EDITORIAIS
O ‘evangelho’ segundo Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
O oitavo Mandamento diz que não se deve dar
falso testemunho. No “evangelho” do presidente Jair Bolsonaro, contudo, esse
mandamento caducou.
Ao discursar numa igreja evangélica em
Anápolis (GO), na quarta-feira passada, Bolsonaro fez um sermão repleto de
mentiras, tão evidentes que nem era preciso ser onisciente para perceber.
Bolsonaro voltou a afirmar que houve
“fraude” na eleição de 2018, que ele venceu. “Eu fui eleito no primeiro turno.
Eu tenho provas materiais, mas o sistema, a fraude existiu sim, me jogou para o
segundo turno”, disse Bolsonaro.
A primeira vez em que o presidente alegou
ter sido vítima de fraude na eleição foi em março de 2020. Na ocasião, disse
que tinha “provas” e que as mostraria “brevemente”. Bolsonaro nunca o fez,
porque não existem. Mas isso não tem importância: no “evangelho” bolsonarista,
a verdade não é aquilo que encontra correspondência na realidade, e sim aquilo
que Bolsonaro enuncia como tal. É questão de fé.
No mesmo sermão, Bolsonaro tornou a acusar governadores e prefeitos de “utilizar politicamente o vírus” da covid-19. Sem qualquer respaldo nos fatos, o presidente disse que as medidas de isolamento social para conter a pandemia se prestam a derrubá-lo: “Vamos fechar tudo, lockdown, toque de recolher, que a gente pela economia tira esse cara daí”. Bolsonaro disse que o querem fora porque “fez com que as estatais não dessem mais prejuízo”, “está começando a arrumar a economia”, “acredita em Deus”, “respeita seus militares” e “acredita na família”.
Em seguida, disse que “gente que estava ao
meu lado” fez contas, a partir de um “acórdão do Tribunal de Contas da União”,
e chegou à “constatação da supernotificação de casos de covid” por parte de
Estados interessados em ter “mais recursos” federais. Segundo Bolsonaro, “se
nós retirarmos as possíveis fraudes” da contabilidade de mortos por covid-19,
“o nosso Brasil” será “aquele com menor número de mortes por milhão de
habitantes por causa da covid”. Ou seja, o presidente está dizendo, em outras
palavras, que milhares de médicos em todo o Brasil integram uma máfia dedicada
a fraudar atestados de óbito para favorecer os planos de governadores
corruptos.
Uma vez eliminada a “fraude”, disse o
presidente, ficará claro que o Brasil teve poucas mortes por covid-19 porque
adotou o “tratamento precoce”, com cloroquina e ivermectina, cuja ineficácia
contra o coronavírus já foi amplamente atestada. Bolsonaro disse que não se
investe nesse “tratamento” porque “interessa viver em cima de mortes, para se
ganhar mais recursos”.
Para o presidente, é irrelevante se o tal
“tratamento precoce” não tem comprovação científica. “Eu pergunto: a vacina tem
comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está
experimental”, disse Bolsonaro, naquela que talvez seja a mais nociva das
tantas mentiras que contou no seu sermão. Ao questionar a segurança da vacina,
já atestada pelas autoridades sanitárias regulatórias, Bolsonaro sabota todos
os esforços para incentivar os brasileiros a tomar o imunizante.
Mas a epifania bolsonarista em Anápolis,
malgrado suas repetidas referências a “milagres” e “Deus”, teve objetivos bem
mais mundanos. Conforme a já manjada tática bolsonarista, era preciso inventar
variadas polêmicas, em grande quantidade, para tirar a atenção do mais
importante: a forte alta da inflação, anunciada no mesmo dia do sermão de
Bolsonaro.
Se por um lado a inflação aumentou a
arrecadação do governo, pois os tributos são cobrados em cima de preços mais
altos, por outro a alta dos preços corrói a renda dos brasileiros,
especialmente a dos mais pobres, que já convivem com forte desemprego. Ante o
risco de insatisfação popular, muito concreto, Bolsonaro recorreu a quase todo
o seu repertório de falsidades para que o País mude de assunto.
