Ao converter Bolsonaro e associados em réus, o STF expõe as vísceras da tramoia que queria instituir uma ditadura
Vem aí mais um ignóbil aniversário
do golpe militar reverenciado por Jair Bolsonaro e muitos de
seus fiéis. Um regime inaugurado sem cadáveres. “No dia 1° de abril de 1964
também não morreu ninguém. Mas centenas e milhares morreram depois”, lembrou
Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento que converteu em réus
Bolsonaro, cinco militares e dois delegados por tentativa de golpe de Estado.
Pouco antes, a colega de Corte Cármen Lúcia havia citado um livro lançado no
ano passado pela historiadora mineira Heloisa Starling.
A Máquina do Golpe sustenta que a ditadura
instaurada em 1964 resultou de duas décadas de ruminações. “Não se faz golpe
num dia”, afirmou a magistrada.
A acusação pela qual Bolsonaro é réu compõe-se de vários capítulos. O primeiro é de 29 de julho de 2021 e o último, de 8 de janeiro de 2023. Não houve mortes dois anos atrás em Brasília, como não tinha havido em 1964. Já violência… Marcela da Silva Pinno, policial militar de serviço naquele dia, teve o capacete arrebentado por uma barra de ferro, como descreveu em uma CPI do Congresso em 2023. Um trecho de seu depoimento à comissão parlamentar integra um vídeo de cinco minutos exibido no Supremo na quarta-feira 26 com um apanhado de atos violentos praticados por bolsonaristas no 8 de Janeiro. O vídeo foi idealizado pelo juiz Alexandre de Moraes, relator do processo contra o ex-presidente. Para o togado, é importante enfrentar um fenômeno descrito na academia como “viés de positividade”. Este consiste em romantizar memórias. “Isso não é violência?”, perguntou ele, enquanto as imagens eram exibidas.
Bolsonaro reclamou do vídeo, por não constar
dos autos. Segundo Moraes, os códigos Penal e de Processo Penal admitem o uso
de fatos notórios em um julgamento. O capitão poderia tê-lo visto in loco, mas
sua coragem esgotara-se. A Primeira Turma do STF, de cinco magistrados, levou
dois dias para examinar a denúncia contra o capitão e seus comparsas proposta
pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Na terça-feira 25 (três horas
pela manhã, três à tarde) e no dia seguinte (três horas matinais). De surpresa,
o ex-presidente tinha ido ao tribunal na terça, aparente demonstração de
valentia que durou 24 horas. No dia seguinte, preferiu acompanhar a sessão no
aconchego do gabinete de Flávio, o filho senador. No tribunal, sentara-se na
primeira fila da sala. Perto, estavam dois familiares de vítimas da ditadura
que ele enaltece. Hildegard Angel, irmã de Stuart Angel, estudante assassinado
em 1971, e Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, jornalista “suicidado” em
1975.
Nenhum fardado daquele regime assassino
prestou contas à Justiça. Agora, Bolsonaro,
os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e Walter Braga
Netto, o almirante Almir Garnier e o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar
Barbosa Cid serão
julgados, ao lado dos delegados federais Alexandre Ramagem e
Anderson Torres. O octeto integra o que Gonet chama de “núcleo crucial” do
golpe. Os cabeças, na falta de um termo melhor. O procurador-geral apresentou
denúncias contra mais quatro “núcleos”, compostos ao todo por 26 conspiradores,
dos quais 19 das Forças Armadas. Todos os nomeados, assinala Gonet, pertenciam
a uma organização criminosa “com forte influência de setores militares” e
“liderada” pelo ex-presidente. Três núcleos já têm data para saber se virarão
réus: 9 e 30 de abril e 7 de maio.
Nesses julgamentos, o STF decide se a
denúncia da Procuradoria reúne elementos suficientes para dar continuidade ao
processo. No caso do “núcleo crucial”, a Primeira Turma entendeu que sim, por
unanimidade (5 a 0). O ilícito principal estava no vídeo de Moraes. Diz o
artigo 359-M, do Código Penal: é crime “tentar depor, por meio de violência ou
grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Em 8 de janeiro de 2023,
havia faixas a clamar por uma intervenção militar. A invasão do Supremo e do
Congresso caracteriza ainda o crime do artigo 359-L: “Tentar, com emprego de
violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou
restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. “Vamos entrar e tomar o
que é nosso, vamos entrar e tomar o poder”, afirmava um manifestante no vídeo.
Resta a Bolsonaro torcer por uma anistia
aprovada no Congresso
A Procuradoria selou 532 acordos para
encerrar processos contra insurrectos. Estes confessaram que o objetivo era
conseguir a intervenção militar. “Golpe tem povo, mas tem tropa, tem armas e
tem liderança. Um ano, dois anos de investigação, não descobriram quem
porventura seria esse líder”, disse Bolsonaro na porta do Senado, após se
tornar réu, em pronunciamento no qual se declarou perseguido e voltou a atacar
as urnas eletrônicas.
O golpe de 1964 não teve liderança única. O
início da derrubada de João Goulart deu-se com o deslocamento de tropas de
Minas Gerais para o Rio de Janeiro, então capital do País. À frente, o general
Olímpio Mourão Filho, mas o ditador seria o marechal Humberto Castelo Branco.
Outro general Mourão, o senador Hamilton, ex-vice de Bolsonaro, escreveu no ano
passado, no aniversário do regime: “A Nação se salvou de si mesma”. Agora,
ataca (e ameaça) o STF por fazer de Bolsonaro réu: “Se o povo constatar cabalmente
que a lei tem lado e a Carta Magna é ignorada, pois não protege a todos, não
sabemos o que pode acontecer”.
