Senado precisa fazer correções na reforma tributária
O Globo
Senadores têm como missão retirar exageros,
tornar transparentes alguns pontos e evitar piorar o texto
É positiva a intenção dos senadores de
deixar uma marca no texto da reforma
tributária aprovado na Câmara dos Deputados. Há, de fato,
correções a serem feitas, mas sem perder de vista a necessidade de levar
adiante a aprovação. Um dos pontos que precisam cair é a criação de um novo
imposto estadual para produtos primários ou semielaborados, medida contrária ao
espírito de simplificação da reforma. Aprovado de última hora durante a votação
na semana passada por pressão de parte dos governadores, o artigo é motivo de
preocupação para empresários do agronegócio e mineração, dois dos principais
setores da economia.
Além de suprimir do texto os excessos, os senadores devem torná-lo mais transparente. Com a reforma, empresários deixarão de pagar impostos de forma cumulativa. Tributos cobrados na compra de insumos, equipamentos ou serviços, como energia ou transporte, serão transformados em créditos. A medida adotada na maioria das economias desenvolvidas é essencial para elevar a competitividade do país. Na versão atual, o texto não deixa claro como esses créditos serão reconhecidos ou em que prazo serão devolvidos. Dado o histórico de judicialização de temas tributários do Brasil, os senadores ajudarão se explicitarem tudo na lei.
Feitas as correções e clarificações, os
senadores precisam evitar o erro de piorar o texto atual. O mais grave seria
aumentar o número de serviços e mercadorias com taxação reduzida. A experiência
internacional mostra que as empresas favorecidas com reduções de alíquotas não
costumam repassá-las aos preços. Nas raras vezes em que isso acontece, o
resultado é injusto, porque beneficia pobres e ricos de forma indiscriminada.
Com algum esforço, o Senado tem a
oportunidade de sacramentar um avanço esperado há décadas. É difícil
superestimar os efeitos positivos de uma reforma que consiga simplificar o
“manicômio tributário” brasileiro. Como mostrou O GLOBO, a complexidade do
sistema atual faz as empresas de construção verticalizar as operações. Em vez
de comprar peças de concreto ou pilares de fornecedores especializados, acabam
por fazer tudo no canteiro de obras para evitar os impostos em cascata. Na
indústria de cosméticos, os tributos para perfumes são de 42%, de 12% para água
de colônia e menor ainda para desodorantes. Por isso, o mercado local tem
produtos raros em outros países, como “deo colônia”. A criatividade acaba sendo
usada para escapar das alíquotas maiores.
É esperado que os senadores promovam um
debate profundo sobre a reforma, mas eles errarão se for exageradamente longo.
É um despropósito prever um prazo de dois meses para a aprovação, sabendo que o
adiamento desnecessário só facilitará a ação de quem está interessado em
descarrilar a reforma. Infelizmente, o histórico recente do Senado na área
econômica causa alguma preocupação. O projeto do novo arcabouço fiscal saiu da
Casa pior do que entrou, por ter sucumbido a pressões contrárias aos interesses
da maioria dos brasileiros. Os senadores têm na análise do texto da reforma
tributária a chance de fazer diferente e melhor.
Desabamento de prédio em Pernambuco era tragédia anunciada
O Globo
Condenada pela Defesa Civil, a edificação
estava há anos ocupada ilegalmente, prática comum no Brasil
Nenhuma autoridade pode se dizer surpresa
com o desabamento de parte de um prédio na cidade de Paulista, Região
Metropolitana do Recife, na última sexta-feira, deixando 14 mortos e sete
feridos. A tragédia expõe de forma contundente ao país, mais uma vez, o risco
das ocupações irregulares em construções incapazes de oferecer o mínimo de
segurança a seus moradores. Não se pode ignorar o fato de que o edifício já
havia sido condenado pela Defesa Civil e, por isso, estava interditado desde
2010. Há cinco anos, uma nova vistoria confirmou os riscos. Mas a ocupação
prosseguiu. O prédio que ruiu parcialmente faz parte de um conjunto
habitacional onde outras unidades se encontram ameaçadas.