Em sua prédica mendaz, foi honesto uma
única vez, quando disse que, ao ser eleito, “não sabia o que fazer”. Hoje,
contudo, sabe muito bem: mentir dia e noite para ser reeleito. Se vai conseguir
ou não, depende da credulidade dos eleitores.
A desinformação e o retrocesso
O Estado de S. Paulo
No dia 9 de junho, em Comissão na Câmara dos Deputados que debateu a reforma eleitoral e a PEC do voto impresso, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, afirmou: “O enfrentamento às notícias falsas é a causa da humanidade neste momento”. Mesmo admitindo alguma dose de exagero, é preciso reconhecer que a afirmação não está muito distante da realidade.
Os efeitos da desinformação são graves,
pondo em risco o funcionamento das instituições democráticas e os fundamentos
de uma sociedade. A difusão de mensagens distorcidas desvirtua o debate
público, corrói a confiança nas relações humanas e cria inúmeros problemas.
A desinformação é causa de retrocesso; por
exemplo, na saúde pública. Ao longo dos últimos anos, campanhas com mensagens
distorcidas contra a vacinação fizeram com que muitas famílias deixassem de
vacinar seus filhos, o que provocou o ressurgimento de doenças que há muito
estavam superadas ou, ao menos, controladas.
Trata-se de uma triste constatação. A
humanidade foi capaz de gerar soluções para problemas graves, no caso, vacinas
contra doenças que causavam morte, incapacidade e sofrimento. No entanto, essas
soluções foram rejeitadas em razão de manipulação da informação. Muitas pessoas
foram enganadas a ponto de pensarem que o melhor para os seus filhos era
privá-los das vacinas específicas para cada idade.
Tal quadro revela como é grave o tema das
fake news. A manipulação decorrente da desinformação pode pôr por terra
conquistas fundamentais da civilização. O fenômeno é paradoxal. Os mais
impressionantes avanços tecnológicos são também ocasião para retrocessos
aparentemente ilimitados.
É necessário, portanto, estar alerta. Nos
dias de hoje, os danos da mentira e do engano podem ocorrer de forma sistêmica
e numa velocidade inimaginável tempos atrás. É preciso respeitar e defender a
liberdade de expressão de todos, mas não cabem ingenuidades. O direito de
comunicar e defender as ideias e convicções pessoais não equivale a uma
autorização para enganar e prejudicar os outros ou para atacar as instituições.
Um caso atual é a campanha de desinformação
contra as urnas eletrônicas. Como lembrou o presidente do TSE, o atual sistema
foi implantado em 1996 e “nunca se documentou um caso de fraude desde então”.
No entanto, nos últimos anos, em especial desde que Jair Bolsonaro assumiu a
Presidência da República, observa-se uma ativa campanha de corrosão da
confiança da população no sistema eleitoral.
“O nosso processo eleitoral eletrônico é
seguro, transparente e, sobretudo, auditável”, afirmou o ministro Luís Roberto
Barroso. O atual sistema de votação e apuração passa por 10 etapas de
auditoria.
No entanto, do mesmo modo que no caso das
vacinas, para alguns a realidade pouco importa. Nas redes sociais, há uma
campanha massiva de difusão de desconfiança, dizendo que não se pode “confiar
em software” e que só o voto impresso seria auditável. Observa-se uma intensa
manipulação de conceitos, com o inegável intuito de distorcer os fatos.
É uma falácia a ideia de que a impressão do
voto traz segurança às eleições. A rigor, um sistema assim representa evidente
retrocesso, pois fará com que o critério final de verificação seja a recontagem
manual de votos – o que é comprovadamente o sistema mais passível de fraude,
além de aumentar o risco de quebra do sigilo do voto.
“Nós estamos criando um problema para
resolver um problema que não existe”, disse o presidente do TSE, em relação à
PEC 135/19. Eventual volta da apuração manual de voto é precisamente o que pode
produzir a maior fragilidade do sistema eleitoral.
Esse cenário de rejeição das vacinas e de
defesa do voto impresso – de ativa busca pelo retrocesso – torna-se possível
porque a desinformação não apenas distorce as mensagens, mas produz e dissemina
desconfiança. O fenômeno das fake news inunda o debate público de
irracionalidade e ressentimento e, não raro, de ódio e violência.
