta para ser colhida. Não havia grandes resistências a enfrentar, a não ser a choradeira previsível — e equivocada — dos partidos de esquerda. Se quiser mesmo conquistar o mercado, Lira precisará encarar a parte difícil da agenda, com as PECs emergencial e dos fundos públicos, além das reformas administrativa e tributária.

Não foi apenas no aspecto político que a aprovação da nova lei deixou a desejar. O texto que vai à sanção de Bolsonaro embute riscos que o país terá de mitigar no futuro. É essencial ressaltar que a nova lei não concede ao BC a independência usufruída por congêneres como o Fed americano, que define as próprias metas inflacionárias para depois cumpri-las. A justificativa é que isso seria incoerente com a natureza essencialmente política do nível de inflação e endividamento que a sociedade se dispõe a tolerar.

A lei aprovada mantém no Executivo, por meio do Conselho Monetário Nacional, a prerrogativa de estabelecer as metas de inflação. O que ela faz é garantir ao BC a autonomia necessária para persegui-las por meio das taxas de juro e dos demais mecanismos de política monetária. Também aproxima o país da governança de economias desenvolvidas, ao estabelecer, para a diretoria do BC, mandatos descasados do presidencial.

O maior erro não é deixar de trazer para o Brasil a independência absoluta, mas importar do Fed uma outra característica, conhecida entre economistas como “mandato duplo”. Trata-se da missão de perseguir metas de inflação e de zelar, ao mesmo tempo, pelo nível de emprego. Estipula que a segunda missão deve estar subordinada à primeira, mas faz isso com uma formulação ambígua, que poderá estar sujeita a interpretações criativas no futuro.

Os mecanismos técnicos para o controle da inflação estão consolidados há anos, enquanto a discussão sobre o nível de desemprego tolerável (não inflacionário) ainda é objeto de debate acadêmico inflamado. Trazer esse debate para a lei torna a questão mais um pretexto para manipulação política. Embora o mandato duplo tenha entrado na pauta noutras economias mais avançadas, na prática ele se revela desnecessário, na medida em que os BCs independentes não têm se furtado, diante das maiores crises da história, a agir com sensibilidade política e a fazer o que precisa ser feito para estimular a economia.

Com números da Covid-19 em alta, é urgente reabilitar leitos de UTI – Opinião | O Globo

Não é segredo que o contágio pelo novo coronavírus voltou a acelerar no final do ano passado, após breve trégua, e ganhou impulso no início de 2021, após as previsíveis aglomerações das festas de fim de ano. Os sinais de estresse na redes pública e privada de saúde estão por toda parte, especialmente nos estados da Região Norte, onde as atuais cenas de horror, com pacientes morrendo asfixiados, superam em muito as dos piores momentos do início da pandemia, quando câmeras frigoríficas instaladas nos hospitais e engarrafamentos de carros funerários à porta dos cemitérios chocaram o país.

Obviamente, um cenário dessa gravidade pressupõe reforço nas estruturas de saúde para atender ao inexorável aumento da demanda. Na lógica torta do Ministério da Saúde, faz-se o contrário. Quando é mais necessário aumentar o atendimento aos pacientes de Covid-19, o ministério reduz a menos da metade o número de leitos de UTI. Dos atuais 6.830 habilitados, ficarão 3.187 até o fim de fevereiro. Em janeiro, eram 7.717.

Com razão, governadores pedem socorro. João Doria, de São Paulo, e Flávio Dino, do Maranhão, apelaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigar o ministério a reabilitar os leitos de UTI. O Consórcio da Amazônia, que reúne nove governadores, divulgou carta à nação afirmando que o problema poderá comprometer o enfrentamento da pandemia.

O Ministério da Saúde alega que não desabilitou leitos de UTI. Segundo a pasta, o orçamento de guerra e o estado de calamidade pública expiraram em 31 de dezembro, e o orçamento para este ano já está todo comprometido. Sem recursos, a Saúde pediu ao Ministério da Economia R$ 5,2 bilhões, negociados depois para R$ 2,8 bilhões. A pergunta óbvia: o governo não sabia que a contratação dos leitos expiraria em meio à segunda onda da pandemia? Ficou por isso mesmo? Não se planejou? Por acaso não é uma situação de calamidade pública gente morrendo por falta de oxigênio? Ou pacientes de Manaus terem de ser transferidos a Curitiba, a quase três mil quilômetros de distância?

É incrível como o governo federal se mostra insensível ao que se passa diante de seus olhos. Há três semanas, a média de mortes por Covid-19 apurada pelo consórcio de imprensa passa de mil. A taxa de contágio divulgada na segunda-feira pelo Imperial College de Londres continua acima de 1 (1,02) — o que significa epidemia ainda em aceleração. Em pelo menos nove estados, a ocupação dos leitos de UTI supera os 80%. Em alguns, chega a 100%, e o jeito é transferir o paciente.

