Valor Econômico
Os jovens precisam saber que não há uma única
via da felicidade na vida adulta, sendo que o cardápio das melhores escolhas
reside na convivência coletiva com os diferentes
A minissérie “Adolescência” trata da dor mais
dura que uma família e uma comunidade podem enfrentar: uma criança
assassinando, futilmente, outra. Trata-se não só de uma tragédia presente, mas,
pior, um prenúncio de um futuro distópico, pois se os jovens de hoje são
capazes de fazer essa barbaridade, o que serão como adultos?
Desse episódio nefasto, múltiplas culpas emergem: dos pais, da escola, das redes sociais, dos que propagam um conceito cruel e falso de masculinidade aos meninos, do crescente número de pessoas que alimentam o ódio e a violência como forma de viver. Transformações nesse cenário passam, primeiramente, por grandes mudanças culturais, com a adoção de valores realmente humanistas para a realidade do século XXI. Também dependem de modificações na esfera privada, especialmente da superproteção que grande parte das famílias ocidentais dão aos seus filhos sem que efetivamente estabeleçam vínculos com eles e construam um caminho de orientação para a vida adulta.
É uma agenda enorme e inadiável, se quisermos
que nossos filhos e netos tenham uma vida decente e uma sociedade justa no
futuro. Só que grandes mudanças culturais e nos padrões de educação familiar
são ou muito amplas (no primeiro caso) ou muitos dispersas (no segundo).
Continuam como questões a serem enfrentadas urgentemente, mas é necessário
encontrar igualmente um caminho de respostas que passe por uma decisão coletiva
originada de nosso voto e participação política, gerando ideias que possam ser
debatidas publicamente e depois monitoradas como políticas públicas.
Em outras palavras, mesmo que não seja a
única solução, é fundamental ter políticas públicas que criem as condições para
a juventude se desenvolver de uma maneira mais humanista, tolerante e
responsável pelas consequências de seus atos. “Adolescência” não é sobre um
indivíduo nem acerca de apenas uma comunidade no interior da Inglaterra.
Trata-se da história de uma geração cujos jovens não conseguem ver um futuro
radiante pela frente. Isso porque o seu presente não produz vínculos e visões
de mundo capazes de semear sonhos individuais e coletivos que sejam bons para
todos. Os sentimentos de abandono, raiva e isolamento tornam-se marcantes,
especialmente entre os meninos.
O desafio da reformulação do sentido e
funcionamento das políticas públicas, na verdade, vai além da questão da
juventude. Muitas políticas se alimentam ainda de modelos do século XX. Por
ora, há poucas ações que dialogam com a contemporaneidade do século XXI, o que
significa apontar não só o que devemos fazer para termos um futuro melhor, como
no caso da mudança climática, mas entender de que modo vivem hoje as pessoas, o
que elas pensam e o que conseguem almejar como projetos diante de suas
experiências.
Um bom exemplo para além da juventude é
pensar em políticas no seu estrato populacional inverso: os idosos. Programas
que tocam no crescente envelhecimento da população concentram-se, no mais das
vezes, na garantia de uma renda de aposentadoria e em algumas ações de cuidados
assistenciais. Só que o aumento da expectativa de vida é acompanhado de novas
ambições e projetos dessas pessoas, em termos de lazer, cultura e até
participação no mundo do trabalho. Além disso, um olhar antenado com o século
XXI deveria conceber políticas públicas que nos preparassem, ao longo da vida,
para envelhecer com qualidade, e não apenas para atuar quando os males do tempo
mal digerido chegarem.
Em vários tipos de problemas públicos e/ou em
determinados grupos sociodemográficos acontece a mesma situação: predominam
políticas públicas lastreadas em conceitos do século passado. Construir
intervenções governamentais sobre o mundo infantil e depois sua passagem para a
juventude envolve entender como essas fases da vida têm se estruturado
atualmente. Tomando como base novamente a minissérie, o que ela destaca, sob a
perspectiva infantojuvenil, é o enfraquecimento dos vínculos pessoais, a
relevância desmedida da tecnologia e do mundo virtual, o desencontro cada vez
maior entre meninos e meninas, a falta de espaços que semeiem sonhos
individuais e coletivos que agreguem as pessoas, para não falar do sentimento
de que a desigualdade é naturalizada e pouco questionada.
Nem tudo será resolvido pelas políticas
públicas, mas as destinadas ao público infantojuvenil precisam, urgentemente,
dialogar com o século XXI, ao custo de termos um futuro pior do que o presente.
E elas têm um potencial enorme de influenciar comportamentos e visões de mundo.
