segunda-feira, 14 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

O ‘evangelho’ segundo Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

O oitavo Mandamento diz que não se deve dar falso testemunho. No “evangelho” do presidente Jair Bolsonaro, contudo, esse mandamento caducou.

Ao discursar numa igreja evangélica em Anápolis (GO), na quarta-feira passada, Bolsonaro fez um sermão repleto de mentiras, tão evidentes que nem era preciso ser onisciente para perceber.

Bolsonaro voltou a afirmar que houve “fraude” na eleição de 2018, que ele venceu. “Eu fui eleito no primeiro turno. Eu tenho provas materiais, mas o sistema, a fraude existiu sim, me jogou para o segundo turno”, disse Bolsonaro.

A primeira vez em que o presidente alegou ter sido vítima de fraude na eleição foi em março de 2020. Na ocasião, disse que tinha “provas” e que as mostraria “brevemente”. Bolsonaro nunca o fez, porque não existem. Mas isso não tem importância: no “evangelho” bolsonarista, a verdade não é aquilo que encontra correspondência na realidade, e sim aquilo que Bolsonaro enuncia como tal. É questão de fé.

No mesmo sermão, Bolsonaro tornou a acusar governadores e prefeitos de “utilizar politicamente o vírus” da covid-19. Sem qualquer respaldo nos fatos, o presidente disse que as medidas de isolamento social para conter a pandemia se prestam a derrubá-lo: “Vamos fechar tudo, lockdown, toque de recolher, que a gente pela economia tira esse cara daí”. Bolsonaro disse que o querem fora porque “fez com que as estatais não dessem mais prejuízo”, “está começando a arrumar a economia”, “acredita em Deus”, “respeita seus militares” e “acredita na família”.

Em seguida, disse que “gente que estava ao meu lado” fez contas, a partir de um “acórdão do Tribunal de Contas da União”, e chegou à “constatação da supernotificação de casos de covid” por parte de Estados interessados em ter “mais recursos” federais. Segundo Bolsonaro, “se nós retirarmos as possíveis fraudes” da contabilidade de mortos por covid-19, “o nosso Brasil” será “aquele com menor número de mortes por milhão de habitantes por causa da covid”. Ou seja, o presidente está dizendo, em outras palavras, que milhares de médicos em todo o Brasil integram uma máfia dedicada a fraudar atestados de óbito para favorecer os planos de governadores corruptos.

Uma vez eliminada a “fraude”, disse o presidente, ficará claro que o Brasil teve poucas mortes por covid-19 porque adotou o “tratamento precoce”, com cloroquina e ivermectina, cuja ineficácia contra o coronavírus já foi amplamente atestada. Bolsonaro disse que não se investe nesse “tratamento” porque “interessa viver em cima de mortes, para se ganhar mais recursos”.

Para o presidente, é irrelevante se o tal “tratamento precoce” não tem comprovação científica. “Eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está experimental”, disse Bolsonaro, naquela que talvez seja a mais nociva das tantas mentiras que contou no seu sermão. Ao questionar a segurança da vacina, já atestada pelas autoridades sanitárias regulatórias, Bolsonaro sabota todos os esforços para incentivar os brasileiros a tomar o imunizante.

Mas a epifania bolsonarista em Anápolis, malgrado suas repetidas referências a “milagres” e “Deus”, teve objetivos bem mais mundanos. Conforme a já manjada tática bolsonarista, era preciso inventar variadas polêmicas, em grande quantidade, para tirar a atenção do mais importante: a forte alta da inflação, anunciada no mesmo dia do sermão de Bolsonaro.

Se por um lado a inflação aumentou a arrecadação do governo, pois os tributos são cobrados em cima de preços mais altos, por outro a alta dos preços corrói a renda dos brasileiros, especialmente a dos mais pobres, que já convivem com forte desemprego. Ante o risco de insatisfação popular, muito concreto, Bolsonaro recorreu a quase todo o seu repertório de falsidades para que o País mude de assunto.