Impressiona como as histórias se repetem
sem que ninguém faça nada para evitar um desfecho trágico — e previsível. Em
abril, o Edifício Leme, no bairro Jardim Atlântico, em Olinda (PE), havia
desmoronado em condições semelhantes, causando a morte de seis moradores.
Também havia sido interditado em 2000 devido a riscos de desabamento. Havia
laudos atestando que sérios problemas comprometiam a segurança da construção.
Apesar disso, acabou invadido, e alguns apartamentos chegaram a ser alugados
para famílias que não tinham onde morar, numa trágica exploração da miséria.
Infelizmente, o país coleciona histórias
desse tipo. Em 1º de maio de 2018, o Edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado
irregularmente por cerca de 300 famílias, desabou após pegar fogo no centro de
São Paulo, matando sete pessoas, destruindo parte de uma igreja e atingindo
parcialmente prédios vizinhos. As chamas teriam começado no quinto andar,
alastrando-se rapidamente. A construção de 24 andares veio abaixo no momento em
que bombeiros tentavam resgatar um morador. Todo mundo sabia, inclusive as
autoridades, que um acidente era iminente. O grande número de ligações
clandestinas e a enorme quantidade de material inflamável nos apartamentos
formavam um ambiente propício a desastres.
É inaceitável a leniência de autoridades
com ocupações de construções, muitas delas organizadas por movimentos que
pretensamente alegam ajudar os pobres. Gestores costumam pensar apenas no custo
político de barrar invasões, um erro inaceitável. Não se trata de questão política,
mas técnica. Se determinado imóvel é interditado por uma instituição como a
Defesa Civil, é porque ele oferece riscos a seus ocupantes. Sendo assim, não
pode servir de moradia a quem quer que seja.
Compreende-se que sucessivos governos nos
três níveis da administração não conseguem dar resposta ao histórico problema
da falta de moradia. E que muitas vezes a invasão de imóveis parece ser uma
solução paliativa, até que apareça uma melhor. Não é. Autoridades precisam não
apenas interditar as construções que oferecem risco, mas impedir, usando todos
os meios legais, que elas sejam ocupadas. Não é possível continuar fazendo
vista grossa a uma situação que, cedo ou tarde, resultará em novas e dolorosas
tragédias.
No calor da hora
Folha de S. Paulo
Dados alarmantes do clima global contrastam
com inação de governos e empresas
A torrente de notícias das últimas semanas
sobre recordes de alta temperatura na Terra foi de atordoar. Difícil de
assimilar, em particular por brasileiros do Sul e Sudeste que batiam os dentes
sob mínimas abaixo dos 10ºC.
Céticos da mudança do clima não se cansam
de semear dúvidas ao embaralhar as escalas da meteorologia, de alcance local ou
regional, no curto prazo, e do clima, mais para o global a médio e longo
prazos. Trânsfugas da racionalidade se apressam a questionar: Como assim, dia
mais quente, com esse frio de rachar?
Não há contradição. Os recordes se referem
à temperatura média da atmosfera terrestre, cifra
abstrata computada com base em milhões de dados coletados por
satélites, estações meteorológicas, aeronaves de pesquisa e boias oceânicas.
Com esse cabedal de mensurações a
Universidade do Maine (EUA) constatou três quebras sucessivas de recordes
diários, na segunda (3), na terça e na quinta-feira da semana passada,
respectivamente 17,01ºC, 17,18ºC e 17,23ºC. Médias muito próximas foram
calculadas pelo observatório europeu de mudanças climáticas, Copernicus.
Tais variações em centésimos de graus
Celsius podem parecer insignificantes, mas cumpre lembrar que são valores
médios globais, sob os quais se ocultam preocupantes anomalias localizadas. De
todo modo, mesmo em sua abstração os dados suscitam alarme, pois vêm
corroborados por outros.
