sábado, 18 de janeiro de 2020

O que a mídia pensa – Editoriais

Bolsonaro e sua circunstância – Editorial | O Estado de S. Paulo

Não causa surpresa o derretimento acelerado da popularidade do presidente Jair Bolsonaro detectado por uma pesquisa XP/Ipespe recentemente divulgada. O levantamento mostrou que, em um ano, a expectativa positiva em relação ao desempenho do governo para o restante do mandato caiu nada menos que 23 pontos porcentuais, de 63% para 40%. O índice de entrevistados que consideram Bolsonaro “ruim” ou “péssimo” passou de 20% para 39% no mesmo período. Pode-se dizer que esses números refletem não um ou outro problema em especial, mas o conjunto da obra.

O governo Bolsonaro parece se esforçar para inspirar em cada vez mais brasileiros a sensação de que suas decisões estapafúrdias, que carecem de lastro jurídico ou mesmo de racionalidade, não são meros acidentes ou fruto de circunstâncias passageiras, e sim reflexo preciso daquilo que o presidente é.

Não se trata apenas de despreparo para o cargo, dificuldade que se poderia amenizar com alguma dedicação aos livros e atenção aos conselhos de quem já viveu a experiência de governar; a esta altura, passado um ano de mandato, já está claro que Bolsonaro desacredita deliberadamente o exercício da Presidência porque não saberia fazer de outra forma e, graças a essa limitação insuperável, convenceu-se de que foi eleito para desmoralizar a política e sua liturgia institucional, algo que ele faz como ninguém. Vista em retrospectiva, a reunião ministerial em que o presidente apareceu de chinelos e camisa (falsificada) de time de futebol logo nos primeiros dias de governo parece hoje, perto do que já vimos, um encontro de estadistas.

Num dia, o ministro da Educação aparece num vídeo dançando com um guarda-chuva, numa imitação circense do filme Dançando na Chuva, para acusar seus críticos de difundirem fake news; noutro, o secretário da Cultura toma emprestado trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, para anunciar o advento de uma cultura “nacional” financiada pelo Estado, causando horror e estupefação no País e fora dele. Entre um e outro desses momentos nada edificantes de seus assessores, o próprio presidente Bolsonaro achou tempo e oportunidade para fazer piadas de mau gosto sobre um vasto cardápio de temas grosseiros, como se estivesse em um churrasco com amigos.

Enquanto isso, sempre que pressionado a tomar decisões realmente relevantes para o País, como autorizar privatizações potencialmente polêmicas, cortar privilégios de servidores públicos e reduzir subsídios, o presidente hesitou. Mesmo a reforma da Previdência, que o governo celebra como um feito de Bolsonaro, foi sabotada em vários momentos pelo presidente, tendo sido aprovada graças à mobilização de parlamentares e alguns técnicos do governo. Preocupado em construir seu próprio partido e sua candidatura à reeleição, sobre a qual fala quase todos os dias, Bolsonaro dedica todo o seu tempo não a pensar em maneiras de promover o desenvolvimento do País, mas a alimentar polêmicas de cunho claramente eleitoreiro, enquanto assina medidas destinadas à irrelevância – mas só depois de causar tumulto e insegurança jurídica no País.

Quando confrontado pelos jornalistas a respeito disso ou a respeito dos cada vez mais volumosos problemas do clã Bolsonaro e de alguns de seus assessores mais próximos com a Justiça ou com a lisura administrativa, o presidente reage de forma truculenta. Mais recentemente, disse que os jornalistas são uma “espécie em extinção” e mandou que a imprensa tomasse “vergonha na cara” e tratasse de “deixar o governo em paz”.

Não são rompantes, e perde tempo quem acredita na possibilidade de que, com o tempo, Bolsonaro vá temperar seu comportamento. O assessor que se inspirou em Goebbels para anunciar o “renascimento da cultura nacional” só foi exonerado porque houve uma grita generalizada diante de tamanho absurdo. Noves fora o plágio nazista, o conteúdo da fala que custou o cargo ao tal secretário é essencialmente o que Bolsonaro já disse e repetiu inúmeras vezes, mesmo antes da eleição. Portanto, ninguém pode se dizer surpreendido, nem mesmo os eleitores mais ingênuos. Bolsonaro é Bolsonaro há muito tempo.

A tenacidade da imprensa – Editorial | O Estado de S. Paulo

Dirigindo-se a “essa imprensa” que trabalhava na cobertura da troca de comando da Operação Acolhida, no Palácio do Planalto, na quinta-feira passada, um exaltado presidente Jair Bolsonaro disse que os jornalistas deveriam “tomar vergonha na cara e deixar o nosso governo em paz”. Só assim, livre dessa chatice que é estar sob escrutínio do distinto público por intermédio de uma imprensa profissional e independente, o presidente poderá “levar harmonia ao nosso povo”.