O enfrentamento da desinformação deve ser
uma prioridade. Não é tema acessório – envolve diretamente o coexistir em
sociedade.
O avanço das milícias digitais
O Estado de S. Paulo
Em tese, as redes sociais podem ser um
vigoroso instrumento de difusão da democracia, onde os cidadãos podem se
encontrar para debater, empatizar, fazer concessões e construir consensos. No
último ano, a pandemia e mais especificamente as eleições nos EUA forçaram
muitas mídias a aprimorar seus sistemas de alerta à desinformação, suspender
contas falsas e elevar padrões de qualidade da informação e da civilidade nas
praças virtuais. Mas, na prática, as evidências sugerem que esses esforços têm
sido insuficientes.
Segundo o inventário anual da Manipulação Organizada das Mídias Sociais
do Oxford Internet Institute, a atividade das milícias digitais (cyber troops) –
definidas como “atores governamentais ou partidários empenhados na manipulação
da opinião pública online” – continua a crescer. “A desinformação
industrializada tornou-se mais profissionalizada, e foi produzida em larga
escala por grandes governos, partidos políticos e empresas de relações
públicas”. Em 2019, o inventário identificou 70 países onde as mídias sociais
foram amplamente utilizadas para disseminar propaganda e desinformação sobre
política. Em 2020 foram 81.
“De campanhas de desinformação sobre o
coronavírus promovidas pela China, Rússia e Irã a forças policiais na
Bielorrússia alvejando ativistas com campanhas de desinformação e difamação ou
empresas privadas usando propaganda computacional para apoiar eleições, muitos
atores políticos estão encontrando modos de explorar tecnologias das redes
sociais para disseminar propaganda online.”
Em 57 dos 81 países verificou-se a
utilização de contas automatizadas (os chamados “bots políticos”) para
amplificar certas narrativas e sufocar outras. Cada vez mais comuns são as
contas com “curadoria humana” utilizadas para se engajar em conversas por meio
de comentários ou de mensagens privadas. Contas como essas, verdadeiras ou
falsas, foram identificadas em 79 países.
As mensagens mais comuns são os ataques à
oposição ou campanhas de difamação. Um exemplo são as calúnias a ativistas de
Hong Kong por milícias digitais apoiadas pelo Partido Comunista Chinês. Esse
tipo de mensagem foi identificado em 94% dos países estudados. Depois vêm as
campanhas para amplificar artificialmente o apoio a governos e partidos (90%);
a supressão da participação por meio da “trolagem” ou intimidação (73%); e as
cada vez mais frequentes narrativas projetadas para acirrar a divisão e a
polarização entre os cidadãos (48%). No Brasil funcionam todos esses tipos de
mensagens.
A estratégia de comunicação predileta é a
criação de desinformação ou mídias manipuladas via websites de fake news,
memes, imagens e vídeos. Contrariamente às expectativas, a utilização da
tecnologia deep fake ainda
é relativamente baixa. Outra tática comum é o uso de “trolagem”, vazamento de
dados privados e intimidação.
Há ainda um mercado em ascensão de empresas
contratadas para perfilar segmentos específicos da população e alvejá-los com
anúncios políticos. Embora essa técnica baseada em dados não seja em si
irregular, ela é frequentemente empregada para disseminar desinformação e
narrativas falsas. Desde 2009, o inventário identificou mais de 65 empresas
operando em 48 países por meio de contratos que somam US$ 60 milhões. Mas,
segundo os próprios pesquisadores, essas cifras são defasadas.
As derrotas na guerra à desinformação se
devem a uma multiplicidade de fatores. Aos investimentos de governos
autoritários, partidos políticos e empresas de relações públicas se somam
políticas de vigilância frouxas, escolhas de design tecnológico pobres e
passividade das lideranças das mídias sociais. Esses aspectos precisam ser
urgentemente ponderados pelas autoridades públicas e pela sociedade civil. Mas,
considerando que as técnicas de desinformação seguem evoluindo e serão
turbinadas por novas tecnologias – como a Inteligência Artificial, a Realidade
Virtual ou a Internet das Coisas – o cenário mais realista num futuro próximo é
que a indústria da desinformação deve se expandir antes de arrefecer.