Junho foi o mais quente já registrado,
segundo o Copernicus. O gelo marinho em torno da Antártida alcançou a menor
extensão para esse mesmo mês. Oceanos do hemisfério Norte estão entre 0,5ºC e
5ºC mais aquecidos que o usual. Um El Niño se
arma no Pacífico para catapultar 2023 ao pódio de ano mais escaldante.
A tendência de aquecimento global se
patenteia, porém segue ignorada, na prática, por negociações internacionais que
só andam de lado. Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, "as
mudanças climáticas estão fora de controle".
Eventos extremos como as chuvas em Alagoas
e os incêndios florestais no Canadá se tornam cada vez mais frequentes.
Governantes, diplomatas e empresários, na zona de conforto assegurada pela
dissonância cognitiva que confunde a opinião pública, agem como se estivessem
em 1992.
Lá se foram 31 anos desde a Cúpula da Terra
no Rio, e desde então as emissões de carbono só fizeram subir. Agora, para
conter o aquecimento, há que ceifar pelo menos 40% dessa poluição climática até
2030 e neutralizá-la até 2050.
As convicções são apenas parciais, contudo,
como exemplifica o governo brasileiro, que se empenha contra o desmatamento mas
ainda se inebria com a pujança petrolífera e automobilística.
Ensino nos trilhos
Folha de S. Paulo
Escola de tempo integral não é panaceia,
mas coloca pais no caminho da educação
A aprovação na Câmara do projeto de lei que
implementa a Escola de Tempo Integral é boa notícia para a educação brasileira.
O modelo contribui para diminuir a evasão escolar, melhorar indicadores de
aprendizado, além de impactar positivamente o futuro acadêmico e profissional
dos estudantes.
Em 2004, Pernambuco
foi pioneiro na implantação do sistema. Em 2007, o estado ocupava a
21ª posição no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do ciclo médio;
após sete anos, estava na 1ª.
Uma das metas do Plano Nacional de
Educação, de 2014, era ofertar ensino integral em 50% das escolas públicas, que
atenderiam no mínimo 25% dos alunos. Mas, em 2021, o índice de matrículas em
escola de tempo integral caiu 2,5 pontos percentuais em relação a 2014 —de
17,6% para 15,1%.
A implantação do modelo aumenta
sobremaneira os gastos de estados e municípios, já que é preciso expandir
estrutura física (salas, material didático, merenda escolar etc.) e de pessoal
(contratação e capacitação de educadores).
O projeto prevê auxílio de R$ 4 bilhões:
metade em 2023 e 2024, e o restante no biênio seguinte. A meta é viabilizar 1
milhão de novas matrículas no curto prazo e, até 2026, chegar a 3,2 milhões.
O Ministério da Educação também fornecerá
orientação técnica às redes sobre alocação dos recursos, redesenho curricular,
diversificação de materiais pedagógicos e indicadores de avaliação contínua.
O ensino médio merece atenção especial. Em
estratos mais pobres, é comum que adolescentes trabalhem para contribuir com a
renda familiar. Por isso o aumento do número de escolas de tempo integral nem
sempre é acompanhado por alta adesão do corpo discente.
Em São Paulo, por exemplo, 45% das escolas
estaduais são de tempo integral, mas apenas
17% dos alunos estudam nelas.
Ou seja, um efeito adverso é acabar
aprofundando desigualdades, ao empurrar alunos vulneráveis para o ensino
parcial, que recebe menos recursos, ou para a evasão escolar. A oferta de
bolsas pode ajudar esses jovens a se dedicarem apenas aos estudos.
Não há bala de prata que resolva problemas
complexos, mas implementar o ensino integral como política pública de Estado ao
menos coloca o Brasil no caminho já trilhado por países que são referência
mundial na área da educação.
