A
colocação de paralelepípedos nos espaços de uso dos moradores de rua é uma
forma de tirar o já tirado de quem nada tinha
Em
dias passados, na cidade de São Paulo, funcionários da prefeitura cobriram de
paralelepípedos calçadas que ficam sob viadutos do bairro da Mooca, o bairro
com maior número de moradores de rua. Eles têm ali o seu dormitório. Como
acontece com a via elevada, conhecida como Minhocão, e marquises de edifícios
do centro da cidade.
Uma
voz se levantou contra a brutalidade, a do padre Júlio Lancelotti, da Pastoral
Católica do Povo da Rua, que levantou também os braços, segurando firme a
marreta com que atacou as pedras para desfazer o malfeito. As marretadas do
padre Júlio repercutiram. Até o papa lhe telefonou e com ele se solidarizou.
Logo
surgiram desculpas e desfazimentos. O poder público achou, culpou e demitiu um
funcionário, responsabilizando-o pelo ocorrido. Aqui, a culpa nunca é de quem
manda. É quase sempre de quem obedece.
Nesta
sociedade do avesso, como acontece em outros recantos do país, essas pedras
usurpadoras do leito duro dos pobres da rua podem ser consideradas variantes
impoéticas do poema de Carlos Drummond de Andrade, “No Meio do Caminho”.
Pedras reais e pedras simbólicas, pedras políticas, pedras de direita, pedras de cima, pedras de baixo, pedras da classe média, pedras dos pobres nos pobres, pedras dos donos do poder que têm poder, mas não têm discernimento sobre as questões sociais, pedras de gente que é estrangeira na própria pátria que domina porque não tem ideia de que a pátria é feita de gente, de carências que não estão sendo atendidas no essencial.
Acrescenta
Drummond ao seu poema: “Na vida de minhas retinas tão fatigadas nunca me
esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra”. Ele viu a pedra do meio do
caminho porque via a vida na perspectiva da poesia e do sonho. A pedra a ser
contornada e superada, não a pedra a ser atirada. O oposto dos que veem a pedra
apenas quando levam uma pedrada.
Os
fatores que expulsam as pessoas para a moradia nas ruas são, em princípio,
fatores externos à sua vida. Mas há quem considere, mesmo no poder público, que
o morador de rua é vítima de si mesmo, porque derrotado na competição pelo
emprego e por melhores condições de vida. Como se morar na rua fosse uma opção
de vida.
Os
paralelepípedos dessa violência indicam o que é o entendimento subjacente a
ela. Quem pôs essas pedras ali fala por meio delas e do que significam no propósito
com que foram usadas. E nos diz que, no seu entendimento, suprimir desse modo a
visibilidade do problema social resolve-o.
Aqui
a política social em relação aos moradores de rua é ou a de esconder sua
existência e os indícios da deterioração social que na situação de rua
representam ou a de medidas tópicas para acomodar precariamente as vítimas. Não
temos políticas de previsão de problemas sociais decorrentes de transformações
econômicas. Nem de correção das irracionalidades da economia.
Em
São Paulo, um censo de 2019 mostrou que havia 24.344 moradores de rua. Medidas
como a colocação de pedras onde não deveriam estar e outras alterações físicas
dos espaços por eles ocupados, especialmente à noite, têm por objetivo
expulsá-los dos lugares em que se abrigam sem indicar-lhes o abrigo alternativo
e a economia alternativa de uma integração possível.
Na
irracionalidade antissocial de um caso como esse, a explicação que sobra é a de
que o objetivo de semelhante medida é o de remover o morador de rua da paisagem.
Invisibilizá-lo. Criar a falsa paisagem urbana da cidade civilizada utilizando
os instrumentos da barbárie.
Esta
é uma sociedade baseada num modelo econômico, num modelo social e num modelo
urbano em que não cabem todas as pessoas que nela vivem e procuram viver. Uma
tabela oficial de explicações de causas da situação desses numerosos moradores
de rua cita as migrações. Os problemas viriam de fora. O que é plausível. Mas a
função da cidade é acolher e integrar quem a procura. E não a de criar espaços
antiurbanos de exclusão social e ao mesmo tempo reprimir e inviabilizar essa
possibilidade extrema e anômala.
A
colocação de paralelepípedos nos espaços de uso dos moradores de rua é uma
forma de tirar o já tirado de quem nada tinha. Somos criativos. Estamos
inventando o nada de coisa nenhuma, expropriando o já pilhado, esvaziando o
vazio. É para encobrir as visibilidades desta sociedade de absurdos que os
poderes criaram o paisagismo do mal. Ele já impregnou a própria administração
pública.
A
Prefeitura de São Paulo, com a repercussão do fato, correu para desmontar o
cenário e remover as pedras. Culpou um funcionário. Mas ele só o faz quando
compartilha a microcultura das vontades não confessadas, adivinhadas em gestos,
meias palavras dos ambientes e grupos de sua referência.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
Nenhum comentário:
Postar um comentário