Em sua prédica mendaz, foi honesto uma única vez, quando disse que, ao ser eleito, “não sabia o que fazer”. Hoje, contudo, sabe muito bem: mentir dia e noite para ser reeleito. Se vai conseguir ou não, depende da credulidade dos eleitores.

 

A desinformação e o retrocesso

O Estado de S. Paulo

No dia 9 de junho, em Comissão na Câmara dos Deputados que debateu a reforma eleitoral e a PEC do voto impresso, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, afirmou: “O enfrentamento às notícias falsas é a causa da humanidade neste momento”. Mesmo admitindo alguma dose de exagero, é preciso reconhecer que a afirmação não está muito distante da realidade.

Os efeitos da desinformação são graves, pondo em risco o funcionamento das instituições democráticas e os fundamentos de uma sociedade. A difusão de mensagens distorcidas desvirtua o debate público, corrói a confiança nas relações humanas e cria inúmeros problemas.

A desinformação é causa de retrocesso; por exemplo, na saúde pública. Ao longo dos últimos anos, campanhas com mensagens distorcidas contra a vacinação fizeram com que muitas famílias deixassem de vacinar seus filhos, o que provocou o ressurgimento de doenças que há muito estavam superadas ou, ao menos, controladas.

Trata-se de uma triste constatação. A humanidade foi capaz de gerar soluções para problemas graves, no caso, vacinas contra doenças que causavam morte, incapacidade e sofrimento. No entanto, essas soluções foram rejeitadas em razão de manipulação da informação. Muitas pessoas foram enganadas a ponto de pensarem que o melhor para os seus filhos era privá-los das vacinas específicas para cada idade.

Tal quadro revela como é grave o tema das fake news. A manipulação decorrente da desinformação pode pôr por terra conquistas fundamentais da civilização. O fenômeno é paradoxal. Os mais impressionantes avanços tecnológicos são também ocasião para retrocessos aparentemente ilimitados.

É necessário, portanto, estar alerta. Nos dias de hoje, os danos da mentira e do engano podem ocorrer de forma sistêmica e numa velocidade inimaginável tempos atrás. É preciso respeitar e defender a liberdade de expressão de todos, mas não cabem ingenuidades. O direito de comunicar e defender as ideias e convicções pessoais não equivale a uma autorização para enganar e prejudicar os outros ou para atacar as instituições.

Um caso atual é a campanha de desinformação contra as urnas eletrônicas. Como lembrou o presidente do TSE, o atual sistema foi implantado em 1996 e “nunca se documentou um caso de fraude desde então”. No entanto, nos últimos anos, em especial desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, observa-se uma ativa campanha de corrosão da confiança da população no sistema eleitoral.

“O nosso processo eleitoral eletrônico é seguro, transparente e, sobretudo, auditável”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso. O atual sistema de votação e apuração passa por 10 etapas de auditoria.

No entanto, do mesmo modo que no caso das vacinas, para alguns a realidade pouco importa. Nas redes sociais, há uma campanha massiva de difusão de desconfiança, dizendo que não se pode “confiar em software” e que só o voto impresso seria auditável. Observa-se uma intensa manipulação de conceitos, com o inegável intuito de distorcer os fatos.

É uma falácia a ideia de que a impressão do voto traz segurança às eleições. A rigor, um sistema assim representa evidente retrocesso, pois fará com que o critério final de verificação seja a recontagem manual de votos – o que é comprovadamente o sistema mais passível de fraude, além de aumentar o risco de quebra do sigilo do voto.

“Nós estamos criando um problema para resolver um problema que não existe”, disse o presidente do TSE, em relação à PEC 135/19. Eventual volta da apuração manual de voto é precisamente o que pode produzir a maior fragilidade do sistema eleitoral.

Esse cenário de rejeição das vacinas e de defesa do voto impresso – de ativa busca pelo retrocesso – torna-se possível porque a desinformação não apenas distorce as mensagens, mas produz e dissemina desconfiança. O fenômeno das fake news inunda o debate público de irracionalidade e ressentimento e, não raro, de ódio e violência.