O dever do Senado
O Estado de S. Paulo
A reforma tributária que passou na Câmara
acolheu pontos que protegem os Estados e que vieram do Senado. É obrigação do
Senado, pois, aprovar a reforma que ajudou a construir
A aprovação da reforma tributária pelos
deputados foi um feito na história brasileira. Não há, nos anos recentes, algo
comparável ao que ocorreu na semana passada na Câmara. Poucas vezes se viu um
apoio tão expressivo a um texto que promove mudanças tão profundas e
necessárias no sistema tributário. Agora que a proposta chega ao Senado, os
senadores terão a oportunidade de mostrar o mesmo senso de compromisso com o
País.
O Senado é o ambiente legislativo em que os
Estados são representados. É comum que senadores já tenham sido governadores ou
almejem disputar o cargo ao longo de sua vida pública. Cinco dos nove
presidentes da República desde a redemocratização por lá passaram, prova da
responsabilidade que significa ocupar uma das 81 cadeiras do Senado.
No caso específico da reforma tributária,
uma vez que a proposta começou a tramitar pela Câmara, caberá ao Senado atuar
como casa revisora. É bom que tenha sido assim, pois a reforma produzirá
impactos sobre o tributo que sustenta as finanças dos Estados – o Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
A essência da reforma tributária é
simplificar o sistema, eliminando as disfuncionalidades de um modelo marcado
por regimes especiais, subsídios, cumulatividade e regressividade. Uma de suas
alterações mais importantes é a que muda a incidência do ICMS sobre bens e
serviços da origem para o destino, distorção que criou as condições para a
guerra fiscal. Adotada por alguns governadores, essa estratégia desesperada
para atrair empresas drenou as receitas dos Estados e pouco se reverteu em
termos de crescimento e geração de empregos.
A virtude da reforma tributária aprovada
pelos deputados é que ela acolhe as questões que tanto preocupavam os
governadores – e isso ocorre não por acidente, mas por contribuição do Senado.
Não é algo trivial, uma vez que foram justamente receios quanto à perda
potencial de arrecadação e de investimentos que impediram a construção de um
consenso mínimo sobre a reforma nos últimos 35 anos.
É importante reconhecer as diferenças entre
o texto original da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019, de autoria
da Câmara, e a redação final a que os deputados deram aval na semana passada.
Muitas destas diferenças refletem justamente sugestões que inicialmente faziam
parte somente da PEC 110/2019, de autoria do Senado.
Originalmente, a PEC 45 estabelecia um
Imposto sobre Valor Agregado (IVA) único, em vez do IVA dual e do imposto
seletivo propostos na PEC 110. A PEC 45 determinava uma alíquota única,
enquanto a PEC 110 previa setores isentos e com direito a alíquotas reduzidas.
O Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) só existia na PEC 110; ambas
mantinham o Simples Nacional, mas somente a PEC 110 mantinha a Zona Franca de
Manaus.
Um dos pontos que mais geraram debate na
Câmara foi a criação do Conselho Federativo para gerir as receitas de Estados e
municípios, prevista apenas na PEC 110. Questionada pelo governador de São
Paulo, Tarcísio de Freitas, a governança do conselho foi ajustada ainda na
Câmara, tendo como premissa o equilíbrio na relação de poderes entre os Estados
e o fortalecimento da Federação, em linha com o que defende o Senado.
Resta claro que a reforma aprovada na
semana passada não foi a reforma tributária da Câmara, mas uma junção dos
textos propostos na Câmara e no Senado há quatro anos. É isso o que explica
muito do apoio expressivo que ela recebeu dos deputados – e é isso que os
senadores devem ter em conta quando tiverem a chance de se posicionar sobre a
reforma.
Há tempo e espaço, no entanto, para que o
Senado aprimore a redação final da proposta. Preservar seu espírito é aprovar
uma reforma ainda mais justa, que reveja parte das exceções a que os deputados
deram aval de última hora. Os privilégios dados a alguns oneram a alíquota
geral de todos os demais – e foi assim, aos poucos, que o País chegou ao
manicômio tributário que finalmente será encerrado agora. É, portanto, dever
dos senadores defender a reforma aprovada na Câmara, que protege os Estados e
que o Senado ajudou a construir.