O capitão também não quer ser
responsabilizado pelas destruições patrimoniais superiores a 20 milhões de
reais causados por seus partidários em Brasília. Seu octeto é réu por dano ao
patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado, além de quadrilha,
tentativa de golpe e de abolição do Estado de Direito. “Destruição, eu?”, disse
o capitão, ao ressaltar que estava nos Estados Unidos desde 30 de dezembro de
2022. “Não necessariamente o acusado tenha que ter estado no dia 8 de janeiro,
mas se ele concorreu para que esse evento tivesse ocorrido, ele responde nos
termos da lei. Não adianta a pessoa dizer que não estava no 8 de Janeiro, se
ela participou de uma série de atos que culminaram com esse evento”, afirmou o
juiz Cristiano Zanin no julgamento, ao lembrar o chamado “concurso de pessoas”.
Pelo artigo 29 do Código Penal, “quem, de qualquer modo, concorre para o crime
incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.
Com a abertura de ação penal, o Supremo agora
verificará o que Bolsonaro e os demais réus fizeram para inspirar ou provocar o
8 de Janeiro, se há provas e qual a punição cabível para tais condutas. Haverá
depoimentos, perícias e todas as medidas previstas em um processo sob uma
democracia. Ou seja, os golpistas terão o amparo das leis que pretendiam
abolir. Em Brasília, as apostas são de que o desfecho virá ainda em 2025.
Na denúncia da Procuradoria, a tentativa de
golpe começa em julho de 2021, com uma live de Bolsonaro realizada com o
intuito de minar a confiança popular nas urnas e na Justiça Eleitoral. Depois,
houve uma reunião ministerial em julho de 2022 de teor golpista (o que fazer
para impedir ou reverter a derrota na eleição), o evento com embaixadores
estrangeiros para anunciar ao mundo o “roubo” no pleito, a preparação do
decreto para anular o resultado das urnas e intervir no Tribunal Superior
Eleitoral, os acampamentos na porta de quartéis e a pressão sobre as Forças
Armadas. O capítulo final foi o 8 de janeiro de 2023.
O voto que preparou o caminho da ação penal e
teve endosso unânime no STF foi arrasador até para o único juiz que fez alguns
reparos ao caso e mostrou certa boa vontade com linhas de defesa dos acusados.
Em 1h50, Moraes rebateu um a um os argumentos expostos na véspera pelos
advogados dos réus, um total também de 1h50 de sustentações orais. “O ministro
Alexandre (de Moraes) não deixou pedra sobre pedra”, afirmou Luiz Fux, que
considera necessário a Corte repensar o tamanho das penas aplicadas pelos
crimes do 8 de Janeiro e quer participar do interrogatório do delator Mauro
Cid. O Supremo condenou até agora 497 baderneiros pelo 8 de Janeiro. Do total,
249 (cerca de metade) tiveram penas de até três anos, 146 pegaram de 11 a 14
anos e 102, acima de 16 anos. São 68% de homens e 32% de mulheres. Os idosos,
8%. Os dados foram compilados por Moraes. O bolsonarismo quer convencer a
opinião pública de que “velhinhas de bíblia na mão” e mães de família têm sido
sentenciadas, e com mão pesada. O símbolo da campanha é a cabeleireira Débora
Rodrigues dos Santos. Ela pichou a frase “perdeu, mané” numa estátua em frente
ao STF. Começou a ser julgada e há dois votos para puni-la com 14 anos de
prisão. Fux pediu vistas, o que adiou a conclusão. Neste caso, ele parece propenso
a levantar a discussão de revisão da dosimetria das penas.
Quanto à delação de Cid, a anulação foi
requerida por Bolsonaro e Braga Netto. Os advogados da dupla dizem que o
tenente-coronel mentiu. Cid prestou nove depoimentos na delação. O último, em
novembro de 2024, serviu para explicar por que havia escondido informações. A
omissão quase lhe custou o cancelamento do acordo. A colaboração não o livra da
ação penal, ele também se tornou réu. Caberá à Corte decidir, no processo, o
beneficio que ele merece. O delator pediu pena máxima de dois anos e que sua
família não seja processada. Ao aceitar a denúncia contra Bolsonaro, Cid e
cia., o STF rejeitou por unanimidade a anulação.
Com a vida difícil perante a lei, Bolsonaro
apela à política. Insiste na ideia de o Congresso aprovar anistia a golpista.
Após a manifestação esvaziada no Rio de Janeiro em 16 de março, convocou
apoiadores para outra, em 6 de abril, em São Paulo. Na mesma Avenida Paulista
ocorrerá em 30 de março um ato de propósito oposto: sem anistia. A eventual
vitória de um aliado na eleição presidencial de 2026 poderia ainda lhe garantir
perdão. Foi o que Donald Trump fez em relação os golpistas norte-americanos que
invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021. O capitão sonha ainda com um
bote salva-vidas de Trump. Seu filho deputado, Eduardo, está em autoexílio nos
EUA e promete infernizar a vida de Moraes. Elon Musk, dono do ex-Twitter e
conselheiro de Trump, juntou-se à trincheira. No julgamento que tornou
Bolsonaro réu, escreveu em sua rede social: “Alexandre de Moraes não tem bens
nos EUA?”
“Nós sabemos que as milícias digitais continuam atuando, inclusive durante este julgamento (…), na tentativa de intimidar o Poder Judiciário”, comentou o magistrado. “Não perceberam que se até agora não intimidaram o Poder Judiciário, não vão. Seja com milícias digitais nacionais ou estrangeiras.”
*Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital,
em 02 de abril de 2025.
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