Por
Malu Delgado | Valor Econômico
SÃO PAULO - Quais são as consequências, para a democracia, quando as Forças Armadas estão no centro da arena política, como no caso brasileiro? A pergunta mobiliza há dois anos o cientista político Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Em novembro passado, ele publicou um artigo intitulado De volta ao centro da Arena: causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro, no “Journal of Democracy”, publicação que é referência mundial sobre o tema. Em parceria com Igor Acácio, Amorim Neto reflete sobre as dificuldades atuais. E não é só o Brasil. Também a América Latina vivencia esse fenômeno, enfatiza.
Em
entrevista ao Valor, por videoconferência, Amorim Neto ressalta o problema
de termos em órgãos de comando os militares, “organização opaca e radicalmente
verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência”. Ao formar um ministério
com quase 40% de militares e espalhar profissionais das Forças Armadas em mais
de seis mil postos do governo, Jair Bolsonaro revela que sabe exatamente o que
faz, pois consegue dissuadir o Congresso e a oposição de qualquer tentativa de
impedimento. A incerteza sobre o grau de adesão da cúpula militar a um eventual
golpe de Bolsonaro numa eventual tentativa de reeleição em 2022 é um ativo que
o presidente explora para se manter forte no poder. A seguir, trechos da
entrevista:
Valor: A América Latina já é vista por acadêmicos como a “terra das democracias militarizadas”. Quais indícios temos sobre isso?
Octavio
Amorim Neto: A pandemia de covid-19 reforçou essa tendência, mas os
problemas já estavam ficando patentes antes de 2020. O melhor exemplo é o
México, que teve longo período de regime autoritário, com o PRI. O país se
democratizou na década de 90, e militares tinham papel muito pequeno no
governo. No começo do século 21, por conta do narcotráfico, vem uma reversão de
um processo histórico de quase meio século, com a entrada de militares na arena
política. Veio a eleição de [Andrés Manuel] López Obrador e a presença de
militares aumentou mais ainda. O caso mexicano, junto com o brasileiro, são os
dois mais chocantes de militarização recente. Houve, também, o golpe na
Bolívia, por conta da última tentativa de reeleição do Evo Morales. Equador
Peru e Colômbia sempre tiveram presença muito forte das Forças Armadas, seja
para combater o crime ou para lidar com desastres naturais, ou reprimir
protestos, como o que vimos no Chile, um país que era tido como democracia
exemplar. Mas no Chile os militares viram as péssimas consequências e saíram.
Esses são grandes casos que trouxeram a atenção da academia latino-americana e
internacional.
Valor: O
senhor aponta o governo Bolsonaro como sui generis, com 39% do ministério
ocupado por militares, e 6 mil deles no governo. Quais as consequências disso?
Amorim Neto: Em primeiro lugar, Bolsonaro conseguiu criar um fator de dissuasão de tentativas de destituição. A entrada dos militares ajuda a evitar a repetição de um cenário como [Fernando] Collor e Dilma [Rousseff]. A experiência recente do Brasil com o regime militar ainda está viva na memória da classe política. O Brasil tem memória curta, mas de vez em quando esses fantasmas do passado renascem abruptamente. Os militares, desde 1989, são um dos principais atores políticos domésticos do país. Houve a ilusão, na comunidade acadêmica, de que o assunto foi resolvido no começo do século 21. Olha a surpresa que tivemos, a partir de 2018, e não apenas com a eleição de Bolsonaro. Em fevereiro de 2018 que tivemos o primeiro ministro da Defesa, militar, em quase 20 anos, o general [Joaquim Silva e] Luna, nomeado por Michel Temer. Em segundo lugar, Bolsonaro, apesar de estar nas política há três décadas, não tinha quadros. E onde presidentes buscam quadros? Em organizações e instituições em que confiam. Desde janeiro de 2019 eu denuncio as possíveis consequências negativas dessa militarização do governo. O melhor exemplo agora é o general [Eduardo] Pazuello. No regime democrático, a lealdade ao presidente da República tem que ser limitada. Um ministro de Estado não pode ser absolutamente leal ao presidente, tem que falar o que pensa. Se o presidente discorda, ele pede demissão e não acontece nada. No governo Bolsonaro, é totalmente diferente. Discordou, imediatamente vem o ataque da militância digital, e, em seguida, a demissão. Ou se subordina, como o Pazuello.