O enfrentamento da desinformação deve ser uma prioridade. Não é tema acessório – envolve diretamente o coexistir em sociedade.

O avanço das milícias digitais

O Estado de S. Paulo

Em tese, as redes sociais podem ser um vigoroso instrumento de difusão da democracia, onde os cidadãos podem se encontrar para debater, empatizar, fazer concessões e construir consensos. No último ano, a pandemia e mais especificamente as eleições nos EUA forçaram muitas mídias a aprimorar seus sistemas de alerta à desinformação, suspender contas falsas e elevar padrões de qualidade da informação e da civilidade nas praças virtuais. Mas, na prática, as evidências sugerem que esses esforços têm sido insuficientes.

Segundo o inventário anual da Manipulação Organizada das Mídias Sociais do Oxford Internet Institute, a atividade das milícias digitais (cyber troops) – definidas como “atores governamentais ou partidários empenhados na manipulação da opinião pública online” – continua a crescer. “A desinformação industrializada tornou-se mais profissionalizada, e foi produzida em larga escala por grandes governos, partidos políticos e empresas de relações públicas”. Em 2019, o inventário identificou 70 países onde as mídias sociais foram amplamente utilizadas para disseminar propaganda e desinformação sobre política. Em 2020 foram 81.

“De campanhas de desinformação sobre o coronavírus promovidas pela China, Rússia e Irã a forças policiais na Bielorrússia alvejando ativistas com campanhas de desinformação e difamação ou empresas privadas usando propaganda computacional para apoiar eleições, muitos atores políticos estão encontrando modos de explorar tecnologias das redes sociais para disseminar propaganda online.”

Em 57 dos 81 países verificou-se a utilização de contas automatizadas (os chamados “bots políticos”) para amplificar certas narrativas e sufocar outras. Cada vez mais comuns são as contas com “curadoria humana” utilizadas para se engajar em conversas por meio de comentários ou de mensagens privadas. Contas como essas, verdadeiras ou falsas, foram identificadas em 79 países.

As mensagens mais comuns são os ataques à oposição ou campanhas de difamação. Um exemplo são as calúnias a ativistas de Hong Kong por milícias digitais apoiadas pelo Partido Comunista Chinês. Esse tipo de mensagem foi identificado em 94% dos países estudados. Depois vêm as campanhas para amplificar artificialmente o apoio a governos e partidos (90%); a supressão da participação por meio da “trolagem” ou intimidação (73%); e as cada vez mais frequentes narrativas projetadas para acirrar a divisão e a polarização entre os cidadãos (48%). No Brasil funcionam todos esses tipos de mensagens.

A estratégia de comunicação predileta é a criação de desinformação ou mídias manipuladas via websites de fake news, memes, imagens e vídeos. Contrariamente às expectativas, a utilização da tecnologia deep fake ainda é relativamente baixa. Outra tática comum é o uso de “trolagem”, vazamento de dados privados e intimidação.

Há ainda um mercado em ascensão de empresas contratadas para perfilar segmentos específicos da população e alvejá-los com anúncios políticos. Embora essa técnica baseada em dados não seja em si irregular, ela é frequentemente empregada para disseminar desinformação e narrativas falsas. Desde 2009, o inventário identificou mais de 65 empresas operando em 48 países por meio de contratos que somam US$ 60 milhões. Mas, segundo os próprios pesquisadores, essas cifras são defasadas.

As derrotas na guerra à desinformação se devem a uma multiplicidade de fatores. Aos investimentos de governos autoritários, partidos políticos e empresas de relações públicas se somam políticas de vigilância frouxas, escolhas de design tecnológico pobres e passividade das lideranças das mídias sociais. Esses aspectos precisam ser urgentemente ponderados pelas autoridades públicas e pela sociedade civil. Mas, considerando que as técnicas de desinformação seguem evoluindo e serão turbinadas por novas tecnologias – como a Inteligência Artificial, a Realidade Virtual ou a Internet das Coisas – o cenário mais realista num futuro próximo é que a indústria da desinformação deve se expandir antes de arrefecer.