O mistério da arrecadação recorde na crise
O Globo
Quem analisa as contas públicas nos últimos
meses depara com um mistério que, aparentemente, desafia explicações.
Recentemente, a Receita Federal divulgou que a arrecadação de tributos em abril
tinha crescido, em termos reais, 45,2% em relação a abril de 2020, chegando a
R$ 157 bilhões. O anúncio se somou a outro feito anteriormente sobre os dados
de março e fevereiro, também com altas em relação aos mesmos meses de 2020, de
18,5% e 4,3%, respectivamente. O valor em março foi de R$ 138 bilhões. Em
fevereiro, R$ 128 bilhões. Seria possível, numa economia que mal sai do chão,
tanta gente pagar mais impostos?
O primeiro suspeito nessas horas, num país
com uma carga tributária digna do “Guinness” e uma máquina arrecadadora
extremamente eficiente — o Fisco é tido como a “única coisa que funciona bem no
governo” —, costuma ser a sanha arrecadadora do Estado. Em geral, ela se
expressa em duas modalidades: novos impostos ou aumento da produtividade da
Receita. Só que não há registro de mudanças significativas nas alíquotas, nem
evidências de aumento de horas extras fora do comum entre os funcionários do
Fisco para justificar esses resultados. É preciso investigar mais a fundo.
O recorde de abril pode ser visto como
ilusão estatística. Entre o final de março e o final de abril do ano passado, o
Brasil registrou os maiores picos nas taxas de isolamento social. Foi como se a
atividade econômica tivesse dado uma freada brusca. Siderúrgicas chegaram a
desligar seus fornos. O governo começou, naquela época, a prorrogar o prazo
para pagamento de impostos, decisão acertada diante do quadro de calamidade
econômica. O resultado de tudo isso é que a base de comparação ficou muito
baixa. Qualquer melhora agora parece gigante se comparada a um período em que
quase nada se produziu e quase nada se arrecadou.
O resultado da arrecadação no primeiro
trimestre deste ano, com alta de 5,64%, tem uma causa diferente, porque o
período entre janeiro e março de 2020 não foi afetado pela pandemia. Ainda
assim, a princípio, o aumento pode causar certa estranheza. O percentual
registrado pela Receita parece descasado do crescimento de 1% do PIB no primeiro
trimestre de 2021 em relação ao de 2020. Boa parte da explicação é que houve
alta considerável de recolhimentos não recorrentes, receitas atípicas, como
tributos adiados de anos anteriores e R$ 12 bilhões extraordinários, a maior
parte recebida de empresas cujo desempenho no balanço foi melhor que o
declarado anteriormente.
Numa análise de um período maior, os
números do PIB e da arrecadação apresentam trajetória semelhante. Nos 12 meses
terminados em março de 2021, a economia encolheu 3,8% em comparação aos 12
meses anteriores. Analisando os números da Receita nesse mesmo período, nota-se
uma retração no total dos tributos da ordem de 5,5%.
Esse passado recente da arrecadação prova
que não há atalho. Nem a melhora de cenário para o PIB em 2021 acabou com a
previsão de contas do governo no vermelho. Para que o Brasil tenha um sistema
de cobrança de tributos justo, simples, que dê conta das necessidades fiscais
do governo e, ao mesmo tempo, não represente uma carga tão extorsiva nas costas
do setor produtivo, é urgente promover uma reforma tributária ampla e
racional.
Série de ataques em Manaus expõe
vulnerabilidade da segurança pública
O Globo
Duas epidemias assolam Manaus. Uma causada
pelo novo coronavírus, que, desde o ano passado, transformou a capital
amazonense num laboratório de horrores. A outra, pela violência. Esta eclodiu
há uma semana, depois da morte de um traficante pela polícia. O evento deu
origem a ataques que levaram os moradores a mais uma quarentena, desta vez
forçada não pelo temível vírus, mas pelos também letais fuzis do tráfico.
