Progressistas
que celebram cancelamento da conta de Trump buscam pacto com plutocratas da
internet
“Não me diga que ele foi banido por violar as
regras do Twitter”, tuitou o opositor russo Alexey Navalny sobre Trump, “eu
recebo aqui ameaças de morte todos os dias, há anos, e o Twitter não bane
ninguém (não que eu peça isso)”. Twitter, Facebook e congêneres são veículos de
crimes contra a humanidade. Em Mianmar, serviram à campanha de limpeza
étnica dos militares contra a minoria rohingya e, na Índia, à operação
oficial de anulação
da cidadania dos muçulmanos de Assam. Os progressistas que celebram o cancelamento
da conta de Trump buscam uma aliança faustiana com os plutocratas da
internet.
Navalny erra apenas ao definir como censura o gesto do Twitter. Censura é, sempre, um ato estatal contra a liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão abrange também o direito de empresas privadas de se dissociar de discursos que consideram intoleráveis. Mas que ninguém se engane: no caso das plataformas globais de mídias sociais, os banimentos seletivos não derivam de padrões éticos mas de cálculos de negócio.
O
ato extremo do Twitter, bem como a suspensão
temporária imposta a Trump pelo Facebook, inscrevem-se numa estratégia
defensiva.
Nos
EUA, por razões distintas, as gigantes das mídias sociais entraram na mira de
democratas e republicanos. No horizonte, encontra-se a hipótese de fragmentação
legal dos oligopólios da internet. O “cancelamento” do presidente que termina
seu mandato à sombra da invasão
do Capitólio destina-se a lustrar a imagem das big techs perante o
novo governo democrata e sua maioria parlamentar.
Um
jorro celebratório acompanhou o banimento de Trump —e não só nos EUA. Os
progressistas brasileiros não ocultaram suas esperanças de que o cancelamento
virtual siga seu curso até Bolsonaro.
No fundo, acalenta-se a perspectiva de grande barganha: vocês excluem as vozes
odientas da direita nacionalista;
nós evitamos a derrubada da muralha que protege o vosso castelo.
O
nome da muralha é impunidade, o privilégio que separa as big techs dos veículos
tradicionais de imprensa. As empresas jornalísticas estão sujeitas à
responsabilização judicial pelos discursos que publicam. Se, nesta coluna,
calunio ou difamo alguém, a Folha compartilha
a responsabilidade pelo discurso criminoso —e, por isso, um editor supervisiona
meu texto. Twitter, Facebook et caterva, pelo contrário, não devem explicação
alguma sobre as mensagens difundidas por seus usuários. São, portanto, livres
para auferir lucros de campanhas de ódio movidas por governantes, partidos,
igrejas ou organizações extremistas. Para eles, o crime compensa.
O
privilégio da impunidade ancora-se na alegação de que as empresas de mídias
sociais não exercem funções editoriais: suas páginas eletrônicas seriam folhas
em branco preenchidas por usuários soberanos. Desde sempre, as regras de uso
sinalizaram a falsidade. Há um “editor oculto”, um software, que demarca os
limites da palavra permitida. Mas o banimento de Trump escancarou a paisagem.
As big techs fazem curadoria de conteúdo, de acordo com critérios políticos de
conveniência. No império de Putin, ninguém bloqueia as ameaças à vida de
Navalny; nos EUA do triunfo democrata, cancela-se a conta do presidente em
desgraça.
Jack
Dorsey, do Twitter, e Mark Zuckerberg, do Facebook, os Editores Supremos,
deixaram impressões digitais na escrivaninha, na tela, nas paredes e no teto.
É
hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo-os ao mesmo universo de
regras de responsabilidade que regula a imprensa. Ah, isso implodiria o modelo
de negócio dos gigolôs da xenofobia e do extremismo? Que pena...
Desconfio,
porém, que os progressistas preferem a aliança faustiana. Quem liga para
Navalny, os rohingya ou os muçulmanos de Assam? Eles são, afinal, um preço
baixo a pagar pela exclusão de Trump e Bolsonaro.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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