segunda-feira, 20 de outubro de 2008

FRASE SELECIONADA

"A campanha do Paes é clássica, ortodoxa, convencional. Nesse sentido, a estrutura partidária que compõe a aliança é peça fundamental, assim como o trabalho assistencialista feito por essas estruturas partidárias e seus dirigentes, principalmente na Zona Oeste. A campanha do Gabeira é uma campanha nova, joga para a sociedade, para as personalidades da cidade, e não para os partidos”.

(Luiz Werneck Vianna, em O Globo)

Manifesto por um novo pacto social


Achille Occhetto
(Tradução de Josimar Teixeira)
DEU EM L’UNITÁ
Publicado em 18/10/2008


Um dos órgãos vitais do capitalismo – a finança – foi atacado por um mal terrível, que ameaça se estender a todo o sistema, passar da crise creditícia e bancária à crise da economia real.

Nesta situação, indiscutivelmente arriscada para todas as classes sociais, colocou-se o problema da mais ampla solidariedade possível para socorrer o sistema bancário. Não há dúvida de que a ameaça de colapso dos fundos de pensão, insolvência dos bancos e falência das companhias de seguro atinge a segurança e o futuro de todos os cidadãos. Nesta situação dramática, tornava-se e torna-se necessário um esforço comum para enfrentar a crise. Mas tal esforço não podia e não pode prescindir de uma constatação precisa.

Diante desta crise não somos todos iguais: existem os culpados e existem as vítimas. Por isso, também na ação de socorro deve-se distinguir entre intervenção imediata para reanimar o sistema bancário e apoio ao velho modelo de desenvolvimento.

Nas grandes crises epocais, a diversidade dos interesses e o conflito social não desaparecem; ao contrário, acirram-se e manifestam-se sob formas diferentes daquelas do passado. Por isso, a esquerda não pode se dividir entre solidariedade unanimista e protesto corporativo.

É preciso lançar um manifesto de comportamento que trace em grandes linhas a relação que deve haver entre a esquerda – e, mais em geral, o centro-esquerda – e a crise.

Eis alguns possíveis pontos fundamentais de tal manifesto:

1. Estamos prontos para assumir as nossas responsabilidades nacionais e internacionais para enfrentar a emergência do modo mais rápido e eficaz possível, mas através de uma nítida distinção entre o resgate imediato do sistema bancário, a eliminação das causas da bolha financeira e imobiliária, a reanimação do mercado dos empréstimos interbancários, por um lado, e o resgate dos banqueiros e dos dirigentes políticos que criaram a crise, por outro.

2. Fazemos uma nítida distinção entre resgate do sistema financeiro e relançamento do velho modelo de desenvolvimento. O próprio resgate do sistema financeiro não deve ser funcional à retomada do modelo de desenvolvimento neoliberal. No momento mais agudo da crise, os gurus do neoliberalismo redescobriram o valor da mão pública, desde as formas mais indiretas – como as que vão de amplas injeções de dinheiro estatal à co-participação nos institutos de crédito privados – até às decisões, tomadas no santuário do neoliberismo, de nacionalização no sentido mais próprio do termo. Depois de termos sido obrigados, por uma década, a engolir poeira, arrastados atrás do carro do triunfo neoliberal, assistimos a uma mudança de clima inimaginável há apenas algumas semanas! No entanto, não podemos aceitar que o dinheiro dos cidadãos sirva somente para dar fôlego aos vários responsáveis pela crise.

3. Não se deve perder de vista que corremos o risco de que os próprios investimentos públicos sejam uma forma de privatização pelo avesso, uma vez que se reduzam exclusivamente, como está ocorrendo, a uma espécie de resgate, com o dinheiro dos cidadãos, o que terminaria por reforçar o círculo vicioso da relação recíproca de dependência entre a classe política e os supostos capitães corajosos da especulação financeira. Assim, depois de sangradas as burras do Estado – a serem reforçadas com impostos e cortes do gasto público –, os próprios cidadãos se verão diante do espectro do desemprego e da recessão.