A Otan põe os dois pés no século 21
O Estado de S. Paulo
Na sua cúpula mais importante desde a queda
do Muro de Berlim, Otan precisará revisar o seu maquinário militar e dar prova
de unidade para dissuadir a Rússia e outras autocracias
Há pouco mais de três anos, o presidente
francês, Emmanuel Macron, decretou que a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan) sofria de “morte cerebral” e o então presidente americano, Donald
Trump, a declarou “obsoleta”. Tais percepções entraram nos cálculos de Vladimir
Putin quando invadiu a Ucrânia. Mas assim como ele subestimou a força de Kiev,
subestimou a unidade da Otan. “Putin está recebendo o oposto do que queria –
mais Otan, não menos”, disse recentemente o secretário-geral da Otan, Jens
Stoltenberg. “Ele pensou que poderia nos dividir e nos impedir de apoiar a
Ucrânia. Enquanto a Otan não é parte nesse conflito, os aliados estão mais
unidos do que nunca em prover assistência militar sem precedentes para apoiar o
direito de autodefesa da Ucrânia, consagrado na Carta da ONU, e ajudá-la a se
manter um país livre e democrático.”
A Ucrânia estará no foco da cúpula anual da
Otan, nos dias 11 e 12, na Lituânia, considerada a mais importante desde a
queda do Muro de Berlim. Além dos clamores de Kiev por integrar a Aliança, os aliados
discutirão a entrada da Suécia (que sofre resistência da Turquia); a relação
com a Ásia, especialmente com a China; e, sobretudo, aprovarão o primeiro plano
abrangente de defesa desde a guerra fria.
Se o ataque russo galvanizou a unidade da
Otan, também mostrou que as forças ocidentais estavam mal equipadas para uma
guerra como a da Ucrânia ou como a que a China pode mover contra Taiwan. Por um
quarto de século após a guerra fria, as democracias ocidentais acreditaram que
a era de confrontos globais havia passado. Os gastos com defesa diminuíram e
ajudaram as nações europeias a expandir seus sistemas de bem-estar social. As
populações desses países talvez relutem em admitir que esse “dividendo da paz”
acabou, mas os líderes mais realistas já entenderam que, se quiserem preservar
uma paz ampla, precisarão se preparar melhor para a guerra.
Isso significará se comprometer
efetivamente com a velha promessa de atingir ao menos 2% dos PIBs nacionais com
defesa. Desde o início da guerra, isso vem acontecendo. Mas há a questão de
como canalizar esses investimentos. Tecnologias sofisticadas, como defesas
cibernéticas, drones e mísseis de precisão, são caras e a guerra na Ucrânia
mostrou que tanques, artilharia e tropas terrestres são tão relevantes quanto
sempre foram.
A complexidade geopolítica é, em certo
sentido, mais desafiadora do que na guerra fria, e as democracias terão de
compartilhar tecnologias e inteligência ainda mais intensamente do que no
século 20.
A Ucrânia, por sua vez, quer dar passos
decisivos rumo à sua integração na Otan. Em meio à guerra isso é impossível.
Mas os aliados precisarão discutir que tipo de compromisso oferecerão no
futuro. Ela se tornará uma nova Finlândia, forçada a ceder território e a
permanecer neutra por décadas? Ou uma Alemanha do pós-guerra, com parte do
território sob domínio russo e a parte democrática integrada à Otan? Ou então
Israel, que se defende de poderes hostis sem alianças formais, mas com amplo
apoio militar dos EUA?
Em 2008, os EUA favoreciam a entrada da Ucrânia
na Otan, enquanto potências europeias, como França, eram reticentes. Hoje os
papéis se inverteram. A cúpula não será conclusiva, mas deve produzir um
cardápio de opções. Se não obtiver a carteirinha de sócio da Otan, a Ucrânia
precisará de garantias críveis para dissuadir a Rússia.