O episódio é mais um a demonstrar a gestão desastrosa da dupla Bolsonaro & Pazuello na Saúde. É assim na prevenção, no atendimento aos doentes e na vacinação (que segue em ritmo lento por falta de vacina). Não há justificativa plausível para não contratar logo mais leitos de UTI. O governo deveria saber que a situação de calamidade expirou só no papel. 

A maturidade do BC – Opinião | Folha de S. Paulo

Com autonomia em lei, autarquia deve ampliar transparência e prestação de contas

Decorridos 56 anos desde sua criação e depois de laboriosa trajetória de construção e legitimação institucional, o Banco Central brasileiro terá sua autonomia reconhecida em lei. Embora não se trate de panaceia, ficam reforçados os pilares da gestão monetária responsável, com benefícios para a estabilidade econômica e o bem-estar social.

Em votação final pela Câmara dos Deputados, o projeto foi aprovado por ampla maioria, de 339 a 114, evidência nem tanto de convicção dos parlamentares, mas da força da nova aliança do presidente Jair Bolsonaro com o centrão. Mesmo assim, a escolha da autonomia como teste da coalizão não deixa de refletir a decantação do tema.

O texto, que segue para sanção presidencial, estabelece a estabilidade de preços como objetivo principal da autoridade monetária. Subsidiariamente, e dentro de suas possibilidades, o BC também deverá zelar pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro, suavizar flutuações econômicas e fomentar o pleno emprego.

A hierarquia é correta para evitar conflitos entre vários objetivos e o risco de elevação das expectativas de inflação. Trata-se de orientação consolidada na lista amplamente majoritária de países desenvolvidos que optaram pela autonomia de seus bancos centrais.

Outro dispositivo fundamental é a definição de mandatos de quatro anos para o presidente e a diretoria, não coincidentes entre si nem com o do presidente da República, permitida uma recondução.

O Planalto continua a indicar os dirigentes, que precisam ser aprovados pelo Senado, mas a demissão fica mais difícil. O BC também deixa de ser vinculado ao Ministério da Economia e passa a ter status de autarquia de natureza especial, sem subordinação hierárquica. Fica assim reforçada a blindagem contra interferências políticas.

Não procedem os argumentos de falta de controle democrático, já que o poder político eleito continuará a indicar os executivos e a definir a meta de inflação. Ao órgão caberá apenas o uso dos instrumentos de que dispõe —principalmente o controle da taxa básica de juros— para cumprir o comando que recebeu.

A autonomia, para ser sólida, também deve ser resultado de avanços institucionais que se acumulam no tempo. Um dos mais fundamentais é a proibição de que a autoridade monetária financie diretamente o governo, algo já consagrado na legislação brasileira.

A contrapartida a se exigir dos dirigentes do BC, ainda mais agora, é o compromisso com a transparência. Reuniões gravadas e tornadas públicas ao longo do tempo, clareza quanto aos métodos e decisões e conduta austera dos dirigentes podem e devem ser reforçadas.

Fiasco amazônico – Opinião | Folha de S. Paulo

Operação militar contra desmatamento se aproxima do fim com resultados pífios

Por qualquer ângulo que se analise a Operação Verde Brasil 2, liderada pelas Forças Armadas com o objetivo de coibir o desmatamento e as queimadas na Amazônia, é difícil não considerá-la um fiasco.

Iniciada em maio do ano passado e com encerramento previsto para 30 de abril, a missão se notabilizou por fazer pouco com muito. Embora tenha recebido vultosos recursos, num momento em que os órgãos oficiais de controle sofrem com a penúria orçamentária, foi incapaz de deter a destruição.

Nos oito primeiros meses da empreitada, o número de multas aplicadas por infrações contra a flora despencou 37% em relação ao mesmo período de 2019-2020.

Já a taxa oficial de desmatamento saltou 9,5% no ano passado na comparação com 2019, num intervalo parcialmente coberto pela operação militar. Pouco mais de 11 mil km² de vegetação amazônica, a maior cifra desde 2008, desapareceram pelas mãos de grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais.

O mesmo ocorreu com as queimadas, fenômeno ligado ao desflorestamento. Em 2020, os focos de incêndio aumentaram 15% com relação ao ano anterior, com agosto e setembro tendo registrado os segundos piores índices para o período na última década.

Seria talvez o caso de apenas lamentar a imperícia do Exército para a tarefa, de resto previsível, dada a falta de experiência da Força nesse tipo de ação, não fossem os custos exorbitantes da operação.

Com aporte de R$ 410 milhões, a Verde Brasil 2 consumiu mais de três vezes o orçamento do Ibama e do ICMBio para a fiscalização ambiental e o combate a incêndios proposto para 2021. Essas instituições voltarão a comandar o combate à devastação amazônica, depois que o Exército deixar a região.

Na nova fase, as ações ficarão concentradas em 11 municípios, que, segundo o vice-presidente, general Hamilton Mourão, responsável por coordenar a atuação de ministérios na área ambiental, concentram parte relevante do desmatamento do bioma.