O mistério da arrecadação recorde na crise

O Globo

Quem analisa as contas públicas nos últimos meses depara com um mistério que, aparentemente, desafia explicações. Recentemente, a Receita Federal divulgou que a arrecadação de tributos em abril tinha crescido, em termos reais, 45,2% em relação a abril de 2020, chegando a R$ 157 bilhões. O anúncio se somou a outro feito anteriormente sobre os dados de março e fevereiro, também com altas em relação aos mesmos meses de 2020, de 18,5% e 4,3%, respectivamente. O valor em março foi de R$ 138 bilhões. Em fevereiro, R$ 128 bilhões. Seria possível, numa economia que mal sai do chão, tanta gente pagar mais impostos?

O primeiro suspeito nessas horas, num país com uma carga tributária digna do “Guinness” e uma máquina arrecadadora extremamente eficiente — o Fisco é tido como a “única coisa que funciona bem no governo” —, costuma ser a sanha arrecadadora do Estado. Em geral, ela se expressa em duas modalidades: novos impostos ou aumento da produtividade da Receita. Só que não há registro de mudanças significativas nas alíquotas, nem evidências de aumento de horas extras fora do comum entre os funcionários do Fisco para justificar esses resultados. É preciso investigar mais a fundo.

O recorde de abril pode ser visto como ilusão estatística. Entre o final de março e o final de abril do ano passado, o Brasil registrou os maiores picos nas taxas de isolamento social. Foi como se a atividade econômica tivesse dado uma freada brusca. Siderúrgicas chegaram a desligar seus fornos. O governo começou, naquela época, a prorrogar o prazo para pagamento de impostos, decisão acertada diante do quadro de calamidade econômica. O resultado de tudo isso é que a base de comparação ficou muito baixa. Qualquer melhora agora parece gigante se comparada a um período em que quase nada se produziu e quase nada se arrecadou.

O resultado da arrecadação no primeiro trimestre deste ano, com alta de 5,64%, tem uma causa diferente, porque o período entre janeiro e março de 2020 não foi afetado pela pandemia. Ainda assim, a princípio, o aumento pode causar certa estranheza. O percentual registrado pela Receita parece descasado do crescimento de 1% do PIB no primeiro trimestre de 2021 em relação ao de 2020. Boa parte da explicação é que houve alta considerável de recolhimentos não recorrentes, receitas atípicas, como tributos adiados de anos anteriores e R$ 12 bilhões extraordinários, a maior parte recebida de empresas cujo desempenho no balanço foi melhor que o declarado anteriormente.

Numa análise de um período maior, os números do PIB e da arrecadação apresentam trajetória semelhante. Nos 12 meses terminados em março de 2021, a economia encolheu 3,8% em comparação aos 12 meses anteriores. Analisando os números da Receita nesse mesmo período, nota-se uma retração no total dos tributos da ordem de 5,5%.

Esse passado recente da arrecadação prova que não há atalho. Nem a melhora de cenário para o PIB em 2021 acabou com a previsão de contas do governo no vermelho. Para que o Brasil tenha um sistema de cobrança de tributos justo, simples, que dê conta das necessidades fiscais do governo e, ao mesmo tempo, não represente uma carga tão extorsiva nas costas do setor produtivo, é urgente promover uma reforma tributária ampla e racional. 

Série de ataques em Manaus expõe vulnerabilidade da segurança pública

O Globo

Duas epidemias assolam Manaus. Uma causada pelo novo coronavírus, que, desde o ano passado, transformou a capital amazonense num laboratório de horrores. A outra, pela violência. Esta eclodiu há uma semana, depois da morte de um traficante pela polícia. O evento deu origem a ataques que levaram os moradores a mais uma quarentena, desta vez forçada não pelo temível vírus, mas pelos também letais fuzis do tráfico.