4. A própria intervenção do Estado não é neutra: deve-se pôr em ação um sistema público diferente quanto ao modo de operar e às finalidades produtivas e sociais que devem caracterizá-lo. Não queremos o retorno dos boiardos de Estado! Exigimos, pois, que a co-participação do Estado nos bancos privados seja acompanhada por uma co-participação democrática dos cidadãos, a ser realizada através de formas eficazes de nova democracia econômica. Deve reaparecer, acima do mercado, o tema iniludível das regras. Isso comporta o reforço dos controles públicos e a discussão democrática das orientações de gasto e de investimento. Esta é a primeira condição para realizar uma efetiva passagem da financeirização selvagem destes anos à centralidade do trabalho produtivo.

5. Consideramos que a retomada dos fluxos financeiros e o mercado dos empréstimos bancários – o chamado money market – devem ser postos a serviço de novos modos de consumir e produzir, que tenham como núcleo a economia do sol e do ar no lugar do petróleo, do carvão e do nuclear. Isso comporta uma decidida transferência de recursos financeiros das políticas de rearmamento para as de intervenção para a salvação do planeta.

6. Afirmamos a necessidade de que a co-participação do público, de mero resgate transitório dos velhos poderes fortes, transforme-se num novo pacto social que comporte uma diferente redistribuição de renda e poder entre capital e trabalho, deslocando o centro de gravidade em favor das classes e dos países menos favorecidos.

Trata-se, como se vê, só de algumas diretrizes muito gerais, que, no entanto, a meu ver, poderiam ser propostas como base de um trabalho bem mais denso de discussão e elaboração de concretos projetos alternativos em relação ao fracassado pensamento único global do monetarismo neoliberal, posto de joelhos pela mais grave crise do capitalismo desde 1929.

Achille Occhetto, o último secretário do Partido Comunista Italiano e o primeiro secretário do Partido Democrático de Esquerda (atual Partido Democrático –PD)

O Partido Democrático no tempo dos bárbaros

Alfredo Reichlin –
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil.

Não me escandalizam as correntes. O debate e mesmo o confronto sobre as escolhas políticas, numa fase de grandes novidades como esta, em certa medida são necessários. O que não está claro é como esta discussão tenha como fim a elaboração (esta, sim, absolutamente necessária) de uma cultura política comum capaz de reunir forças diferentes. Uma solda. Não um novo palavrório em politiquês, mas um projeto até mesmo moral, além de político, que interpele a Itália. Então, todos vão compreender que nós é que fazemos oposição, não só Di Pietro [líder da Itália dos Valores]. É o fazemos seja quando dialogamos, seja quando discutimos duramente. Falo, em síntese, de algo que não pode ser reduzido à defesa das velhas identidades do passado, mas refere-se a quem são os italianos de hoje. Trata-se de uma tarefa muito séria e até dramática.

Uma tarefa que não diz respeito às nossas vicissitudes internas, se tivermos a noção dos perigos que corre a democracia italiana e da impossibilidade de lhe dar uma saída positiva, no caso de o PD se desagregar. Não sou assim tão pessimista. Nos encontros de que participo, comecei a sentir esta preocupação e observei o esforço de fazer surgir uma visão nova das coisas, dos novos desafios e dos processos em que estamos imersos. Por isso, de nada adianta nos precipitarmos, sobretudo se fizermos uma caricatura das posições em luta. A tarefa de quem dirige é compreender a parte de verdade que existe nas várias posições. Mas acrescento que as correntes não servem para nada, se não estiver claro de que coisa elas são correntes. Gostei muito de um artigo de Umberto Ranieri, que lembra Scoppola, o qual nos estimulava a “aprofundar o processo de integração das culturas promotoras do PD” [*]. Acrescentaria: aprofundar para reencontrar a Terra, como Anteu, o gigante mitológico que só tocando a terra reencontrava as forças.