A estratégia é correta e já foi utilizada com sucesso nos governos petistas, embora, comparado a esse período, o número de cidades anunciado pareça pequeno.

Não é preciso reinventar a roda nessa questão. O Brasil já provou sua competência para enfrentar a chaga do desmatamento. Repetir o feito exige, além de uma ação inteligente, independência de atuação, recursos e respaldo institucional.

Banco Central ganha afinal necessária autonomia  - Opinião | Valor Econômico

A autonomia do BC não preclude a transparência do sistema

Quase sexagenário, o Banco Central voltará a ser autônomo, como o foi em um breve período após sua fundação, no último dia de 1964, já na ditadura militar. Aprovado por larga margem pelo Senado e pela Câmara, a lei que estabelece a autonomia é simples, em contraste com as polêmicas que o tema provocou ao longo de três décadas. O presidente a direção do BC terão mandatos de quatro anos, não coincidentes com os do presidente da República, e renováveis por um período. O objetivo fundamental do BC será “assegurar a estabilidade de preços”. Os dirigentes poderão ser demitidos por vários motivos, entre os quais se inclui “o comprovado e recorrente desempenho insuficiente”.

Com a autonomia, o BC ficará blindado contra pressões políticas que poderiam desviar a condução da política monetária de seu alvo principal, a inflação, e mudá-la ao sabor de interesses políticos ou eleitorais do governo de turno. As diferenças em relação ao regime atual parecem pequenas devido ao desempenho do BC durante mais de duas décadas de autonomia operacional respeitada pelos sucessivos presidentes da República. A base desse funcionamento, porém, era informal. O presidente poderia demitir a direção do BC a qualquer hora.

As críticas que o projeto recebeu e recebe se repetem. As mais simplistas apontam que não se pode entregar assunto vital como a política monetária a banqueiros centrais, que sequer foram eleitos. Ou, em outra versão, como a do ex-candidato à Presidência, Ciro Gomes (PDT): “Você pode votar para presidente, mas o presidente eleito não vai poder controlar o BC”. A lei deixa claro que em meio do mandato, o presidente poderá escolher quem dirigirá o BC e indicar vários diretores.

Já o controle da instituição pelo presidente e do Congresso, eleitos pelo povo, estará assegurado pela prerrogativa de definir a meta que o BC deverá atingir e pelo método de escolha de seus dirigentes. O presidente da República submeterá os nomes que julgar adequados ao Senado, que após sabatina, o aprovará ou não. Depois, o ministro da Economia, o secretário da Fazenda, ligados ao Executivo, junto com o BC, no Conselho Monetário Nacional, estabelecerão a meta de inflação a ser perseguida. A autonomia não impede que o atual governo ou o próximo julguem que a meta deva ser muito maior ou menor. O BC não será independente, isto é, não escolherá seu próprio objetivo, como o Federal Reserve americano ou o Banco Central Europeu.

Da mesma forma, a autonomia não facilitará, ou não mais do que hoje, a “captura” do BC pelos bancos, por motivo idêntico - as escolhas têm de ser referendadas pelos senadores. Pode até existir uma recorrente servidão do Senado aos interesses financeiros do mercado, como muitos apontam, mas ela será, em todo caso, uma servidão voluntária, que pode ser corrigida nas eleições.

Há argumentos mais sofisticados, como o de que a autonomia limita a capacidade da política fiscal de distribuir recursos, logo a renda. Erram o alvo: no Brasil, o que se vê é que é o orçamento da União, da alçada do Congresso, é que aloca erradamente os recursos de acordo com lobbies das corporações e grupos de interesse, assim como o faz a política tributária - sob inteira e cabal responsabilidade de políticos eleitos.

Mas, em alguma medida, a autonomia do BC pode limitar a capacidade da política fiscal não de distribuir recursos, e sim de fazê-lo o quanto quiser - com juros que não sancionem emissões monetárias irresponsáveis que tenham claro impulso inflacionário. A cooperação desejável com o Tesouro, braço do Executivo, encontrará no BC autônomo um controlador da austeridade fiscal, cujo desrespeito trará custos maiores (juros) para toda a sociedade. É o que o BC já diz hoje em suas atas.

A autonomia não é panaceia. Governos fazem más escolhas, assim como os senadores, que não têm o hábito de questionar em profundidade os indicados para a função. Populistas como Donald Trump, por exemplo, indicaram pessoas despreparadas, que defendiam, por exemplo, a volta do padrão ouro, mas foram barrados pelo Senado americano. Tudo dependerá da qualidade da escolha e do preparo dos que devem julgá-la. Escolhas ruins podem fazer enormes estragos, com ou sem autonomia.

A autonomia do BC não preclude a transparência do sistema, cuja avaliação tornou-se mais fácil com as metas de inflação. O quadro institucional sob o qual se executa a política monetária deu um salto de qualidade.

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