As ruas de Manaus e cidades do interior do estado foram aterrorizadas por atos inadmissíveis num estado democrático de direito. Criminosos incendiaram ônibus e viaturas da polícia, atacaram delegacias, escolas, postos de saúde. O transporte público precisou parar, e aulas tiveram de ser suspensas. Chegou-se ao cúmulo de interromper a vacinação contra a Covid-19 no estado com uma das maiores taxas de mortalidade do país. Sem conseguir controlar a situação, o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), requisitou a presença da Força Nacional.

Mais de 40 suspeitos foram presos, mas os verdadeiros mentores do terror já estavam encarcerados. Investigações mostram que as ordens para os ataques partiram de dentro dos presídios. O problema não é novo, tampouco exclusivo do Amazonas. Em 2019, no Ceará, traficantes impuseram o terror à população depois que o governo anunciou mudanças no sistema carcerário, com o fim da divisão por facções. Bandidos alvejaram prédios públicos, incendiaram ônibus e danificaram torres de energia e telefonia. Em apenas dois meses, quase 300 ataques foram registrados em mais de 50 municípios.

Chefões do tráfico ou da milícia que estão presos, em tese afastados do convívio social, continuam tocando seus negócios criminosos de dentro dos presídios. Controlam o tráfico de drogas e de armas, gerenciam milícias, determinam invasão de territórios rivais, mandam executar inimigos e, como ficou evidente em Manaus, ordenam ataques a instituições e bens públicos.

Esses episódios põem em xeque o frágil sistema brasileiro de prisões e mostram que a segurança pública precisa ser tratada de forma abrangente. Olhar apenas para dentro dos presídios ou para fora de seus muros distorce a visão. No submundo das facções, tal fronteira já caiu há tempos. Não se pode ignorar que significativas extensões do território brasileiro, principalmente nas áreas urbanas, são controladas por quadrilhas de narcotraficantes que, muito bem armadas, impõem à população um poder paralelo ao Estado. Recorrer à Força Nacional ajuda a restabelecer a ordem, mas é um paliativo.

O enfrentamento do crime organizado demanda um plano de segurança pública que envolva os três níveis de poder — sozinhos, os estados não dão conta de facções nacionais. Também é essencial o envolvimento ativo do Judiciário. E a legislação penal brasileira continua a ser leniente demais com o crime. Até agora, as ações do governo Bolsonaro na segurança — uma de suas bandeiras de campanha — têm se resumido a flexibilizar o uso de armas e munições. Ao contrário de ajudar, a medida tende a agravar o problema.

Continente Covid

Folha de S. Paulo

Deficiências e descoordenação projetam América do Sul ao epicentro da pandemia

A América do Sul, embora com renda média superior às de países e regiões pobres e populosas como Índia e África, tornou-se o canto do mundo onde a pandemia faz os maiores estragos. O continente é hoje o fulcro da Covid-19.

Seus países e dependências se viram tomados por epidemias do novo coronavírus Sars-CoV-2 em momentos diversos e com dinâmicas próprias, mas o passar dos meses terminou por evidenciar que condições comuns se impuseram para aproximá-los na ocorrência de números alarmantes.

Deficiências nos sistemas de saúde, desigualdade e agravamento da pobreza na pandemia têm pesado para impulsionar a região nas estatísticas lúgubres. Uma comparação entre Argentina, Brasil e Chile elucida como situações muito díspares de início convergiram para o tenebroso panorama atual.

O Brasil atrai a atenção mundial porque, com grande população e políticas desastrosas de Jair Bolsonaro, produz números absolutos de infecções e óbitos chocantes.

Mesmo em termos relativos, em julho de 2020 o país se projetava com mais que o dobro da cifra de mortes diárias por milhão de habitantes da Argentina (5 ante 2).

Na mesma época, era o Chile a se destacar na mortandade, com saltos a 12 óbitos/milhão; em outubro do ano passado, foi a vez de argentinos alcançarem picos breves de 17 mortes/milhão.

A partir de março deste ano o Brasil ficou por quase dois meses na liderança de casos fatais, entre 10 e 15 óbitos/milhão. Espalhou preocupação no mundo, sobretudo pela conduta indefensável do governo, mas a epidemia estava longe de controlada nos vizinhos.