As ruas de Manaus e cidades do interior do
estado foram aterrorizadas por atos inadmissíveis num estado democrático de
direito. Criminosos incendiaram ônibus e viaturas da polícia, atacaram
delegacias, escolas, postos de saúde. O transporte público precisou parar, e
aulas tiveram de ser suspensas. Chegou-se ao cúmulo de interromper a vacinação
contra a Covid-19 no estado com uma das maiores taxas de mortalidade do país.
Sem conseguir controlar a situação, o governador do Amazonas, Wilson Lima
(PSC), requisitou a presença da Força Nacional.
Mais de 40 suspeitos foram presos, mas os
verdadeiros mentores do terror já estavam encarcerados. Investigações mostram
que as ordens para os ataques partiram de dentro dos presídios. O problema não
é novo, tampouco exclusivo do Amazonas. Em 2019, no Ceará, traficantes
impuseram o terror à população depois que o governo anunciou mudanças no
sistema carcerário, com o fim da divisão por facções. Bandidos alvejaram
prédios públicos, incendiaram ônibus e danificaram torres de energia e
telefonia. Em apenas dois meses, quase 300 ataques foram registrados em mais de
50 municípios.
Chefões do tráfico ou da milícia que estão
presos, em tese afastados do convívio social, continuam tocando seus negócios
criminosos de dentro dos presídios. Controlam o tráfico de drogas e de armas,
gerenciam milícias, determinam invasão de territórios rivais, mandam executar
inimigos e, como ficou evidente em Manaus, ordenam ataques a instituições e bens
públicos.
Esses episódios põem em xeque o frágil
sistema brasileiro de prisões e mostram que a segurança pública precisa ser
tratada de forma abrangente. Olhar apenas para dentro dos presídios ou para
fora de seus muros distorce a visão. No submundo das facções, tal fronteira já
caiu há tempos. Não se pode ignorar que significativas extensões do território
brasileiro, principalmente nas áreas urbanas, são controladas por quadrilhas de
narcotraficantes que, muito bem armadas, impõem à população um poder paralelo
ao Estado. Recorrer à Força Nacional ajuda a restabelecer a ordem, mas é um
paliativo.
O enfrentamento do crime organizado demanda um plano de segurança pública que envolva os três níveis de poder — sozinhos, os estados não dão conta de facções nacionais. Também é essencial o envolvimento ativo do Judiciário. E a legislação penal brasileira continua a ser leniente demais com o crime. Até agora, as ações do governo Bolsonaro na segurança — uma de suas bandeiras de campanha — têm se resumido a flexibilizar o uso de armas e munições. Ao contrário de ajudar, a medida tende a agravar o problema.
Continente Covid
Folha de S. Paulo
Deficiências e descoordenação projetam
América do Sul ao epicentro da pandemia
A América do Sul, embora com renda média
superior às de países e regiões pobres e populosas como Índia e África,
tornou-se o canto do mundo onde
a pandemia faz os maiores estragos. O continente é hoje o fulcro da
Covid-19.
Seus países e dependências se viram tomados
por epidemias do novo coronavírus Sars-CoV-2 em momentos diversos e com
dinâmicas próprias, mas o passar dos meses terminou por evidenciar que
condições comuns se impuseram para aproximá-los na ocorrência de números
alarmantes.
Deficiências nos sistemas de saúde,
desigualdade e agravamento da pobreza na pandemia têm pesado para impulsionar a
região nas estatísticas lúgubres. Uma comparação entre Argentina, Brasil e
Chile elucida como situações muito díspares de início convergiram para o
tenebroso panorama atual.
O Brasil atrai a atenção mundial porque,
com grande população e políticas desastrosas de Jair Bolsonaro, produz números
absolutos de infecções e óbitos chocantes.
Mesmo em termos relativos, em julho de 2020
o país se projetava com mais que o dobro da cifra de mortes diárias por milhão
de habitantes da Argentina (5 ante 2).
Na mesma época, era o Chile a se destacar
na mortandade, com saltos a 12 óbitos/milhão; em outubro do ano passado, foi a
vez de argentinos alcançarem picos breves de 17 mortes/milhão.
A partir de março deste ano o Brasil ficou
por quase dois meses na liderança de casos fatais, entre 10 e 15 óbitos/milhão.