Existe uma nova Terra na qual estamos caminhando. Perguntemo-nos sobre o que aconteceu de essencial no mundo que está fora das nossas fronteiras, mas cada vez mais remodela a sociedade italiana: os novos ricos e os novos pobres, os novos medos e as novas necessidades. Se parto daqui, parece-me evidente uma espécie de “desorientação” em relação aos processos que há anos têm inflado as velas da direita e colocaram em crise a esquerda em toda a Europa. Não falo da antiga e mais do que conhecida mudança que consiste no fim (há trinta anos) do chamado compromisso keynesiano ou socialdemocrata. A desorientação de que falo refere-se aos problemas inteiramente novos que alcançaram o conjunto da sociedade européia em conseqüência da virada que acometeu o concreto processo de mundialização.

Esta me parece a novidade que condiciona toda a vida política. Para falar do modo mais aproximativo, trata-se do fato de que o controle da mundialização não está mais somente nas mãos do Ocidente. Um evento secular. É isto que está mudando. Chegaram os “bárbaros”. De resto, não é por acaso que a crise da hegemonia americana, tornada evidente pela catástrofe do Iraque e pelo projeto imperial subjacente a esta agressão, é o tema dominante no debate eleitoral americano. E não é coisa trivial que o dólar (algo mais do que uma moeda) não consiga mais ser o regulador de última instância do destino dos capitais e, portanto, do modo de redistribuição da riqueza do mundo.

Isto mudou. Um imenso fato político, extremamente concreto. Está em discussão a velha distribuição dos poderes, dos recursos, das matérias-primas. E, portanto, estão em discussão obviamente os modos de viver, os modelos de consumo, as idéias que de si fazem as massas européias e até as conquistas sociais (direitos e salários) das massas trabalhadoras européias, conquistas que foram únicas no mundo. São também tais massas que sofrem as conseqüências de um mercado de trabalho mundial cada vez mais povoado pelos novos operários subpagos das fábricas asiáticas. É fútil arremeter só contra os sindicatos.

Como vivemos esta grande mudança? Pensamos que são outros os problemas do PD? Certamente, são também outros, mas aqui não estamos falando de sistemas máximos, mas da vida cotidiana das pessoas: os preços, os serviços coletivos, a despesa das nossas mulheres nos mercados. Mas falamos, ao mesmo tempo, da necessidade de enfrentar a substância dos fatos políticos: por que a direita vence e a esquerda perde e por que isso acontece em quase toda a Europa. E acrescentaria: por que perde mais do que apenas votos. Afinal de contas, o Partido Democrático não os perdeu. Neste caso, mais ainda devemos nos perguntar por que o PD, com aquele resultado importante obtido no seu primeiro teste (um terço dos votos), perde consciência de si, está incerto quanto à sua missão e ao seu futuro. Por que parece até mesmo perdido. Só por culpa dos líderes de corrente? Ou porque não mais vemos bem o terreno no qual pisamos?

Pessoalmente, jamais acreditei nas “terceiras vias” à Tony Blair. Mas me parece clara a razão pela qual toda a formulação do reformismo destes anos perdeu aquele “realismo” e aquela razão de ser que derivava do fato de se pôr como redistribuição de renda e correção da única “forma” imaginável do desenvolvimento. Abriram-se novos cenários, e, a não ser que ocorram catástrofes, esta também será uma etapa do caminho do progresso. Mas, no novo cenário, onde se colocam as forças daquele mundo que provém das várias esquerdas? O que é um campo reformista, se o PD deixa de ter um horizonte mundial? Tenhamos cuidado. O PD não pode deixar de ser parte de um campo mais amplo de forças progressistas, européias e não, se quisermos que a Europa não se transforme numa espécie de fortaleza branca assediada pelos bárbaros. Neste caso, a esquerda não teria futuro e, sobretudo na Itália, tornar-se-ia fortíssima uma inclinação presidencialista de tipo populista e salazarista.

