quarta-feira, 26 de março de 2025

Débora virou um símbolo espinhoso – Elio Gaspari


O Globo

Cena 1, janeiro de 1970: Os juízes da 1ª Auditoria do Exército leem a sentença que condena a oito anos de prisão os oito principais autores do sequestro do embaixador Charles Elbrick, ocorrido em setembro do ano anterior.

(A ditadura vivia um pico da sua fase repressiva. Carlos Marighella, patrono involuntário do sequestro, e Virgílio Gomes da Silva, participante da ação, haviam sido assassinados.)

Cena 2, março de 2025: O ministro Alexandre de Moraes condena a 14 anos de prisão a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. No dia 8 de janeiro de 2023, ela escreveu com batom “Perdeu, mané” na estátua da Justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Moraes foi acompanhado pelo ministro Flávio Dino

Débora, mãe de dois filhos menores, está presa desde março de 2023. Ela escreveu uma carta ao ministro Moraes desculpando-se, mas ele acabou dando-lhe 14 anos. Como o ministro Luiz Fux pediu vista, o julgamento não terminou.

Os 14 anos de Débora seguem uma tendência do STF, que vem impondo punições leoninas à infantaria golpista do 8 de Janeiro. O tribunal já condenou 371 pessoas a penas que somam 3,3 mil anos de cadeia, e 71 cumpriam penas em janeiro passado. Seguindo essa métrica, os militares que comprovadamente atuaram na armação de um golpe deveriam receber penas seculares.

O repórter Merval Pereira já mostrou que diversos juristas apontam que os réus têm sido condenados duas vezes pelo mesmo crime: quatro anos por atentar contra o Estado Democrático de Direito, mais cinco por tentar um golpe.

Estão em curso conversas que poderão desembocar na redução das penas. Tudo bem, mas um Judiciário-ventoinha não contribui para o bom andamento dos trabalhos. O país já teve de conviver com a construção e o desmanche da Operação Lava-Jato. Na ascensão, o juiz Sergio Moro e os procuradores tudo podiam. No declínio, nada fizeram de certo. O mané perdeu, e nesse caso ele era o cidadão que acreditava no surto de moralidade em relação ao andar de cima.

Os novos manés esperam que a Justiça cobre um preço aos que tramaram o golpe de Estado de 2022/23 e, pelo andar da carruagem, as coisas não vão bem. As sentenças impostas à infantaria vândala do 8 de Janeiro levam água para aqueles que propagam o delírio de que o Brasil vive uma ditadura. Débora Rodrigues dos Santos, com seu batom, torna-se um símbolo espinhoso. Basta imaginar que o jovem que pichou “Abaixo a ditadura” no Theatro Municipal do Rio em 1968 tivesse sido condenado a pena semelhante.

Com a autoridade que a defesa da democracia lhes concede, os ministros do Supremo podem muito, mas devem cuidar do respeito ao bom senso. Se a senhora do batom merece 14 anos, resta saber quantos merecerá o redator do plano Punhal Verde e Amarelo, impresso no Palácio do Planalto.

O Ministério Público tem a simpatia de boa parte da população, mas acusação não é prova.

As mil páginas do relatório da Polícia Federal e as 272 da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral são contundentes em alguns aspectos e débeis em outros. Havia um golpe em curso, e caberá aos juízes, depois de ouvir a defesa de cada acusado, decidir até onde e como a trama prosperou.


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