Em primeiro lugar, harmonia e Jair Bolsonaro são noções antitéticas, basta olhar em retrospecto não só para o seu primeiro ano de governo, mas para as quase três décadas de vida parlamentar do atual chefe do Poder Executivo. Se Bolsonaro não está conseguindo “levar harmonia ao nosso povo”, definitivamente, não é por culpa da imprensa, e sim porque avença nunca foi do seu feitio. Muito ao contrário. A trajetória de sua ascensão política está indelevelmente marcada pelo confronto, nem sempre civilizado e democrático, contra tudo e todos que lhe são opostos.

Com tantos anos de vida pública, não é crível que o presidente da República desconheça que a imprensa profissional e independente, livre de quaisquer intimidações censórias, sejam de natureza física, moral ou econômica, é um dos sustentáculos da democracia. Seus reiterados ataques contra jornalistas e veículos de comunicação que não se submetem à reles bajulação do governo revelam que, como a concórdia, a democracia não goza de seu profundo apreço.

No ano passado, houve 208 ataques a jornalistas e veículos de comunicação no País, de acordo com o relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) divulgado no último dia 16. O número é 54% maior do que o registrado em 2018. Não é coincidência que no curso do primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro tenha se dado esse crescimento expressivo dos ataques à imprensa. Ainda de acordo com o relatório da Fenaj, o presidente foi diretamente responsável por nada menos do que 121 dos 208 ataques (58%). Ou seja, da elevada posição que ocupa na hierarquia da República, Bolsonaro não apenas estimula como pratica com impressionante regularidade a desqualificação da imprensa e dos jornalistas que ousam publicar aquilo que lhe desagrada.

A maioria dos ataques de Jair Bolsonaro contra jornalistas e veículos de comunicação foi categorizada pela Fenaj como “descredibilização da imprensa”. A entidade teve de criar a categoria para o relatório de 2020, tamanho o número de casos. “Em 2019, a modalidade (descredibilização da imprensa) tornou-se a principal forma de ameaça à liberdade de imprensa no Brasil e foi incluída no relatório em função da institucionalização dessa prática”, esclarece a Federação.

A Fenaj contabilizou no ano passado, além da participação do presidente da República, 2 homicídios, 28 casos de ameaça e intimidação, 15 casos de agressões físicas, 10 casos de censura ou impedimento do exercício regular da profissão, 5 ocorrências de cerceamento à liberdade de imprensa por ações judiciais, 2 casos de injúria racial e 2 ações de violência contra organizações sindicais de jornalistas. Confirmando tendência dos últimos seis anos, a maioria dos ataques à imprensa ocorreu na Região Sudeste (47% dos casos).

Jamais houve momento tranquilo para o livre exercício do bom jornalismo. Fazer jornalismo devotado aos fatos, com coragem e independência, implica desagradar, cedo ou tarde, àqueles que detêm poder, público ou privado, legal ou ilegal. É da essência do jornalismo profissional não se intimidar pelo poder quando este se interpõe entre as informações de interesse público e a sociedade.

O presidente Jair Bolsonaro não vai mudar o seu comportamento em relação à imprensa. Ele é o que é. A boa notícia é que a imprensa também é o que é e tampouco mudará o seu comportamento em relação à cobertura do governo de turno e dos que lhe sobrevierem. O jornalismo independente não se vergou quando atacado por forças muito mais poderosas do que as que ora se voltam contra ele. Não há de ser agora.

Peça tragicômica – Editorial | Folha de S. Paulo

Caso serve de alerta para sociedade sobre até onde o governo Bolsonaro é capaz de chegar

O episódio tragicômico de um vídeo lamentável com referências ao nazismo e a demissão do ex-secretário da Cultura Roberto Alvim revelam como a permissividade com o autoritarismo chancelada pelo presidente Jair Bolsonaro gera frutos cada vez mais nefastos.

Não fossem as atitudes cotidianas do próprio presidente da República nesse sentido, seria difícil imaginar que um auxiliar direto se sentisse livre para encenar uma peça tão descabida.

Nas ocasiões em que um de seus filhos, Eduardo, e um ministro, Paulo Guedes (Economia), aventaram a adoção de algo parecido com o AI-5 no Brasil, Bolsonaro não se incomodou, abrindo a porteira agora arrombada por Alvim.

Nesse caso, nem o principal ideólogo do obscurantismo bolsonarista acreditou: "É cedo para julgar, mas o Roberto Alvim talvez não esteja muito bem da cabeça”, comentou Olavo de Carvalho sobre o vídeo em que Alvim copia trechos de discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler.