Existem aqueles que vivem evidentemente num mundo diverso, substancialmente pacífico e normal. Ao contrário, parece-me evidente que, para relançar o PD, deve-se avaliar o que dá força a esta nova direita e lhe dá fundamento aos olhos de tantos europeus. Não bastam as análises sociológicas sobre o Norte e sobre o Mezzogiorno. A direita está ocupando um novo espaço político. Explora o medo e as “pequenas pátrias”, mas também tem algumas idéias sobre o que acontece no mundo e que são menos anacrônicas do que as de alguns dos nossos “liberais”, nobremente envelhecidos no culto de um mercado como ideologia. Além disso, a direita se fortalece com a necessidade cada vez mais premente de valores e de significados e, nestes termos, busca construir uma relação forte, de recíproca conveniência, com o projeto de certos cardeais, que consiste em impor à Itália uma espécie de neoguelfismo, isto é, a hegemonia da Igreja como religião. Por que não dizemos nada sobre isso?

Este é teste decisivo do Partido Democrático. Ele foi concebido não só como continuação da Oliveira, mas como força nova capaz de dar resposta à conexão mortal entre crise da democracia dos partidos e enfraquecimento contínuo da unidade nacional. Criou-se assim uma situação na qual ou indicamos uma “grande reforma”, ou as velhas instâncias políticas democráticas (inclusive o Parlamento) se tornarão cada vez menos dignas de crédito como instrumentos, tanto para o governo quanto para a oposição. Por mais quanto tempo resiste a democracia italiana, se continuar este cenário de esgarçamento do tecido social, crise da legalidade, choque entre os grandes poderes, divisões territoriais, enfraquecimento das instituições capazes de garantir direitos e deveres? Cabe avaliar melhor as razões subjacentes às várias hipóteses de reforma eleitoral. Mas, entre estas razões, não esqueceria a necessidade de favorecer o nascimento de partidos verdadeiros, isto é, de instrumentos de participação e politização das massas, e não da sua degeneração em partidos fictícios, “pessoais”, do líder (e não somos inocentes diante de nada disso).


As responsabilidades que pesam hoje sobre os ombros dos dirigentes do Partido Democrático são efetivamente grandes.

Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma.

[*] O historiador Pietro Scoppola, expoente do catolicismo democrático, esteve presente na criação do PD, a partir dos DS (Democratas de Esquerda) e outras forças, especialmente de extração católica, que fizeram parte da coalizão Oliveira. Scoppola morreu em 2007.

A volta da política


Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Para coordenar as sociedades do capitalismo é necessário um Estado cada vez mais capaz e mais democrático

EM MEIO à crise financeira global, o presidente Lula, ao receber em Toledo o prêmio Dom Quixote, declarou que este é o momento da "volta da política e do Estado". Tem razão o presidente.

Depois de 30 anos de irracionalidade neoliberal ou ultraliberal, os homens voltam a se dar conta de que a política é a expressão da liberdade humana, e o Estado, a projeção racional dessa liberdade. Durante 30 anos, uma classe de profissionais das finanças aliou-se a acionistas capitalistas e à classe média conservadora e, empunhando a bandeira do Estado mínimo e da desregulação, alcançou a dominância ideológica sob a liderança de Ronald Reagan nos Estados Unidos e de Margareth Thatcher no Reino Unido.

Inspirada por intelectuais neoliberais que desde os anos 1960 vinham reduzindo a política à lógica do mercado, a nova coalizão política declarou a "guerra do mercado contra o Estado".

Enfraquecia assim o Estado, colocado em pé de igualdade com o mercado, e aproveitava essa brecha para enriquecer enquanto os salários dos trabalhadores permaneciam quase estagnados.

A guerra era irracional porque, em vez de se limitar a eventuais excessos de intervenção do Estado na economia, atacou o próprio Estado. Porque ignorava que o Estado é a instituição maior de cada sociedade -que é o resultado do esforço secular de construção política de um sistema constitucional-legal e de uma administração pública que o garanta. Ignorava que é através do Estado que os homens e as mulheres, no exercício da política, coordenam sua vida social, estabelecendo suas instituições normativas e organizacionais fundamentais, entre as quais a democracia e o mercado.

O mercado apenas se torna realmente significativo como instituição complementar na coordenação da sociedade com a emergência do capitalismo. Por isso, o capitalismo será chamado de economia de mercado. A coordenação econômica de uma sociedade caracterizada por uma crescente divisão do trabalho e, portanto, por uma enorme complexidade só é possível se o Estado contar com a colaboração do mercado nessa tarefa. Por outro lado, durante o transcorrer do século 20, as nações mais desenvolvidas construíram um Estado democrático social.

Foram todas essas verdades elementares que os jovens turcos da classe profissional financeira, quase todos treinados em escolas de economia neoclássicas, não compreenderam, ou não quiseram compreender, ao pretenderem substituir o Estado social e efetivamente regulador pelo mercado. Assim, contraditoriamente, buscavam voltar ao século 19, em que o Estado era mínimo, correspondendo a menos de 10% do PIB. Ao agir assim, a coalizão reacionária por eles conduzida não compreendeu que esse objetivo era inviável em sociedades democráticas modernas. E -o que é mais grave- não compreendeu que, para coordenar as sociedades complexas de hoje -as sociedades do capitalismo do conhecimento-, não bastam mercados cada vez mais eficientes: torna-se necessário um Estado cada vez mais capaz e mais democrático.

Existe uma estreita relação entre o grau de desenvolvimento econômico e de complexidade de uma sociedade e a capacidade que seu Estado deve ter de coordená-la ou regulá-la. É fortalecendo o Estado, e não enfraquecendo-o, que realizamos os grandes objetivos políticos de liberdade, justiça e bem-estar. Ao não compreender essas verdades básicas, o neoliberalismo nos levou à atual crise. Será através da política e do Estado que a superaremos.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Ideologia, item de luxo?


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Nancy Koehn, da Harvard Business School, falando sobre governos que se tornam acionistas de bancos, declara que "ideologia é um item de luxo em tempos de crise" - na linha, aliás, de muita gente mais, incluindo "The Economist", que, em matéria sob o título de "Capitalism at bay", diz na edição desta semana que o resgate global com dinheiro dos contribuintes "é pragmático, não ideológico".

Dada a identificação perversa entre o interesse público e o dos financistas privados diante da catástrofe iminente, é preciso conceder, como fiz aqui mesmo há algumas semanas, o caráter imperioso do socorro público. Daí não se segue, porém, que seja preciso confundir as coisas quanto a ideologia e pragmatismo.

A declaração de Koehn transforma "ideologia" numa espécie de adereço sem importância real: se se trata de idéias sem serventia em momentos de crise, como pensar em adesão efetiva a elas ou compromisso com elas? Já "The Economist" sugere a assimilação de "ideologia" ao apego firme a uma posição pró-Estado ou anti-Estado, e as contorções de que cerca, na matéria citada, seu reconhecimento da necessidade da intervenção estatal redundam em reafirmar os méritos do liberalismo como ideologia. É claro, isso aponta para a possibilidade do apego igualmente firme a uma posição contrária, que conte com a atuação do Estado, e temos aí, naturalmente, o cerne de muitas das mais importantes disputas políticas dos tempos modernos.

