O Globo
Cena 1, janeiro de 1970: Os juízes da 1ª
Auditoria do Exército leem a sentença que condena a oito anos de prisão os oito
principais autores do sequestro do embaixador Charles Elbrick, ocorrido em
setembro do ano anterior.
(A ditadura vivia um pico da sua fase
repressiva. Carlos Marighella, patrono involuntário do sequestro, e Virgílio
Gomes da Silva, participante da ação, haviam sido assassinados.)
Cena 2, março de 2025: O ministro Alexandre
de Moraes condena a 14 anos de prisão a cabeleireira Débora Rodrigues dos
Santos. No dia 8 de janeiro de 2023, ela escreveu com batom “Perdeu, mané” na
estátua da Justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF),
em Brasília. Moraes foi acompanhado pelo ministro Flávio Dino.
Débora, mãe de dois filhos menores, está presa desde março de 2023. Ela escreveu uma carta ao ministro Moraes desculpando-se, mas ele acabou dando-lhe 14 anos. Como o ministro Luiz Fux pediu vista, o julgamento não terminou.
Os 14 anos de Débora seguem uma tendência do
STF, que vem impondo punições leoninas à infantaria golpista do 8 de Janeiro. O
tribunal já condenou 371 pessoas a penas que somam 3,3 mil anos de cadeia, e 71
cumpriam penas em janeiro passado. Seguindo essa métrica, os militares que
comprovadamente atuaram na armação de um golpe deveriam receber penas
seculares.
O repórter Merval Pereira já mostrou que
diversos juristas apontam que os réus têm sido condenados duas vezes pelo mesmo
crime: quatro anos por atentar contra o Estado Democrático de Direito, mais
cinco por tentar um golpe.
Estão em curso conversas que poderão
desembocar na redução das penas. Tudo bem, mas um Judiciário-ventoinha não
contribui para o bom andamento dos trabalhos. O país já teve de conviver com a
construção e o desmanche da Operação Lava-Jato. Na ascensão, o juiz Sergio Moro e
os procuradores tudo podiam. No declínio, nada fizeram de certo. O mané perdeu,
e nesse caso ele era o cidadão que acreditava no surto de moralidade em relação
ao andar de cima.
Os novos manés esperam que a Justiça cobre um
preço aos que tramaram o golpe de Estado de 2022/23 e, pelo andar da carruagem,
as coisas não vão bem. As sentenças impostas à infantaria vândala do 8 de
Janeiro levam água para aqueles que propagam o delírio de que o Brasil vive uma
ditadura. Débora Rodrigues dos Santos, com seu batom, torna-se um símbolo
espinhoso. Basta imaginar que o jovem que pichou “Abaixo a ditadura” no Theatro
Municipal do Rio em 1968 tivesse sido condenado a pena semelhante.
Com a autoridade que a defesa da democracia
lhes concede, os ministros do Supremo podem muito, mas devem cuidar do respeito
ao bom senso. Se a senhora do batom merece 14 anos, resta saber quantos
merecerá o redator do plano Punhal Verde e Amarelo, impresso no Palácio do
Planalto.
O Ministério Público tem a simpatia de boa
parte da população, mas acusação não é prova.
As mil páginas do relatório da Polícia
Federal e as 272 da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral são
contundentes em alguns aspectos e débeis em outros. Havia um golpe em curso, e
caberá aos juízes, depois de ouvir a defesa de cada acusado, decidir até onde e
como a trama prosperou.
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