Espalhou preocupação no mundo, sobretudo pela conduta indefensável do governo,
mas a epidemia estava longe de controlada nos vizinhos.
Recuos recentes abateram a mortalidade no
território nacional, entretanto permanecemos num nível alarmante de mortes
(8,5/milhão, perto da média sul-americana de 8,7). Em paralelo, os óbitos
explodiam entre argentinos (13/milhão).
Em que pesem disparidades nacionais, a
pandemia sul-americana se distanciou da observada em países que adotaram
políticas mais consequentes. A média mundial de óbitos diários por milhão está
em 1,2, similar à dos EUA, ainda o campeão de mortes acumuladas (599 mil,
contra 482 mil do Brasil).
Não parece correto atribuir as diferenças
apenas ao progresso disparatado da vacinação. Chile e Uruguai lograram imunizar
parcela similar da população (cerca de 60%), mas as mortes de uruguaios se
contam na casa de 18,3/milhão, face a 5,5/milhão de chilenos.
As nações sul-americanas têm vários
problemas em comum, de variantes do Sars-CoV-2 às deficientes ações de
distanciamento social, controle de fronteiras, rastreamento e isolamento de
contatos.
Não falta só ao Brasil uma coordenação do
combate à pandemia; os países do continente precisam também alinhar suas
políticas e derrotar o inimigo comum.
O setor mais atingido
Folha de S. Paulo
Cruciais para retomada do emprego, serviços
registram alta pequena em abril
É o padrão no mundo todo que a recuperação
após os piores momentos da pandemia se concentre inicialmente nos setores
produtores de bens, cuja demanda se manteve firme. Os serviços, que em sua
maior parte não prescindem de contato social, ficam atrasados e tem retomada
mais difícil.
No Brasil, o atraso na vacinação e a
sabotagem do governo federal aos esforços de controle sanitário impedem a
abertura consistente das atividades e tornam essa dicotomia ainda mais
acentuada.
Enquanto o Produto Interno Bruto já voltou
ao nível do final de 2019 no primeiro trimestre deste ano, os últimos dados
mostram que os serviços ainda patinam e permanecem 1,5% abaixo do patamar
pré-pandemia, de fevereiro de 2020.
Segundo a pesquisa mensal do IBGE, houve
alta de 0,7% em abril, pequena ante a queda de 3,1% observada em março,
quando o pico da segunda onda de contágio obrigou governadores e prefeitos a
ampliarem restrições.
O destaque de abril ficou com os serviços
prestados às famílias, que avançaram 9,3%, progresso que no entanto deve ser
relativizado depois da queda de 28% em março. Tal rubrica inclui alojamento e
alimentação, a que mais sofre desde o início da pandemia —a atividade ainda
está 40% abaixo da medida em fevereiro do ano passado.
O problema desse padrão de crescimento é
que os setores ainda desfavorecidos têm peso elevado no emprego, tanto considerando
as vagas com carteira assinada quanto as demais, que incluem informais e por
conta própria.
É nesses últimos dois grupos que se
concentram os trabalhadores de menor qualificação, os que mais sofrem com o
adiamento de uma retomada consistente das atividades. Muitas delas talvez não
voltem, como é fácil perceber pelos imóveis fechados que abrigavam pequenos
negócios.
O desafio mais imediato, evidentemente, é
acelerar a vacinação, mas os sinais que vêm de países que estão mais avançados
nesse processo sugerem que, após um empuxo inicial da atividade econômica, a
tendência é que sobrevenha uma acomodação.
Aí entra o tema mais importante para o
médio e o longo prazo —a concepção de políticas capazes de reverter ou ao menos
minimizar os danos legados pela pandemia.
Brasil gasta 7% do PIB com crise, mas precisa lidar com a dívida
Valor Econômico
O Brasil está entre os dez países que mais
desembolsaram recursos públicos para minorar os efeitos econômicos da pandemia
do novo coronavírus. No ano passado foram efetivamente gastos R$ 524 bilhões,
de um total previsto de R$ 604,7 bilhões, segundo dados oficiais do Tesouro
Nacional.