Por ora, o desgaste de Putin pode estar
abrindo uma janela para negociações. “Mas não esqueçamos que o que acontece na
mesa de negociações está inextricavelmente ligado ao que acontece no campo de
batalha”, lembrou Stoltenberg. “Devemos continuar a apoiar a Ucrânia para que
ela prevaleça como um Estado soberano e independente na Europa.” Sejam quais
forem as divergências sobre os arranjos propostos para o futuro, no presente há
ao menos uma clara consciência de que, se Putin prevalecer na Ucrânia, a mensagem
para os regimes autoritários será de que a força lhes dará o que querem,
tornando o mundo mais perigoso e todas as democracias mais vulneráveis.
O descaso que mata
O Estado de S. Paulo
Desabamento em Pernambuco reitera urgência
de políticas públicas de habitação
Quatorze corpos foram resgatados pelos
bombeiros dos escombros de um prédio que desabou por problemas estruturais no
município pernambucano de Paulista, a menos de 15 quilômetros da capital,
Recife. A vida de crianças, adolescentes e adultos formou o triste mosaico do
descaso. O prédio, no Conjunto Habitacional Beira-Mar, estava sob interdição
havia 13 anos, justamente pelo perigo que representava.
O conjunto habitacional do Grande Recife,
com seus 29 blocos, é o mais recente exemplo da negligência a que é relegada
uma imensa população pobre e periférica nas grandes cidades brasileiras. Nove
blocos estavam interditados antes do desabamento; depois da tragédia, o total
subiu para 15 – mas sem que haja uma solução para as famílias impedidas de
ocuparem suas casas.
Foi por falta de opção que muitos voltaram
ao prédio que desabou, depois de duas interdições, uma em 2010 e outra em 2018.
É o caso da pensionista Leidjane Costa, de 62 anos, que, alertada pelo filho,
conseguiu escapar antes de o prédio ruir. Ao Estadão ela contou que saiu do
apartamento, seu único bem, nas duas vezes em que foi notificada. “Faz muito
tempo que eu queria ter saído daqui”, lamentou, explicando ter retornado por
não ter sido indenizada ou tido acesso a qualquer alternativa de moradia. “Como
é que poderia sair?”
Infelizmente são histórias que se repetem
como a materialização do pesadelo vivido pela população vulnerável diante da
insuficiência de políticas públicas capazes de reduzir o déficit habitacional.
As imagens do fogo, do colapso e do desabamento do prédio de 24 andares ocupado
irregularmente no Largo Paiçandu, em São Paulo, que deixou sete mortos em 2018,
ainda estão nítidas na memória. Na tragédia de Pernambuco, além dos
proprietários, outros tantos também ocupavam irregularmente os imóveis que,
apesar de interditados, não tinham fiscalização.
De acordo com os dados mais recentes da
Fundação João Pinheiro, que mede o déficit habitacional do Brasil, em 2019
cerca de 5,8 milhões de brasileiros não tinham onde morar com dignidade.
Moradia é um direito previsto na Constituição brasileira, descrito no artigo 23
como uma responsabilidade compartilhada entre União, Estados, Distrito Federal
e municípios, que devem “promover programas de construção de moradias e a
melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.
Cada vida perdida em calamidades como a do
Conjunto Habitacional Beira-Mar é o retrato do desrespeito continuado à
Constituição. Por coincidência, no mesmo dia da tragédia entrou em vigor o
programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), relançado pelo governo federal sob
novas condições de juros e subsídios, com a meta de contratar 2 milhões de
novas unidades até 2026. Trata-se de medida positiva, mas insuficiente.
São necessárias mais iniciativas coordenadas entre as três esferas de governo para, por exemplo, amparar famílias que deixam suas casas por risco de desabamento, como ocorreu em Pernambuco. Porque, como vimos, o descaso com políticas públicas também mata.
