Herbert
de Souza, o Betinho, sociólogo que, com a Ação da Cidadania nos anos 1990, içou
o combate à miséria ao topo das prioridades nacionais, eternizou a frase “quem
tem fome tem pressa”. A sentença tornou-se lema de quem compreende a urgência
de políticas de enfrentamento à vulnerabilidade social em ambiente de terra
arrasada. No Brasil do presidente Jair Bolsonaro, da equipe econômica de Paulo
Guedes, da Câmara de Arthur Lira, do Senado de Rodrigo Pacheco, autoridades
correm para votar a releitura 2019 de um projeto de autonomia do Banco Central
proposto há 30 anos. A onda em Brasília é priorizar velhas agendas, enquanto a
população, acossada por desemprego, falta de dinheiro e carestia, mastiga o pão
que o diabo amassou.
A pandemia da Covid-19 desmascarou a desigualdade brasileira e cobrou do poder público respostas rápidas contra a crise sanitária, a pane da atividade econômica e o agravamento das condições de vida. A mais robusta delas foi o auxílio emergencial, um programa de transferência de renda elaborado a toque de caixa por um governo sob pressão da sociedade civil e do Congresso Nacional. Depois de resistir, o Ministério da Economia sugeriu repasse de R$ 200 por mês a pobres, desempregados, trabalhadores informais e microempreendedores individuais, até então invisíveis aos olhos do Estado. A proposta passou a R$ 500 no Parlamento e terminou aprovada por R$ 600, pela obsessão do presidente da República em dar a última palavra.
A
gravidade da pandemia tornava óbvio que três meses de auxílio emergencial não
seriam suficientes para aplacar as consequências nefastas na economia e na
sobrevivência das famílias. O isolamento social elevou a demanda por
alimentação no domicílio, porque crianças deixaram de comer na escola, e
trabalhadores, nas empresas. Anabolizados também pela demanda crescente da
China, os preços dos alimentos dispararam. Do arroz ao leite, do feijão ao
tomate, das carnes às frutas, da batata ao óleo de soja, os reajustes foram os
maiores em quase duas décadas. A transferência de renda livrou o país da fome.
No
fim de 2019, um em cada dez brasileiros vivia com menos de R$ 246 por mês,
linha de pobreza do economista Marcelo Neri, da FGV Social. A proporção de
pobres caiu à metade, para 4,96%, em setembro do ano passado, quando o governo
anunciou que pagaria a última de cinco parcelas do auxílio emergencial de R$
600. A partir dali, e até o fim de 2020, 68,2 milhões de beneficiários
passariam a receber R$ 300. O efeito imediato do corte, sem contrapartida em
recuperação robusta do mercado de trabalho, foi o aumento da vulnerabilidade
social. Neri estimou que, ao fim de novembro, a pobreza alcançara 8,52%. Agora,
após o primeiro mês e meio sem o benefício, bateu 12,83%, patamar superior ao
registrado antes da pandemia.
A
vulnerabilidade social galopante está sendo agravada pela atividade econômica à
meia bomba, pela violenta segunda onda da pandemia no Brasil e pelo plano de
imunização travado pela escassez de vacinas. A gestão equivocada da crise sanitária
por um ministro da Saúde obediente a um presidente desumano e incompetente
atrapalha a economia e exige nova etapa do programa de transferência de renda.
O auxílio emergencial já deveria estar no bolso dos brasileiros, mas tanto
Executivo quanto Legislativo passaram a segunda metade do ano passado ocupados
com eleições municipais, sucessão no Congresso Nacional e debate infrutífero
sobre reformas do Estado.
Assim
o Brasil chegou a fevereiro de 2021 sem Orçamento, sem previsão de gastos, sem
desenho da política social capaz de livrar os brasileiros da vulnerabilidade
súbita e ocasional e da pobreza estrutural, de longo prazo. Em janeiro, o
Ministério da Cidadania pagou R$ 190 em média a 14,2 milhões de beneficiários
do velho Bolsa Família. Ficaram de fora mais de 50 milhões de pessoas
alcançadas pelo auxílio emergencial em 2020, programa tão necessário quanto
caro. Sorveu quase R$ 300 bilhões, também por ter sido mal calibrado e
elaborado sem parceria com órgãos estaduais e municipais de assistência social.
O governo sabe que terá de ressuscitar o programa, porque a crise social não espera, o mundo político e a sociedade civil pressionam, o presidente sentiu a perda de popularidade. Ainda ontem, Bolsonaro anunciou a volta do benefício por poucos meses no Maranhão, estado onde 60% dos lares receberam o auxílio em 2020. Foi estratégia de afago ao Nordeste, cujo eleitorado importa nos planos de reeleição em 2022. O drama de Paulo Guedes é levantar recursos para o programa sem ampliar o Bolsa Família, para fugir do gasto fixo, nem instituir novo imposto. As estatísticas do IBGE sobre vendas do comércio (-6,1%) e volume de serviços (-0,2%) em dezembro deram pistas sobre como a economia piora sem o consumo dos mais pobres. O colchão que diminuiu o tombo do Produto Interno Bruto no ano passado esvaziou. Sem ele, o governo murcha junto.
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