sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

José de Souza Martins* - A cara social da torcida das Copas

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Apesar do desempenho insuficiente da seleção, o reaparecimento das aglomerações de rua foi um bom sinal de que o protagonismo popular de propósitos identitários não foi abatido

Com a disseminação do interesse pelo futebol nas classes populares, tem sido reveladora do que socialmente somos e buscamos a metamorfose das torcidas de rua que se manifesta de modo peculiar, a cada quatro anos, por ocasião da Copa do Mundo.

A observação direta dessas torcidas de Copa mostra a mudança de sua função social na restauração periódica dos fatores de nossa identidade, que se fragmentou e se dispersou. Desde 1964, o país tem sido alcançado por forças de desagregação social e política. Vimos os efeitos destrutivos dessa tendência nos últimos quatro anos, os de um governo empenhado em minar o protagonismo construtivo do povo e o do papel renovador e democrático dos movimentos sociais.

O reaparecimento da torcida de massa das grandes aglomerações de rua, nos últimos dias, os desta Copa, não obstante o desempenho final insuficiente da seleção brasileira, foi um bom sinal de que o protagonismo popular de propósitos identitários não foi abatido.

Um modo de compreender essa peculiaridade da torcida de Copa é o de vê-la e observá-la no rosto. Aí pelo final dos anos 1990, depois de fazer um curso de fotografia promovido pelo Grêmio da Escola Politécnica da USP, participei, com colegas, da fundação de um grupo de fotógrafos amadores ao qual demos o nome de Phora-de-Phoco.

Tentávamos seguir o caminho do Fotocine Clube Bandeirante, que desde a origem organizava excursões fotográficas de natureza pedagógica. A fotografia vernacular pode ser considerada um dos meios de viabilizar a pesquisa do que Antonio Candido chama, em relação à literatura, de necessidades expressionais.

Uma de nossas primeiras decisões foi a de fotografar a multidão diante do telão que a Rede Globo instalara no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. A ideia era fotografar o modo de ver e de ver-se dos torcedores. Para mim era a de documentar a espécie de atitude litúrgica que tinham em face das variações e surpresas no andamento de cada jogo. Foram as ocasiões em que vi a Copa nos olhos dos que a viam, de costas para o telão.

Diferentemente da reportagem visual comum, é possível observar nessas situações um aspecto documental e único do comportamento coletivo e do modo de ser e identificar-se da multidão. O da busca social e simbólica contida no congraçamento, na sociabilidade temporária da diversidade da população na rua.

Nas várias Copas que foram objeto das fotografias do grupo, manifestou-se não só uma concepção de Brasil e de unidade nacional na conduta ritual e simbólica da multidão. Em São Paulo, cujo centro já fora uma referência até na linguagem popular, na definição como “a cidade”, houve uma ressurgência do centro como lugar do encontro e da civilidade.

Algo que a cidade perdera em decorrência do populismo e da urbanização patológica derivada da especulação imobiliária que a fragmentara e privara da monumentalidade agregadora do centro. Enquanto lugar de convergência e realização das possibilidades culturais criadas pela riqueza dispersa. A “cidade” era o centro, o lugar do encontro democrático da pluralidade social na civilidade.

Nas quatro ou cinco Copas que acompanhamos e fotografamos, esse caráter vital e decisivo da cidade e da nacionalidade renasceu nas ruas com força e emoção.

Comecei a me interessar pelo assunto, da relação entre a torcida de Copa e a expressão de suas emoções, alguns anos antes, quando vi no cinema um curto documentário em preto e branco, feito no Rio de Janeiro, que tinha como referência um jovem casal abraçado, em silêncio, o abraço demorado e afetivo da recíproca solidariedade na dor de uma derrota da seleção brasileira, creio que em 1966. Não havia legendas nem fala explicativa. Apenas, como fundo musical, a “Ária na Corda Sol”, de Bach.

Essa liturgia do “Nós” repetiu-se em todas as Copas que acompanhei na rua. A de 1998 foi a mais significativa. Durante todo o período, de quase um mês, não houve um único crime, um único ato de violência, um único roubo no centro. De certo modo, isso aconteceu no Brasil inteiro. Eu fazia e fiz durante muitos anos um monitoramento diário dos casos de linchamento no país. Não houve um único em todo o período. O primeiro ocorreu na Bahia, em seguida à derrota do Brasil pela França.

Em São Paulo, nos gols, houve reiteradas manifestações comunitárias de alegria, moradores de rua, vários acompanhados de seus animais de estimação, gatos e cachorros, vestidos com panos verde e amarelo, abraçados com madames e figurões. Ficou claro que eles, muitos dos quais eram moradores dos baixos dos viadutos do Anhangabaú, como se fossem anfitriões, recebiam e acolhiam os que vinham dos bairros, como se estivessem em sua casa, e estavam, a rua.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

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