Mais do que isso: tal como é possível ter famílias que construam vínculos de
amor e autoridade equilibrados, políticas públicas podem incentivar novos modos
de sociabilidade, além de disseminar conhecimentos e capacidades que libertem
os indivíduos em formação das amarras autoritárias de ideias feitas e de
lideranças sedutoras e opressoras. Os jovens precisam saber, por meio das
políticas públicas que os atingem, que não há uma única via da felicidade na
vida adulta, sendo que o cardápio das melhores escolhas reside na convivência
coletiva com os diferentes - é a alegria de ser gente que gosta de gente e quer
mais gente diferente ao seu lado.
Entre os possíveis caminhos de ação pública e
coletiva, quatro políticas públicas à juventude podem ser destacadas. A
primeira, obviamente, é a da educação. Hipnotizados que estamos pelo necessário
desenvolvimento de conhecimentos básicos dos estudantes, deixamos de ver a
integralidade deles. Penso aqui em seus sentimentos, principalmente o medo de
não serem reconhecidos ou respeitados, pois têm um enorme desejo de
compartilhar caminhos e sonhos com outros. O ensino também não tem olhado para
os talentos múltiplos dos jovens, forçando um modelo muito padronizado. O fato
é que o melhor processo de ensino é aquele que estabelece vínculos marcantes no
convívio diário na escola, tanto entre os pares, como entre professores e
alunos.
“Adolescência” revela como as escolas são
muitas vezes marcadas pelos preconceitos dos professores em relação aos alunos
e vice-versa. Para modificar esse cenário, é preciso transformar a formação e a
forma de atuação dos docentes, que junto com outros profissionais da educação
têm de pensar no processo formativo como algo além das aulas, avaliações e
notas. O exemplo de vida e o prazer em ensinar do professorado são essenciais
para evitarmos uma juventude solitária, violenta e, ao final, presa fácil dos
piores populistas.
A escola não tem capacidade de modificar
sozinha os horizontes dos jovens. Ela precisa estar alicerçada numa estrutura
mais intersetorial de garantia dos direitos da juventude e de acolhimento das
múltiplas dimensões dos problemas juvenis. Esse é um segundo campo de política
pública que precisa urgentemente ser atualizado. A educação tem de estar
entrelaçada, intrinsecamente, com o esporte, com a cultura, com o mundo
digital, pois este último não pode ser um refúgio contra as escolas que se
realiza nos quartos fechados e sombrios de nossas casas. Também é necessário
que a saúde e a assistência social façam parte do processo formativo de nossos
adolescentes, que dependem de um amparo científico para lidar com suas
frustrações e temores.
Não será possível mudar as condições de
desenvolvimento da juventude sem, de algum modo, propor melhorias no mundo
familiar. Mais uma vez voltando à minissérie, ela realça muito bem como uma
família amorosa, não violenta, de pessoas que ao final sempre vão achar que
fizeram menos do que poderiam aos filhos pode, mesmo assim, ter dificuldades
para estabelecer os laços fundamentais com aqueles que mais amam. Muitas coisas
são importantes aqui, porém fico apenas com mais uma - a terceira - política
pública: é preciso repensar a organização da jornada de trabalho. Pais precisam
ter mais tempo com suas crianças, e os governos e empresas deveriam estimular
isso, para termos uma sociedade melhor em todos os âmbitos.
A regulação do uso da tecnologia e das redes
sociais às crianças e jovens certamente deve fechar esse ciclo de políticas
públicas. O estudo de Jonathan Haidt sobre a “Geração Ansiosa” revela o monstro
que estamos criando nos últimos 15 anos. O mundo da internet pode ser sim uma
fonte de desenvolvimento para a juventude, contanto que as comunidades e
governos estipulem os caminhos e os limites desse processo virtual. Os donos
desse mundo das redes sociais, não se enganem, criaram uma máquina para produzir
adultos antidemocráticos e violentos. Talvez tenhamos alguma luz no fim do
túnel se coletivamente, por meio de políticas públicas, começarmos a ensinar
nossos filhos a não seguirem a trilha que está desvirtuando a vida dos adultos
atuais.
Todos estes desafios de políticas aos mais
jovens ganham uma natureza ainda mais complexa no Brasil por conta das
desigualdades que marcam nossa sociedade. Ao terminar de ver a minissérie,
pensei: como seria “Adolescência” em sua versão brasileira? Ou, de outro modo,
o que deveríamos fazer aqui para termos uma juventude melhor? Sem responder a
essa questão, nunca seremos o país do futuro.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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