Valor: E esses que se subordinam inevitavelmente são os militares.
Amorim
Neto: Para os militares isso esta entranhado na pele deles, porque
presidente da República é o comandante chefe das Forças Armadas. Eles se
sentem, mesmo na reserva, obrigados a ser absolutamente deferentes ao chefe
supremo. Bolsonaro foi muito hábil neste sentido. A questão são as
consequências para a democracia, para as Forças Armadas e para a Defesa
Nacional de se colocar no centro da arena política uma organização como essa,
opaca, radicalmente verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência. No
regime democrático, hierarquia tem limite. Para os militares, não.
Valor: A
falta de transparência militar é um dos obstáculos mais delicados em
democracias?
Amorim
Neto: Sim. Partidos políticos, por exemplo, podem ser centralizados,
dominados por um chefe, ter uma série de problemas, mas eles votam
semanalmente. As preferências dos deputados estão lá, as reuniões de comissões
são abertas ao público, as brigas são visíveis. Isso facilita o papel da
imprensa e da cidadania, do ponto de vista da informação. Não existe isso nas
Forças Armadas. Por dever de ofício, vivem sobre segredo de Estado. E trazem
essa cultura para dentro do governo federal, o que o governo Bolsonaro fez
massivamente. Isso que é sui generis. Não digo que essa massiva
militarização acabou com a democracia, mas distorceu completamente o processo
político, e criou ambiguidade enorme em relação ao papel das Forças Armadas. O
papel delas não é governar o país.
Valor: O
papel dos militares deveria estar circunscrito a postos de Defesa, não sendo
recomendável que ocupem postos de governo?
Amorim
Neto: Se militares começam a ocupar cargos de civis, o poder político
deles aumenta. E ao verem seu poder político maximizado, a tarefa fundamental
da democracia, que é o controle civil dos militares, torna-se muito mais
difícil. Essa circunscrição é por razões políticas absolutamente fundamentais,
e não apenas porque eles conhecem o “métier” militar. É porque se eles
extrapolarem da área da Defesa, ou da Segurança Nacional, cria-se um problemão
político, como estamos vendo hoje. A definição de carreira militar, dada pelo
Comando do Exército Brasileiro é: “A farda não é uma veste da qual se despe com
facilidade, até com indiferença, mas uma outra pele que adere à própria alma,
irreversivelmente, para sempre”. Quando os militares dizem que militar da
reserva é civil, estão negando o que diz o Comando.
Valor: A
forma como o Brasil está enfrentando a covid-19 pode alertar o país e o mundo
sobre esse risco de militarização na democracia?
Amorim
Neto: Sem dúvida nenhuma o fato de termos um general da ativa comandando a
Saúde é a expressão suprema das consequências negativas da militarização.
Pazuello começou a fazer movimentos em direção à vacina, a falar publicamente.
Bolsonaro foi diretamente a ele, subordiná-lo e submetê-lo. E o que ele fez?
Aceitou. Isso tem a ver com o “ethos” militar, a cultura da obediência. Essa
ficha não vai cair agora, mas no médio prazo, depois dessa tragédia que é a
pandemia, vamos começar a ter o que havia nas décadas de 70 e 80, que é uma
desconfiança enorme das Forças Armadas pelos quadros civis do país. E isso é
péssimo para a democracia e é péssimo para a Defesa Nacional. Acho muito
difícil voltarmos a ter um regime militar. Vamos ter sempre algo muito próximo
de uma democracia, em que o Congresso terá um papel fundamental na aprovação do
orçamento, na determinação de diretrizes básicas da defesa nacional. Como é que
vai ser isso no pós-pandemia, no pós-Bolsonaro, depois da experiência de
Pazuello e outros ministros fazendo aquilo que não lhes cabe fazer?
Valor: Bolsonaro
é a expressão máxima dessa militarização, mas isso já não ocorria gradualmente
no pós-impeachment de Dilma?
