O
Globo
Pesquisadores aconselham pais, educadores,
autoridades a se dar conta de que a radicalização já é realidade cotidiana
A série “Adolescência” trouxe um grande
número de debates envolvendo as redes sociais. Um dos temas novos para o
público brasileiro foi a menção aos incels (celibatários
involuntários), subcultura muito atuante na internet que já produziu algumas
tragédias.
Fui despertado para o tema pela leitura de
dois livros: “Hate in the homeland: the new global far right”, de Cynthia
Miller-Idriss, e “Meme wars” (guerras de memes, em tradução livre), de Joan
Donovan, Emily Dreyfuss e Brian Friedberg. Pensei em escrever sobre isso quando
as redes da primeira-dama foram invadidas por um jovem que, pelo que li, se
declarou influenciado pelos incels. Mas, para evitar o clima de polarização,
resolvi esperar nova oportunidade.
Os incels em alguns casos se consideram rejeitados pelas mulheres e culpam o feminismo. Na série, o personagem diz que 80% das mulheres se interessam por apenas 20% dos homens. Se limitassem seu discurso apenas a um lamento pela solidão involuntária, seriam inofensivos. Mas, nos Estados Unidos, já moveram grandes campanhas nas redes sociais visando a determinadas mulheres, com o objetivo de tornar sua vida infernal.
Mais que isso: uma simples pesquisa revela
que os incels inspiraram vários crimes horrendos no mundo. Em 2014,
Elliot Rodger, na Califórnia, matou seis pessoas e feriu 14 antes de se
suicidar. Deixou um manifesto culpando as mulheres, por rejeitá-lo, e os homens
bem-sucedidos na vida amorosa. Alek Minassian, em Toronto, no Canadá, atropelou e
matou dez pessoas com uma van e declarou num post no Facebook que
era um “levante incel”. Isso foi em 2018. Jake Davison matou cinco
pessoas, inclusive a própria mãe, no Reino Unido em
2021. Ele consumia conteúdo misógino.
Os pesquisadores observam que não existe
apenas uma subcultura levando à radicalização on-line. Aconselham pais,
educadores, autoridades a se dar conta de que isso já é realidade cotidiana.
Nem todas as interpretações que surgiram após a série “Adolescência” podem
estar corretas. Alguns culpam as feministas por não educarem os homens. Mas a
verdade é que o incels fazem carga contra as feministas, ignorando
que nem todas as grandes transformações sociais nesse campo foram produzidas
por elas. E, afinal, elas não são maioria entre as mulheres. Na verdade, os
incels as transformam num bode expiatório de uma transformação muito mais ampla
e difícil de conter.
Outro argumento muito comum é que as
famílias perderam seus filhos para as redes sociais. Já ouvi o mesmo argumento
com relação à comunicação de massa, televisão e também com relação à música,
principalmente o rock. De fato, a influência das famílias vem decrescendo, mas
ainda há grande possibilidade de intervenção, desde que elas se abram para
estudar esses movimentos. O livro “Meme wars” apresenta um ângulo interessante
porque se dispõe a falar das muitas e ainda não reveladas batalhas que ameaçam
a democracia.
No Brasil existem pesquisas e gente
trabalhando na observação dessas subculturas na internet. Há até registro de um
caso de ataque no Espírito Santo,
em 2022. Todos os que trabalham com o tema se comovem com a dor dos pais
surpreendidos pelo comportamento dos filhos e sofrem muito se questionando
sobre a própria responsabilidade. No caso registrado no Espírito Santo, um
garoto de 16 anos matou quatro pessoas, influenciado por uma rede neonazista.
A pesquisadora Michele Prado já alertou
autoridades sobre esse grupo, indicando autores brasileiros que contribuem com
a rede, sobretudo uma publicação voltada para radicalização e recrutamento. A
série “Adolescência” é apenas um ponto de partida para um universo subterrâneo
imenso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário