sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

José de Souza Martins* – O padre e a pedra

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A colocação de paralelepípedos nos espaços de uso dos moradores de rua é uma forma de tirar o já tirado de quem nada tinha

Em dias passados, na cidade de São Paulo, funcionários da prefeitura cobriram de paralelepípedos calçadas que ficam sob viadutos do bairro da Mooca, o bairro com maior número de moradores de rua. Eles têm ali o seu dormitório. Como acontece com a via elevada, conhecida como Minhocão, e marquises de edifícios do centro da cidade.

Uma voz se levantou contra a brutalidade, a do padre Júlio Lancelotti, da Pastoral Católica do Povo da Rua, que levantou também os braços, segurando firme a marreta com que atacou as pedras para desfazer o malfeito. As marretadas do padre Júlio repercutiram. Até o papa lhe telefonou e com ele se solidarizou.

Logo surgiram desculpas e desfazimentos. O poder público achou, culpou e demitiu um funcionário, responsabilizando-o pelo ocorrido. Aqui, a culpa nunca é de quem manda. É quase sempre de quem obedece.

Nesta sociedade do avesso, como acontece em outros recantos do país, essas pedras usurpadoras do leito duro dos pobres da rua podem ser consideradas variantes impoéticas do poema de Carlos Drummond de Andrade, “No Meio do Caminho”.

Pedras reais e pedras simbólicas, pedras políticas, pedras de direita, pedras de cima, pedras de baixo, pedras da classe média, pedras dos pobres nos pobres, pedras dos donos do poder que têm poder, mas não têm discernimento sobre as questões sociais, pedras de gente que é estrangeira na própria pátria que domina porque não tem ideia de que a pátria é feita de gente, de carências que não estão sendo atendidas no essencial.

Acrescenta Drummond ao seu poema: “Na vida de minhas retinas tão fatigadas nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra”. Ele viu a pedra do meio do caminho porque via a vida na perspectiva da poesia e do sonho. A pedra a ser contornada e superada, não a pedra a ser atirada. O oposto dos que veem a pedra apenas quando levam uma pedrada.

Os fatores que expulsam as pessoas para a moradia nas ruas são, em princípio, fatores externos à sua vida. Mas há quem considere, mesmo no poder público, que o morador de rua é vítima de si mesmo, porque derrotado na competição pelo emprego e por melhores condições de vida. Como se morar na rua fosse uma opção de vida.

Os paralelepípedos dessa violência indicam o que é o entendimento subjacente a ela. Quem pôs essas pedras ali fala por meio delas e do que significam no propósito com que foram usadas. E nos diz que, no seu entendimento, suprimir desse modo a visibilidade do problema social resolve-o.

Aqui a política social em relação aos moradores de rua é ou a de esconder sua existência e os indícios da deterioração social que na situação de rua representam ou a de medidas tópicas para acomodar precariamente as vítimas. Não temos políticas de previsão de problemas sociais decorrentes de transformações econômicas. Nem de correção das irracionalidades da economia.

Em São Paulo, um censo de 2019 mostrou que havia 24.344 moradores de rua. Medidas como a colocação de pedras onde não deveriam estar e outras alterações físicas dos espaços por eles ocupados, especialmente à noite, têm por objetivo expulsá-los dos lugares em que se abrigam sem indicar-lhes o abrigo alternativo e a economia alternativa de uma integração possível.

Na irracionalidade antissocial de um caso como esse, a explicação que sobra é a de que o objetivo de semelhante medida é o de remover o morador de rua da paisagem. Invisibilizá-lo. Criar a falsa paisagem urbana da cidade civilizada utilizando os instrumentos da barbárie.

Esta é uma sociedade baseada num modelo econômico, num modelo social e num modelo urbano em que não cabem todas as pessoas que nela vivem e procuram viver. Uma tabela oficial de explicações de causas da situação desses numerosos moradores de rua cita as migrações. Os problemas viriam de fora. O que é plausível. Mas a função da cidade é acolher e integrar quem a procura. E não a de criar espaços antiurbanos de exclusão social e ao mesmo tempo reprimir e inviabilizar essa possibilidade extrema e anômala.

A colocação de paralelepípedos nos espaços de uso dos moradores de rua é uma forma de tirar o já tirado de quem nada tinha. Somos criativos. Estamos inventando o nada de coisa nenhuma, expropriando o já pilhado, esvaziando o vazio. É para encobrir as visibilidades desta sociedade de absurdos que os poderes criaram o paisagismo do mal. Ele já impregnou a própria administração pública.

A Prefeitura de São Paulo, com a repercussão do fato, correu para desmontar o cenário e remover as pedras. Culpou um funcionário. Mas ele só o faz quando compartilha a microcultura das vontades não confessadas, adivinhadas em gestos, meias palavras dos ambientes e grupos de sua referência.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).

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