Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Apesar do desempenho insuficiente da
seleção, o reaparecimento das aglomerações de rua foi um bom sinal de que o
protagonismo popular de propósitos identitários não foi abatido
Com a disseminação do interesse pelo
futebol nas classes populares, tem sido reveladora do que socialmente somos e
buscamos a metamorfose das torcidas de rua que se manifesta de modo peculiar, a
cada quatro anos, por ocasião da Copa do Mundo.
A observação direta dessas torcidas de Copa mostra a mudança de sua função social na restauração periódica dos fatores de nossa identidade, que se fragmentou e se dispersou. Desde 1964, o país tem sido alcançado por forças de desagregação social e política. Vimos os efeitos destrutivos dessa tendência nos últimos quatro anos, os de um governo empenhado em minar o protagonismo construtivo do povo e o do papel renovador e democrático dos movimentos sociais.
O reaparecimento da torcida de massa das
grandes aglomerações de rua, nos últimos dias, os desta Copa, não obstante o
desempenho final insuficiente da seleção brasileira, foi um bom sinal de que o
protagonismo popular de propósitos identitários não foi abatido.
Um modo de compreender essa peculiaridade
da torcida de Copa é o de vê-la e observá-la no rosto. Aí pelo final dos anos
1990, depois de fazer um curso de fotografia promovido pelo Grêmio da Escola
Politécnica da USP, participei, com colegas, da fundação de um grupo de
fotógrafos amadores ao qual demos o nome de Phora-de-Phoco.
Tentávamos seguir o caminho do Fotocine
Clube Bandeirante, que desde a origem organizava excursões fotográficas de
natureza pedagógica. A fotografia vernacular pode ser considerada um dos meios
de viabilizar a pesquisa do que Antonio Candido chama, em relação à literatura,
de necessidades expressionais.
Uma de nossas primeiras decisões foi a de
fotografar a multidão diante do telão que a Rede Globo instalara no Vale do
Anhangabaú, em São Paulo. A ideia era fotografar o modo de ver e de ver-se dos
torcedores. Para mim era a de documentar a espécie de atitude litúrgica que
tinham em face das variações e surpresas no andamento de cada jogo. Foram as
ocasiões em que vi a Copa nos olhos dos que a viam, de costas para o telão.
Diferentemente da reportagem visual comum,
é possível observar nessas situações um aspecto documental e único do
comportamento coletivo e do modo de ser e identificar-se da multidão. O da
busca social e simbólica contida no congraçamento, na sociabilidade temporária
da diversidade da população na rua.
Nas várias Copas que foram objeto das
fotografias do grupo, manifestou-se não só uma concepção de Brasil e de unidade
nacional na conduta ritual e simbólica da multidão. Em São Paulo, cujo centro
já fora uma referência até na linguagem popular, na definição como “a cidade”,
houve uma ressurgência do centro como lugar do encontro e da civilidade.
Algo que a cidade perdera em decorrência do
populismo e da urbanização patológica derivada da especulação imobiliária que a
fragmentara e privara da monumentalidade agregadora do centro. Enquanto lugar
de convergência e realização das possibilidades culturais criadas pela riqueza
dispersa. A “cidade” era o centro, o lugar do encontro democrático da
pluralidade social na civilidade.
Nas quatro ou cinco Copas que acompanhamos
e fotografamos, esse caráter vital e decisivo da cidade e da nacionalidade
renasceu nas ruas com força e emoção.
Comecei a me interessar pelo assunto, da
relação entre a torcida de Copa e a expressão de suas emoções, alguns anos
antes, quando vi no cinema um curto documentário em preto e branco, feito no
Rio de Janeiro, que tinha como referência um jovem casal abraçado, em silêncio,
o abraço demorado e afetivo da recíproca solidariedade na dor de uma derrota da
seleção brasileira, creio que em 1966. Não havia legendas nem fala explicativa.
Apenas, como fundo musical, a “Ária na Corda Sol”, de Bach.
Essa liturgia do “Nós” repetiu-se em todas
as Copas que acompanhei na rua. A de 1998 foi a mais significativa. Durante
todo o período, de quase um mês, não houve um único crime, um único ato de
violência, um único roubo no centro. De certo modo, isso aconteceu no Brasil
inteiro. Eu fazia e fiz durante muitos anos um monitoramento diário dos casos
de linchamento no país. Não houve um único em todo o período. O primeiro
ocorreu na Bahia, em seguida à derrota do Brasil pela França.
Em São Paulo, nos gols, houve reiteradas
manifestações comunitárias de alegria, moradores de rua, vários acompanhados de
seus animais de estimação, gatos e cachorros, vestidos com panos verde e
amarelo, abraçados com madames e figurões. Ficou claro que eles, muitos dos
quais eram moradores dos baixos dos viadutos do Anhangabaú, como se fossem
anfitriões, recebiam e acolhiam os que vinham dos bairros, como se estivessem
em sua casa, e estavam, a rua.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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