Um novo consenso nacional é possível
Correio Braziliense
A chave é a retomada do crescimento
econômico, que gera renda e trabalho, o que atenua o conflito distributivo de
uma sociedade que é muito desigual.
Qual a principal lição da aprovação da
reforma tributária, a mais importante mudança constitucional, desde a
promulgação da Carta de 1988? A de que é possível construir um novo consenso
nacional, em torno de um programa básico, a partir da relação entre o Executivo
e o Congresso, tendo como eixos o Estado democrático de direito, o ambiente
econômico favorável e a melhoria gradual das condições de vida da população,
principalmente das camadas que estão abaixo da linha de pobreza, cerca de 13,7
milhões de brasileiros.
A chave é a retomada do crescimento
econômico, que gera renda e trabalho, o que atenua o conflito distributivo de
uma sociedade que é muito desigual. Medidas adotadas pelo novo governo, seja no
âmbito das políticas universalistas de saúde e educação, seja no combate à
miséria propriamente dita, como o Bolsa Família e a política de valorização do
salário mínimo, apontam nessa direção. Entretanto, a polarização e a desconfiança
política existente na sociedade ainda são um desafio a ser superado.
Na ordem democrática, a construção de um
consenso nacional também significa respeitar o direito ao dissenso das minorias
e o compromisso com a alternância de poder. São premissas que precisam ser
respeitadas por qualquer governo e que estiveram ameaçadas no 8 de janeiro.
Felizmente, as instituições republicanas demonstraram força suficiente para
conter a escalada golpista e firmeza diante dos arroubos autoritários.
A aprovação das principais medidas
econômicas propostas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pela Câmara,
entre as quais o novo arcabouço fiscal e a reforma tributária, resultou de uma
ampla negociação entre o presidente Lula e o deputado Arthur Lira (PP-AL),
presidente da Casa e líder do chamado Centrão. Nada impede que esse processo se
repita em outras pautas capazes de obter amplo apoio da sociedade.
Lula está para a política como aquele
jogador de futebol que sai driblando os adversários dentro da grande área, até
chegar ao gol. O presidente da República improvisa e faz acordos políticos sem
um programa claro para pactuar com o Congresso. O Executivo tem muito poder,
mas não pode tudo. Precisa negociar com o Congresso. Salvo engano, com a
aprovação da reforma tributária, a tendência do governo é se retrair na agenda
legislativa. Será um erro, é preciso aproveitar o ambiente de diálogo e dar
sequência à construção de um novo consenso nacional.
Três agendas são relevantes nesse aspecto.
A primeira é a da sustentabilidade, ou seja, a busca pelo equilíbrio entre a
disponibilidade dos recursos naturais e a exploração deles por parte da
sociedade. Esse conceito não pode contrapor o agronegócio à preservação das
florestas. O desafio é equilibrar a preservação do meio ambiente e o que ele
pode oferecer em consonância com a qualidade de vida da população. Nossa
agricultura é moderna e sustentável, não deve ser confundida com setores
ruralistas atrasados.
Outra agenda é a da educação de qualidade,
sem a qual não seremos capazes de acompanhar a revolução digital em curso. O nó
górdio a ser desatado é a reforma do ensino médio, que precisa ser tratada sem
contrapor o ensino público ao ensino privado. Dar mais flexibilidade à grade
curricular e promover o ensino interdisciplinar são indispensáveis. Mas não se
pode olvidar a infraestrutura de nossas escolas e da remuneração dos
professores, são premissas da elevação da qualidade do nosso ensino.
Por último, o tema da violência, que marca a nossa história. A defesa dos direitos humanos e a promoção da segurança pública não podem ser ações antagônicas, ainda mais diante de uma realidade na qual o Estado perdeu o monopólio do uso da força, com comunidades inteiras dominadas pelo tráfico de drogas e/ou as milícias. Essa questão está na origem do ambiente de radicalização política que o país tenta superar, é crucial para a construção de um novo ambiente de diálogo e paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário