- O Globo
‘É
tudo um tecido de mentiras.’
Essa frase de um personagem de Ingmar
Bergman às vezes me vem à cabeça quando tento sintetizar a política do governo
Bolsonaro contra a pandemia.
Noutros momentos, procurei destacar a base
dessa atitude devastadora, que é a negação de fatos. A negação como fenômeno
psicológico foi teorizada por Freud em 1923. Sua filha Anna Freud ampliou os
estudos do tema, sobretudo em crianças.
Não ver ou ouvir certos fatos às vezes é
uma tentativa de evitar a dor ou o desafio que abale nossas convicções do
mundo. Nas crianças indefesas, até que isso, em determinadas condições, tem um
lado positivo e permite seguir adiante apesar de experiências traumáticas.
Em política, esse conceito de negação foi
usado também para definir as teses que negam o Holocausto e as atrocidades do
regime nazista.
Mas às vezes essa tendência se infiltra na
sociedade. Michael Milburn e Sheree Conrad escreveram um livro sobre as
principais políticas de negação na sociedade norte-americana.
Bolsonaro se recusou a aceitar a existência
da pandemia. Da célebre comparação do vírus a uma gripezinha a todos os passos
posteriores, sua atitude foi negar.
No auge da pandemia, já com 480 mil mortos,
ele ainda fez uma tentativa desesperada de negar que todas essas mortes foram
causadas pela Covid-19. Para isso, um auditor amigo produziu um relatório fake
e o introduziu no sistema do Tribunal de Contas da União.
No entanto, na CPI da Covid, onde se apuram as responsabilidades, a tendência do governo é negar sua política de adesão à hidroxicloroquina e recusar a vacina. É a negação da negação.
O que fazer com tanta mentira? Para a CPI,
a tarefa é simples: alinhar declarações, atitudes e documentos e provar que
esse tipo de política causou mortes.
No campo político, entretanto, coloca-se
uma questão importante: como atuar na vida pública com um país tão intoxicado
pela mentira?
Não tenho ilusões de que o clima será muito
melhor no futuro. O crescimento da internet mostra como os grupos se atacam:
como enxames de abelhas, parecem morder diante de um pensamento que lhes
desagrada.
Outro dia, questionado sobre a
possibilidade de atenuação do clima, respondi longamente. Percebi como o tema
me preocupa.
Um dos caminhos é unificar o campo da
oposição e reduzir a hostilidade mútua diante do adversário comum. Coalizões
mais heterogêneas, como em Israel, surgiram da necessidade.
Para reduzir a hostilidade no campo de
oposição, não basta boa vontade. É preciso reconhecer que existem candidaturas
diferentes, representando a esquerda, o centro e até a direita.
Os que afirmam que não querem nem um nem
outro, nem Lula nem Bolsonaro, precisam avançar nessa forma simplificada,
reconhecendo que não são forças equivalentes; existe uma diferença de qualidade
entre elas.
Isso seria um primeiro passo. O centro
seria criticado apenas por pensar de forma diferente, mas não por estabelecer
uma equidistância artificial entre esquerda e extrema-direita.
Outra ideia que me parece válida é
reconhecer que Bolsonaro pode perder apoio. A tática correta não é estigmatizar
seus mais de 50 milhões de eleitores. Erros históricos coletivos acontecem. A
tarefa principal é tornar leve o caminho de volta para uma posição mais
sensata. O estigma, pelo contrário, dificulta a vontade de mudar.
São ideias iniciais. Quando as exprimi numa
conversa com Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto lembrou o plebiscito no
Chile e como uma posição mais solar, mais leve, acabou derrotando a herança de
Pinochet.
São ideias iniciais, mas uma reflexão sobre
o caminho. É insatisfatório apenas denunciar as mentiras do governo Bolsonaro e
seus passos rumo a um golpe.
É necessário criar uma base comum de resistência e, sobretudo, algumas razões para acreditar em mudanças. Isso não purifica a atmosfera política, mas pelo menos ajuda a respirar.
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