A diferença - R$ 80,7 bilhões - será
liberada ao longo do ano corrente, segundo revelou na semana passada o
subsecretário de dívida pública do Tesouro, Otávio Ladeira, durante audiência
pública promovida pelo Centro de Estudos e Debates Estratégicos (Cedes),
entidade vinculada à Câmara dos Deputados. Do total dos restos a pagar dessa
rubrica do orçamento de 2020, R$ 36,6 bilhões foram liberados nos quatro
primeiros meses do ano.
Em proporção do Produto Interno Bruto
(PIB), o volume de gasto público despendido no Brasil contra a pandemia chegou
a 7,3% no nível federal. Apenas nove países desembolsaram mais: Nova Zelândia
(o que mais liberou recursos contra a crise), Canadá, Estados Unidos, Japão,
Tailândia, Reino Unido, Áustria, Chile e Alemanha. Foi justamente esse fato que
permitiu reduzir a queda prevista do PIB em 2020 - das projeções iniciais do
mercado acima de 9% para 4,1%. Este foi um exemplo de despesa que deu
prioridade, não inteiramente mas em grande parte, a quem mais necessita da
ajuda do Estado, especialmente, nesta crise sanitária: os pobres e miseráveis,
considerável da população brasileira.
A decisão de se instituir rapidamente o
auxílio emergencial, principal instrumento de compensação usado desde o início
da pandemia para ajudar trabalhadores formais e informais que perderam seu
ganha-pão logo no início da crise, foi tomada pelo Congresso Nacional, sem que
o governo federal conseguisse impor obstáculos intransponíveis à materialização
da ajuda.
No início das negociações, o Poder
Executivo flertou com a possibilidade de criar um auxílio bem inferior aos R$
600 aprovados pelo Poder Legislativo, o que teria sido um equívoco, uma vez que
a duração da pandemia e, portanto, de seus efeitos sobre a economia se mostrou
maior que a esperada. Esta foi uma prova relevante de que a jovem democracia brasileira
já dispõe de instituições sólidas, capazes de tomar decisões cruciais, em
tempo, em favor da maioria dos brasileiros, mesmo quando interesses do governo
de plantão são contrários ao que determina a racionalidade.
Faz-se necessário observar, porém, que,
tendo sido o terceiro país mais afetado pela pandemia, atrás dos Estados Unidos
e da Índia, o Brasil estaria, agora, em situação muito melhor, do ponto de
vista de saída da crise, se o governo Jair Bolsonaro não tivesse reagido com
tamanho negacionismo à gravidade da pandemia. As investigações em curso,
abertas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado criada para
averiguar possível negligência do governo federal no que diz respeito à compra
de vacinas contra a covid-19, indicam que o governo supostamente perdera a
oportunidade de fechar contratos, em meados de 2020, para adquirir vacinas em
grande volume.
Diante da pandemia, a mais severa em cem
anos, já se sabia que o setor público teria que abrir o cofre para desembolsar
o que fosse necessário para minorar os efeitos da crise sanitária. A verdade é
que, no cofre, não havia muito porque o país já vinha de uma situação fiscal
debilitada desde 2014, quando a então presidente Dilma Rousseff decidiu
abandonar a política de geração de superávits primários (conceito que exclui o
gasto com juros da dívida) nas contas públicas. Dilma perdeu o mandato em 2016,
em processo de impeachment, entregando o cargo ao sucessor com uma dívida que,
em menos de seis anos de seus dois mandatos, crescera quase 20 pontos
percentuais de PIB.
O então presidente Michel Temer começou a arrumar a casa, com a adoção, entre outras medidas, do teto constitucional de gastos. Seu sucessor deu sequência à responsabilidade fiscal, mas, aí, adveio a pandemia. Apenas em 2020, o déficit primário atingiu 10% do PIB. O impacto da pandemia sobre as contas ainda não terminou: foram sete pontos percentuais de PIB no ano passado e, neste ano, estima-se que contribua com 1,4 ponto percentual do déficit previsto, de 2,3% do PIB. Os números mostram que chegou a hora de enfrentar novamente a situação fiscal, sob pena de o país perder o controle da dívida pública, que neste ano deve atingir o equivalente a 87,2% do PIB - a média dos países emergentes gira em torno de 60% do PIB.
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