Amorim
Neto: O problema da presença excessiva de militares no governo federal não
começa no governo Temer, começa no governo Dilma. Eles foram chamados para o
centro do Executivo federal por conta de grandes eventos, Copa, Olimpíadas, mas
também pelo uso excessivo de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO),
para ajudar aos governadores diante de greves das polícias estaduais. Dilma os
chamou para uma série de tarefas civis - o Exército foi chamado até para
recapear pista do aeroporto de Guarulhos. Esse é o tipo de irresponsabilidade
absurda das lideranças civis. E os militares passam a gostar disso. Eles dizem
que é desvio de função, mas gostam de ter mais poder político, como qualquer
organização. O governo do PT trouxe excessivamente os militares para dentro do
governo e, ao mesmo tempo, brigou com eles via Comissão da Verdade.
Tragicamente, se repetiram, com a organização militar, os problemas que Dilma
teve com as organizações partidárias. Ela chamou 10 partidos para governar e
brigou com quase todos. Fez a mesma coisa com militares.
Valor: Dilma
foi torturada na ditadura. A esquerda foi consciente ao estimular a
militarização?
Amorim
Neto: Não, eles não tinham noção do que estavam fazendo. Isso tem a ver
com um problema mais amplo: não há, na classe política brasileira, ao centro, à
esquerda e à direita, uma reflexão sólida sobre o que fazer com as Forças
Armadas. Houve um pragmatismo enorme de usar as Forças Armadas como ‘Bombril’,
serve pra tudo. Tem problema na polícia do Maranhão? Manda o Exército. Tem
desabamento no Espírito Santo? Manda o Exército. Não consegue recapear o
aeroporto em São Paulo? Manda o Exército. Na Paraíba falta água? Manda o
Exército. O que é isso! É uma irresponsabilidade. As Forças Armadas não são
para isso. Qualquer problema que existe no Brasil e que tem a ver com a
fraqueza das nossas capacidades estatais são chamadas as Forças Armadas.
Resultado: as Forças Armadas voltaram a ser uma organização política
fundamental para o regime democrático brasileiro, e isso veio concomitantemente
ao colapso das organizações partidárias. Não houve reflexão nenhuma pelas
grandes lideranças políticas civis do Brasil quando passaram a utilizar as Forças
Armadas para tudo. Elas também são responsáveis pelo imbróglio que vivemos.
Valor: Cometemos
erros na nossa transição democrática?
Amorim
Neto: A transição brasileira foi bem-sucedida em vários aspectos, mas
precisou de um grande pacto entre civis e militares, que implicou a anistia
àqueles que perpetraram violações de direitos humanos. As Forças Armadas
Brasileiras deixaram o poder em 1985 relativamente fortes, enquanto que na
Argentina estavam totalmente desmoralizadas. A correlação de forças aqui era relativamente
boa para os militares. Para mudar isso, precisaria de muita habilidade
política, o que fizemos sob Fernando Henrique e Lula. A outra alternativa seria
ser muito afirmativo em relação à necessidade da supremacia civil. Isso nossas
lideranças partidárias nunca se empenharam para fazer. Por que as elites civis
brasileiras têm tamanho desinteresse sobre o papel das Forças Armadas? É uma
reflexão escassa. E o Itamaraty é parte deste problema, porque nossos
diplomatas são alérgicos a qualquer discussão sobre a presença maior das Forças
Armadas na política externa.
Valor: E
os militares deveriam estar incluídos neste debate de política externa,
democraticamente?
Amorim
Neto: Sim, eles têm muito o que dizer. Hoje há problemas na América do Sul
que exigem Forças Armadas preparadas. Temos o problemão da Venezuela, o êxodo
venezuelano. Qual teria sido a melhor maneira de manejar os militares nos
últimos 25 anos? Era ativar arenas institucionais em que eles têm um papel
determinado pela lei. Exemplo: a convocação do Conselho de Defesa Nacional.
Jamais foi convocado. Se fosse, nossos líderes conheceriam melhor a cabeça dos
militares, e os militares conheceriam melhor a cabeça de nossos líderes. Nossos
líderes políticos se tornaram alérgicos à questão militar. Se quisermos colocar
os militares para fora da política depois de Bolsonaro, tudo terá que ser
matéria de reflexão.
Valor: A
falência da segurança pública fortaleceu a entrada dos militares na política
pelo voto, e temos ainda as milícias. Essa conjuntura não vai interditar esse
debate?
