Bolsonaro
bate na mesma tecla de Trump, a mais golpista e antidemocrática
Enquanto
assistia, horrorizado, ao ataque das tropas de choque de Donald Trump ao
Congresso americano, a expressão “this is
a cautionary tale” me vinha e voltava à cabeça. Não encontrei forma
sintética para traduzi-la, mas não é difícil explicar o seu significado.
Simplificadamente, cautionary
tale é uma história (no passado grafaríamos estória) que
alerta o leitor ou ouvinte sobre o risco de incorrer em grave perigo se tomar
ou mantiver irrefletidamente certas iniciativas.
As
imagens das milícias da extrema direita americana assaltando o Capitólio valem
mais do que mil palavras: as forças tradicionais de direita que se aventuram a
pular na garupa de líderes populistas autoritários, imaginando que cedo ou
tarde lhes arrebatarão as rédeas, terminam pisoteadas pelo fanatismo de seus
seguidores. É o que experimentaram os sabujos de Trump, que à última hora
constaram o que já era obvio há muito tempo: o presidente dos Estados Unidos
não hesitaria em jogar o país no abismo da violência e da tirania para reter o
poder e/ou salvar a própria pele.
Uma
coisa é ler sobre como as forças tradicionais de direita na Itália e na
Alemanha dos anos 20 e 30 do século passado se aliaram ao nazi-fascismo para
depois se tornarem, também elas, vítimas dos horrores do totalitarismo. Outra
bem diferente é ver a história sendo de algum modo reeditada – ela nunca se
repete – em cores e ao vivo, numa profusão de imagens aterradoras. Os
milicianos que vandalizaram o Congresso não queriam apenas a cabeça de Nancy
Pelosi, a presidente democrata da Câmara, mas também a do vice-presidente
Mike Pence, que alguns ameaçavam enforcar, como mostram vídeos e mensagens
de Twitter.
Felizmente, as instituições americanas resistiram ao mais duro teste a que já foram submetidas, embora não se saiba ainda quais serão as consequências de longo prazo da trágica passagem de Trump pela Casa Branca.
Resistiram
porque houve coragem cívica de muita gente, que não se dobrou aos desmandos
trumpistas. As instituições das democracias liberais não param em pé por si
mesmas. Precisam de atos cotidianos de resistência e reforço e, nas horas
decisivas, de homens e mulheres dispostos a se arriscar para defendê-las, como
o fizeram, entre outros, as autoridades eleitorais, republicanas e democratas,
que impediram Trump de violar os resultados cristalinos do pleito presidencial.
E
nós, aqui? O repúdio ao assalto ao Capitólio foi imediato e duro da parte dos
presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado e de juízes do Supremo Tribunal
Federal, assim como da imprensa. Já o presidente da República aproveitou o
episódio para fazer coro com as mentiras de Trump sobre as inexistentes fraudes
na eleição americana e para lançar ameaça sobre as consequências de uma
eventual derrota sua em 2022: “Aqui pode acontecer coisa pior”.
Jair
Bolsonaro bate na mesma tecla de Trump, a mais flagrantemente golpista e
antidemocrática de seu tosco repertório autoritário: só será legítima a eleição
que ele vença. Não se trata de bravata, mas de uma peça retórica para mobilizar
antecipadamente as suas bases, igualzinho ao que fez o derrotado presidente
americano.
Tal
barbaridade deveria merecer o rechaço público dos companheiros de viagem de
Bolsonaro que ainda podem dissociar-se do risco que ele representa. Salvo
exceções, porém, o que se ouviu foi o silêncio. Já não era tempo de as Forças
Armadas terem feito o exame de consciência necessário para se darem conta do
erro que cometeram ao se deixar enredar pelo capitão presidente? E os
empresários, de reconhecerem o autoengano de havê-lo apoiado e continuarem a
fazê-lo em nome de reformas que ele não está disposto a fazer? E os políticos
profissionais da direita racional e democrática, de sobrepor a sua reputação a
seus interesses de curto prazo?
Não
sou alarmista e confio em que, ao fim e ao cabo, as instituições democráticas
no Brasil vão prevalecer, mas, como bem disse o professor Hussein Kalout em
entrevista recente ao Valor
Econômico, “o roteiro para o Brasil repetir o cenário dos EUA está
pronto”. Ao menos na cabeça do presidente, de seus acólitos e de suas milícias
reais e virtuais.
Outro
a alertar para o perigo foi o jurista Miguel Reale Júnior. Para quem sabe, como
ele, juntar os pontos, não passa despercebido que o presidente tem três
obsessões interligadas: apontar sem base alguma os riscos de fraude do sistema
das urnas eletrônicas, facilitar o acesso às armas e enaltecê-las como
instrumento de exercício da vontade popular e da liberdade individual e
cultivar com especial cuidado suas bases de apoio entre policiais e militares
de baixa patente.
Que o roteiro esteja preparado, e o elenco de personagens venha sendo sub-repticiamente arregimentado, não significa que estejamos condenados a viver o filme de horror que habita os sonhos do presidente. Mas é preciso dizer em alto e bom som que o risco existe e atuar em todas as frentes para reduzi-lo. Mais importante ainda é construir uma aliança de forças capaz de aplicar a Bolsonaro uma derrota eleitoral definitiva.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
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