Recuos recentes abateram a mortalidade no território nacional, entretanto permanecemos num nível alarmante de mortes (8,5/milhão, perto da média sul-americana de 8,7). Em paralelo, os óbitos explodiam entre argentinos (13/milhão).

Em que pesem disparidades nacionais, a pandemia sul-americana se distanciou da observada em países que adotaram políticas mais consequentes. A média mundial de óbitos diários por milhão está em 1,2, similar à dos EUA, ainda o campeão de mortes acumuladas (599 mil, contra 482 mil do Brasil).

Não parece correto atribuir as diferenças apenas ao progresso disparatado da vacinação. Chile e Uruguai lograram imunizar parcela similar da população (cerca de 60%), mas as mortes de uruguaios se contam na casa de 18,3/milhão, face a 5,5/milhão de chilenos.

As nações sul-americanas têm vários problemas em comum, de variantes do Sars-CoV-2 às deficientes ações de distanciamento social, controle de fronteiras, rastreamento e isolamento de contatos.

Não falta só ao Brasil uma coordenação do combate à pandemia; os países do continente precisam também alinhar suas políticas e derrotar o inimigo comum.

O setor mais atingido

Folha de S. Paulo

Cruciais para retomada do emprego, serviços registram alta pequena em abril

É o padrão no mundo todo que a recuperação após os piores momentos da pandemia se concentre inicialmente nos setores produtores de bens, cuja demanda se manteve firme. Os serviços, que em sua maior parte não prescindem de contato social, ficam atrasados e tem retomada mais difícil.

No Brasil, o atraso na vacinação e a sabotagem do governo federal aos esforços de controle sanitário impedem a abertura consistente das atividades e tornam essa dicotomia ainda mais acentuada.

Enquanto o Produto Interno Bruto já voltou ao nível do final de 2019 no primeiro trimestre deste ano, os últimos dados mostram que os serviços ainda patinam e permanecem 1,5% abaixo do patamar pré-pandemia, de fevereiro de 2020.

Segundo a pesquisa mensal do IBGE, houve alta de 0,7% em abril, pequena ante a queda de 3,1% observada em março, quando o pico da segunda onda de contágio obrigou governadores e prefeitos a ampliarem restrições.

O destaque de abril ficou com os serviços prestados às famílias, que avançaram 9,3%, progresso que no entanto deve ser relativizado depois da queda de 28% em março. Tal rubrica inclui alojamento e alimentação, a que mais sofre desde o início da pandemia —a atividade ainda está 40% abaixo da medida em fevereiro do ano passado.

O problema desse padrão de crescimento é que os setores ainda desfavorecidos têm peso elevado no emprego, tanto considerando as vagas com carteira assinada quanto as demais, que incluem informais e por conta própria.

É nesses últimos dois grupos que se concentram os trabalhadores de menor qualificação, os que mais sofrem com o adiamento de uma retomada consistente das atividades. Muitas delas talvez não voltem, como é fácil perceber pelos imóveis fechados que abrigavam pequenos negócios.

O desafio mais imediato, evidentemente, é acelerar a vacinação, mas os sinais que vêm de países que estão mais avançados nesse processo sugerem que, após um empuxo inicial da atividade econômica, a tendência é que sobrevenha uma acomodação.

Aí entra o tema mais importante para o médio e o longo prazo —a concepção de políticas capazes de reverter ou ao menos minimizar os danos legados pela pandemia.

Brasil gasta 7% do PIB com crise, mas precisa lidar com a dívida

Valor Econômico

O Brasil está entre os dez países que mais desembolsaram recursos públicos para minorar os efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus. No ano passado foram efetivamente gastos R$ 524 bilhões, de um total previsto de R$ 604,7 bilhões, segundo dados oficiais do Tesouro Nacional.