A experiência recente, especialmente com a derrocada do socialismo, a globalização e a nova dinâmica econômica, já vem impondo há tempos a um dos lados do enfrentamento envolvido o reconhecimento, de bom ou mau grado, de que sem mercado não há solução: se se preza o valor democrático da autonomia dos cidadãos, não cabe começar por negá-lo na decisiva esfera econômica. Mas não parece menos difícil o aprendizado, do outro lado, de que tampouco cabe abrir mão de um Estado democraticamente sensível ao interesse público, com suas muitas faces, e disposto à ação que não se limite, sob condições de chantagem "pragmática", a fazer abortar as catástrofes.

Os processos eleitorais que se desenvolvem no momento nos Estados Unidos e no Brasil permitem apreciar a relevância de aspectos diversos da questão da ideologia. A campanha presidencial nos Estados Unidos nos mostra, de mais de uma forma, as distorções e os traços negativos que podem marcar a ideologia como compromisso e engajamento - e é notável que isso ocorra no país visto até algum tempo atrás como a terra do pragmatismo e de partidos desprovidos de ideologia. Assim, temos pesquisas em que os Republicanos de McCain surgem apegados à religião e a posturas moralistas, aos temas da força militar e segurança e à disposição do país a enfrentar-se com outros e fazer inimigos, enquanto os apoiadores de Obama favorecem a diplomacia e os direitos civis, querem a separação entre política e religião e vêem a afirmação nacional relacionada à idéia de justiça.

Mas outro aspecto é talvez mais revelador. Se vimos McCain apoiar, como Obama, a ação governamental de resgate financeiro, vimo-lo também, no último debate, denunciar como "estatismo" os gastos sociais propostos por Obama. E essa postura sem dúvida se ajusta a algo que, como salientam A. Alesina e E. Glaeser, singulariza os Estados Unidos e permite há muito falar do "excepcionalismo" americano: sua desigualdade maior do que a dos países europeus e o fato de nunca se ter desenvolvido lá um "welfare state" de dimensões comparáveis às encontradas na Europa. No volume "Fighting Poverty in the U.S. and Europe", de 2004, os autores mostram as idéias associadas com isso: 60% dos estadunidenses acreditam que os pobres são preguiçosos, contra 26% dos europeus com a mesma opinião, enquanto 60% dos europeus vêem os pobres como vítimas de armadilhas sociais, contra apenas 29% dos americanos, que acreditam majoritariamente viver numa sociedade aberta e de grande mobilidade - o que estudos comparativos rigorosos mostram ser simplesmente falso há algum tempo, como o relatado em artigo de 2002 de P. Gottschalk e E. Spolaore ("On the Evaluation of Income Mobility"). Mas Alesina e Glaeser apontam também as causas dessas idéias na heterogeneidade étnica e racial (entre os próprios estados americanos, há forte correlação negativa entre a proporção de negros e a generosidade dos mecanismos de "welfare") e nas instituições políticas (a falha dos menos favorecidos em conquistar a representação proporcional, a atuação restritiva, tudo somado, da Suprema Corte etc.).

A idéia geral a destacar surge com clareza: se a ideologia como ideário a envolver engajamento rígido pode ser crucialmente importante de modo negativo (e conter assimetrias equívocas quanto a aspectos importantes da luta política), torna-se também crucial que haja a possibilidade do esclarecedor embate de idéias que a candidatura de Barack Obama, em particular, representa no caso dos Estados Unidos - e que faz dos componentes intelectuais da ideologia tudo menos o adereço irrelevante que Nancy Koehn assinala. Já no Brasil, temos tido grandes equívocos em torno da adesão ingênua a um modelo idealizado de "política ideológica", que se dispensa de atentar para as limitações das condições do confronto político-partidário no país e seu substrato de deficiências sociais. De qualquer modo, vemos agora, no segundo turno das eleições municipais, além da evidência renovada da inconsistência partidária que os jornais apontam insistentemente em vários casos, que não cabe senão lamentar a indigência intelectual e ideológica talvez melhor ilustrada pelo exemplo belo-horizontino da demagogia eficiente, e provavelmente vitoriosa, de Leonardo Quintão.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1123&portal=