sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Angela Alonso* - Lula e a rua

Folha de S. Paulo

Emoção é a mesma da primeira posse, em 2003, mas presidente eleito foi de líder a alvo

A emoção é a mesma da primeira vitória. A recepção da rua é outra. Em 2003, Lula chegou "sem medo de ser feliz". Levava sob o braço, como agora, a agenda redistributiva. Cercou-se de vermelho, que coloriu o vestido da primeira-dama e a sua gravata. Foi a cor do dia. Movimentos socialistas a carregavam nas bandeiras, quando lotaram Brasília. Saudaram o presidente como um dos seus.

O eleito prometeu, então, incorporar no governo os "anseios de mudança que se expressaram nas ruas". Incorporou também ativistas, convertidos em tocadores de políticas, autarquias, ministérios. Ocupados em governar, os movimentos desertaram o protesto.

Vácuo se preenche. Feixe de movimentos novos à esquerda cresceu no espaço aberto. O MTST é dessa leva, se destacou exigindo moradia nas cidades. Mas apareceram muitos outros, sobretudo em torno de costumes e de identidades, étnicas e de gênero. A rua deixou de ser homogênea. Ficou convidativa até para quem antes não costumava usá-la. Sendo o governo de esquerda, suas políticas (como a "bolsa esmola") e seus subsídios desconfortaram a direita e movimentos foram se organizando também por esse lado.

Tudo miudinho. Esquerda e direita falharam em arrastar multidões para pressionar Lula 1 e 2. Prosperidade econômica internacional e sucesso das políticas sociais ajudaram no sossego. Recuos (como no aborto) também. E havia o apoio de partes da sociedade fincada no agronegócio, nas igrejas neopentecostais e no empresariado desenvolvimentista. Juntando tudo, Lula saiu como entrou, nos braços do povo: 87% o aprovavam.

Mas perdeu a unanimidade da rua. Foi de líder a alvo. Movimentos à esquerda avaliaram sua administração como um reformismo acanhado. Já os que surgiram à direita enxergaram apenas corrupção, econômica ou de costumes. Coube à sucessora encarar essas oposições, simultâneas e em alto volume, em 2013.

Nos anos da presidenta, o campo à direita desabrochou. Hábil em se autonomear patriota, chamou a si os símbolos nacionais contra o vermelho "petralha". E assim ajuntou milhões em 2015. Arrebatou da esquerda o epíteto de senhora da rua.

Não era uma "nova direita" monolítica. Eram movimentos bem diferentes entre si, que convergiam em bem pouco. Verde-amarelismo e antipetismo bastaram para uni-los no impeachment e na eleição de Bolsonaro.

Mas o que a oposição uniu, o governo separou. Uns nem entraram ou logo saltaram do barco governamental. Outros permaneceram fiéis até o naufrágio nas urnas. Restam agora poucos no bote dos inconformados. São o suprassumo autoritário.

Nem todos os remanescentes podem ser chamados de "movimentos sociais". O termo designa manifestações políticas no espaço público, com concentrações, marchas e assemelhados, que apresentam reivindicações a um governo. Podem ser de esquerda como de direita. Movimentos são típicos da democracia porque dependem do Estado de Direito para existir.

As ações de rua desta semana em Brasília escapam da definição porque são antidemocráticas. Não se trata de movimento social, mas de guerrilha: reação política coletiva e violenta de manifestantes que não reconhecem a legitimidade do governo.

Guerrilhas não reivindicam, atacam. Lula chegará ao Planalto entre vivas de movimentos à esquerda e de vaias dos à direita. A diferença desta terceira posse é que estará também sob a mira de guerrilheiros.

*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente análise da autora! Parabéns a ela e ao blog que nos apresenta sua análise!