O Globo
Equivale a penhora de salário ou aposentadoria. É nítida violação da lei
O FGTS, poupança compulsória do
trabalhador, assim como as multas legais por demissão injustificada, já não
pertence ao trabalhador. A nova modalidade do crédito consignado anunciada pelo
governo confere aos bancos a prerrogativa de invadir tais direitos trabalhistas
para a quitação de dívidas.
— O banco vai pegar o valor do saldo do
consignado. Se está devendo R$ 20 mil, é R$ 20 mil. Se deve R$ 30 mil, é R$ 30
mil — explicou Francisco Macena, secretário executivo do Ministério do
Trabalho.
No plano econômico, a iniciativa
inscreve-se na lógica enunciada por Dilma
Rousseff:
— Gasto é vida.
A máxima sintetiza uma visão tosca do
crescimento econômico que o torna dependente da expansão dos gastos públicos e
privados.
Desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico sustentável. Seu motor é a elevação da produtividade, que gera riqueza e espraia renda pelas empresas e trabalhadores, pelos produtores e consumidores.
As políticas econômicas do lulismo não
impulsionam as reformas microeconômicas necessárias ao aumento da eficiência da
economia. No lugar disso, apostam na adição de moeda ao sistema econômico por
meio da elevação dos gastos públicos diretos e dos investimentos das estatais,
da ampliação de programas sociais e da disseminação do crédito ao consumidor. A
economia engorda, mas não adquire força ou resistência.
“Gasto é vida” significa crescimento de
curto prazo, baseado em dívida pública e privada, que gera aumento conjuntural
de consumo e acende a fogueira inflacionária. O consignado nasceu com a Lei
10.820, de 2003, no primeiro mandato de Lula,
que permitiu descontar em folha até 35% do salário mensal ou da aposentadoria
do trabalhador. Destinava-se a aquecer o consumo pessoal — e resultou em
superendividamento, especialmente entre servidores públicos e aposentados.
As novas regras do consignado rompem o
último tabu que protegia os direitos trabalhistas. Só um presidente oriundo do
movimento dos trabalhadores e amparado pelos aparatos das centrais sindicais
poderia ir tão longe na via da financeirização dos meios de subsistência dos
assalariados. No terreno político, o consignado deve ser classificado como
imoral.
Na esfera jurídica, precisa ser rotulado
como ilegal. O Código de Processo Civil, no seu artigo 833, veta a penhora de
salário, excetuando apenas o caso de quantias superiores a 50 salários mínimos
destinadas a cobrir débitos de prestação alimentícia. Um acórdão de 2021 do TJ
do Distrito Federal explica:
— A impenhorabilidade tem por objetivo a
dignidade da pessoa e a proteção legal do salário, motivo pelo qual não é
devida a penhora, mesmo em suposto baixo percentual do salário do devedor.
O consignado equivale a penhora de salário
ou aposentadoria. É nítida violação da lei, que passou a ser permitida por uma
criativa “reinterpretação” do STJ de
2023.
Segundo as regras do consignado, o tomador
perde o direito básico de renegociar sua dívida — ou de renegá-la, no caso de
fracasso da renegociação. A instituição financeira emprestadora torna-se
detentora do poder absoluto de recolher os saldos devedores diretamente nas
folhas de pagamento. Tal poder viola um princípio geral do direito contratual
moderno: o equilíbrio econômico.
Os princípios contratuais tradicionais,
baseados nas ideias liberais, não se preocupavam com as desigualdades entre as
partes. O contrato era, para todos os efeitos, lei. Isso mudou. O direito
moderno privilegia a isonomia de condições dos contratantes na defesa de seus
interesses. As regras do consignado pertencem ao pensamento jurídico do século
XIX. Sobrevivem no presente graças a um pacto informal pela ilegalidade firmado
entre o poder político e os juízes.
— É a troca de crédito caro por crédito
barato — festejou um economista, referindo-se à MP 1.292, que regulamenta o
novo consignado para celetistas.
O tal “crédito barato” oscila entre 40% e 80% anuais. É empréstimo quase sem risco que rende cerca de quatro vezes a taxa Selic. Os bancos devem uma rodada nacional de aplausos ao governo Lula e aos desembargadores que escolheram driblar a lei.
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