Alvim havia postado a peça para divulgar o Prêmio Nacional das Artes, lançado horas antes de participar de uma transmissão ao vivo com o presidente. Em seu discurso, o ex-secretário repetiu frases de um pronunciamento de Goebbels para diretores de teatro durante o período da Alemanha nazista.

Além de copiar o discurso do famigerado ministro, Alvim usa no vídeo a mesma estética de Goebbels, imitando sua aparência e o tom de voz. Outra referência ao nazismo é a música de fundo, da ópera “Lohengrin”, de Richard Wagner, obra que Hitler contou em autobiografia ter sido decisiva em sua vida.

A peça só não é cômica pelo fato de ter sido feita a sério e produzida por alguém que deveria ser responsável pela cultura de um país democrático como o Brasil.

A falta de noção de Alvim foi tamanha que mesmo que quisesse apenas agradar o chefe, cujo retrato aparece ao fundo no vídeo em questão, teria se equivocado. Há cerca de um ano, o próprio Bolsonaro criticou indiretamente o nazismo ao afirmar que ele era um movimento de esquerda, numa tentativa estapafúrdia de vinculá-lo ao Partido dos Trabalhadores.

O obrigatório afastamento do ex-secretário bajulador foi rápido, mas não evitou que o governo Bolsonaro tenha afundado um pouco mais no ridículo perante a opinião pública, dentro e fora do país.

O episódio serve de lição para que o governo escolha com mais critério auxiliares para postos de responsabilidade —e de alerta para a sociedade e as instituições da República sobre até onde o governo Bolsonaro é capaz de chegar. Trata-se de uma linha vermelha que jamais deveria ter sido ultrapassada.

O inconcebível discurso nazista do secretário – Editorial | O Globo

Roberto Alvim, da Cultura, copia Goebbels, avança sobre o estado democrático de direito e é demitido

O secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, não resistiu muito mais que 24 horas no cargo depois de postar vídeo em que apresenta o “Prêmio Nacional das Artes” não apenas ecoando Joseph Goebbels, chefe da publicidade e propaganda de Hitler, mas mencionando palavras e formulações do próprio chefe nazista, na defesa de uma arte nacionalista, “imperativa”, “heroica”, acompanhado por uma trilha sonora com a ópera “Lohengrin”, de Richard Wagner, compositor alemão de música erudita, ícone no III Reich.

Foi demitido ontem, depois da grande e necessária reação na imprensa profissional, tão menosprezada e atacada pelo governo. Os presidentes da Câmara e Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, pronunciaram-se pedindo a demissão do secretário. O presidente do Supremo, Dias Toffoli, se referiu à ofensa à comunidade judaica. O vídeo chegou ao exterior, e a embaixada da Alemanha registrou em nota que o nazismo se constituiu o “capítulo mais sombrio da história alemã”. Foi animadora a reação de vigor na defesa de limites que não podem ser ultrapassados no estado democrático de direito. Mas a demissão não esgota o assunto, ao contrário, o revigora.

Há uma tentativa no meio bolsonarista de considerar que Alvim não está “bem da cabeça”. Maneira de até tentar-se amenizar — sem êxito — o ataque que ele, como diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, fez em setembro à atriz Fernanda Montenegro. Ali já era caso de demissão.

À época, a Secretaria — na verdade, o antigo Ministério da Cultura — estava subordinada à pasta da Cidadania, de Osmar Terra. Depois foi rebaixada para a de Turismo, sob a guarda de Marcelo Álvaro Antônio, investigado por haver semeado um laranjal no PSL mineiro para desviar dinheiro do Fundo Eleitoral.

A extrema direita no poder relega a área de cultura por considerá-la controlada pela esquerda. E assim aquela produção cultural e artística que depende de recursos do Estado, como acontece em todo o mundo, vai minguando, sem formar, sem desenvolver artistas e sem preservar a cultura nacional que o bolsonarismo tanto diz querer proteger.

O próprio prêmio apresentando por Alvim ao som de Wagner e com um discurso nazista será usado, percebe-se, com vieses, inclusive de uma visão religiosa que não cabe em um Estado republicano, laico por definição. Este uso do dinheiro público — liberando-o ou retendo-o — para manipular a produção cultural e artística ocorre desde o início do governo.

Nada muito diferente do que aconteceu no lulopetismo. Mas a intensidade com que ocorre chama a atenção. Roberto Alvim exagerou mais uma vez e caiu. O governo e as diretrizes oficiais continuam os mesmos. O surto de nazismo explícito de Roberto Alvim funciona para testar a sensibilidade de instituições e da sociedade para detectar o inadmissível. Teste positivo. Devem vir outros.

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