A diferença - R$ 80,7 bilhões - será liberada ao longo do ano corrente, segundo revelou na semana passada o subsecretário de dívida pública do Tesouro, Otávio Ladeira, durante audiência pública promovida pelo Centro de Estudos e Debates Estratégicos (Cedes), entidade vinculada à Câmara dos Deputados. Do total dos restos a pagar dessa rubrica do orçamento de 2020, R$ 36,6 bilhões foram liberados nos quatro primeiros meses do ano.

Em proporção do Produto Interno Bruto (PIB), o volume de gasto público despendido no Brasil contra a pandemia chegou a 7,3% no nível federal. Apenas nove países desembolsaram mais: Nova Zelândia (o que mais liberou recursos contra a crise), Canadá, Estados Unidos, Japão, Tailândia, Reino Unido, Áustria, Chile e Alemanha. Foi justamente esse fato que permitiu reduzir a queda prevista do PIB em 2020 - das projeções iniciais do mercado acima de 9% para 4,1%. Este foi um exemplo de despesa que deu prioridade, não inteiramente mas em grande parte, a quem mais necessita da ajuda do Estado, especialmente, nesta crise sanitária: os pobres e miseráveis, considerável da população brasileira.

A decisão de se instituir rapidamente o auxílio emergencial, principal instrumento de compensação usado desde o início da pandemia para ajudar trabalhadores formais e informais que perderam seu ganha-pão logo no início da crise, foi tomada pelo Congresso Nacional, sem que o governo federal conseguisse impor obstáculos intransponíveis à materialização da ajuda.

No início das negociações, o Poder Executivo flertou com a possibilidade de criar um auxílio bem inferior aos R$ 600 aprovados pelo Poder Legislativo, o que teria sido um equívoco, uma vez que a duração da pandemia e, portanto, de seus efeitos sobre a economia se mostrou maior que a esperada. Esta foi uma prova relevante de que a jovem democracia brasileira já dispõe de instituições sólidas, capazes de tomar decisões cruciais, em tempo, em favor da maioria dos brasileiros, mesmo quando interesses do governo de plantão são contrários ao que determina a racionalidade.

Faz-se necessário observar, porém, que, tendo sido o terceiro país mais afetado pela pandemia, atrás dos Estados Unidos e da Índia, o Brasil estaria, agora, em situação muito melhor, do ponto de vista de saída da crise, se o governo Jair Bolsonaro não tivesse reagido com tamanho negacionismo à gravidade da pandemia. As investigações em curso, abertas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado criada para averiguar possível negligência do governo federal no que diz respeito à compra de vacinas contra a covid-19, indicam que o governo supostamente perdera a oportunidade de fechar contratos, em meados de 2020, para adquirir vacinas em grande volume.

Diante da pandemia, a mais severa em cem anos, já se sabia que o setor público teria que abrir o cofre para desembolsar o que fosse necessário para minorar os efeitos da crise sanitária. A verdade é que, no cofre, não havia muito porque o país já vinha de uma situação fiscal debilitada desde 2014, quando a então presidente Dilma Rousseff decidiu abandonar a política de geração de superávits primários (conceito que exclui o gasto com juros da dívida) nas contas públicas. Dilma perdeu o mandato em 2016, em processo de impeachment, entregando o cargo ao sucessor com uma dívida que, em menos de seis anos de seus dois mandatos, crescera quase 20 pontos percentuais de PIB.

O então presidente Michel Temer começou a arrumar a casa, com a adoção, entre outras medidas, do teto constitucional de gastos. Seu sucessor deu sequência à responsabilidade fiscal, mas, aí, adveio a pandemia. Apenas em 2020, o déficit primário atingiu 10% do PIB. O impacto da pandemia sobre as contas ainda não terminou: foram sete pontos percentuais de PIB no ano passado e, neste ano, estima-se que contribua com 1,4 ponto percentual do déficit previsto, de 2,3% do PIB. Os números mostram que chegou a hora de enfrentar novamente a situação fiscal, sob pena de o país perder o controle da dívida pública, que neste ano deve atingir o equivalente a 87,2% do PIB - a média dos países emergentes gira em torno de 60% do PIB.

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