Amorim
Neto: Não tenha dúvida disso. O debate vai ser dificílimo. Por isso tem
que ser tema da campanha presidencial de 2022. Que poder político terá um
presidente da República e seus aliados no Congresso para reverterem essa
situação de militarização da política num regime democrático como o Brasil? É
fundamental essa discussão pública, isso tem que chegar às lideranças
políticas. Qualquer um que queira disputar com Bolsonaro, [João] Doria,
[Luciano] Huck, Lula, tem que discutir isso. Se optarem por não discutir, pela
estratégia de baixo custo, que é a padrão dos civis brasileiros para lidarem
com questões militares, vamos continuar convivendo com os fantasmas do
pretorianismo.
Valor: A
invasão do Capitólio nos EUA suscitou um debate mundial. Há risco de Bolsonaro
dar golpe com o aval militar?
Amorim
Neto: Em dezembro de 2020, o general [Edson Leal] Pujol participou de
teleconferência para discutir os planos do Exército para os próximos 10, 20
anos. Falou, de forma muito suave, que a política não deve entrar nos quartéis.
Foi a mensagem mais clara que uma liderança institucional das Forças Armadas
deu de que o Alto Comando do Exército não vai se associar a aventuras
golpistas. Mas resta a questão dos subordinados. Minha interpretação é que o
Exército é radicalmente profissional, e a disciplina vai prevalecer. Se o Alto
Comando não quer aventura, os escalões intermediários e inferiores não vão
entrar nessa. Essa mensagem foi captada pelo bolsonarismo e não à toa passaram
a testar outra instituição. Estamos vendo agora o debate sobre a perda de
controle das Polícias Militares pelos governadores. O populismo autoritário de
extrema direita, a la Trump, vai testando todas as instituições, Congresso,
Judiciário, Forças Armadas, polícia... Se perde aqui, tenta acolá. Se a
proposta de maior autonomia das polícias militares é aprovada no Congresso,
Bolsonaro e o bolsonarismo ganham. Se é derrotada, ele vai dizer: ‘eu tentei,
estou sempre junto dos meus seguidores, quem me derrotou foi a velha política,
as elites’. Acho que via militar está bem estreita e fechada agora, depois do
pronunciamento do general Pujol. E soube que a Marinha mandou informar a
lideranças do Congresso que também está fora disso.
Valor: Há
chances de esses projetos das polícias prosperarem ou vai depender da eleição
no Congresso?
Amorim
Neto: Dificilmente passará, inclusive porque o Exército não gostou da
ideia. É um desafio ao monopólio e autoridade, sobretudo do Exército, no que
diz respeito ao uso da força legítima dentro do território nacional. Para
Bolsonaro ser derrotado não é um problema. O fundamental é marcar posição
perante o seu eleitorado radical. E tem o segundo benefício: desvia a atenção
da má-gestão do governo na pandemia, educação, etc.
Valor: Parte
da cúpula militar está ao lado de Bolsonaro. Como ter tanta certeza sobre o que
farão?
Amorim
Neto: Essa incerteza persistirá até o final do governo. Isso é um grande
ativo na mão do Bolsonaro, a incerteza permanente da classe política, do
jornalismo, da academia a respeito de para onde vão as Forças Armadas.
Valor: Por
que os militares foram para o governo Bolsonaro?
Amorim
Neto: Há décadas os militares reclamam de salários baixos e parcos
investimentos, além de instabilidade nos gastos de Defesa. Quase todo o
orçamento da Defesa vai para custeio, salários. É papel deles reduzir o gasto
com pensões e salários, e o que vimos no governo Bolsonaro foi justamente o
contrário. E a questão do anticomunismo sempre esteve presente no coração e nas
mentes das Forças Armadas, desde a década de 30. Bolsonaro foi hábil ao pegar
essa força subconsciente do anticomunismo militar brasileiro e adequá-la ao
século 21, chamando-a de antipetismo. E a corrupção sempre foi o catalisador
desse anticomunismo e salvacionismo militar.
Valor: Não
há chance de impeachment com a militarização?
Amorim Neto: Vai depender muito do resultado da eleição da Câmara em fevereiro. Se o Arthur Lira (PP-AL) vencer, não teremos impeachment. Bolsonaro continua competitivo, mesmo com as perspectivas negativas da economia em 2021 e 2022. Isso porque a oposição continua muito fragmentada, a esquerda continua brigando entre si. A esquerda, se quiser derrotar Bolsonaro em 2022, terá que se unir para apoiar um candidato de centro. Isso é simples e óbvio, mas essa discussão ainda está muito atrasada.
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