segunda-feira, 31 de março de 2025

Novo consignado é ilegal, imoral e engorda – Demetrio Magnolli

O Globo

Equivale a penhora de salário ou aposentadoria. É nítida violação da lei

O FGTS, poupança compulsória do trabalhador, assim como as multas legais por demissão injustificada, já não pertence ao trabalhador. A nova modalidade do crédito consignado anunciada pelo governo confere aos bancos a prerrogativa de invadir tais direitos trabalhistas para a quitação de dívidas.

— O banco vai pegar o valor do saldo do consignado. Se está devendo R$ 20 mil, é R$ 20 mil. Se deve R$ 30 mil, é R$ 30 mil — explicou Francisco Macena, secretário executivo do Ministério do Trabalho.

No plano econômico, a iniciativa inscreve-se na lógica enunciada por Dilma Rousseff:

— Gasto é vida.

A máxima sintetiza uma visão tosca do crescimento econômico que o torna dependente da expansão dos gastos públicos e privados.

Desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico sustentável. Seu motor é a elevação da produtividade, que gera riqueza e espraia renda pelas empresas e trabalhadores, pelos produtores e consumidores.

As políticas econômicas do lulismo não impulsionam as reformas microeconômicas necessárias ao aumento da eficiência da economia. No lugar disso, apostam na adição de moeda ao sistema econômico por meio da elevação dos gastos públicos diretos e dos investimentos das estatais, da ampliação de programas sociais e da disseminação do crédito ao consumidor. A economia engorda, mas não adquire força ou resistência.

“Gasto é vida” significa crescimento de curto prazo, baseado em dívida pública e privada, que gera aumento conjuntural de consumo e acende a fogueira inflacionária. O consignado nasceu com a Lei 10.820, de 2003, no primeiro mandato de Lula, que permitiu descontar em folha até 35% do salário mensal ou da aposentadoria do trabalhador. Destinava-se a aquecer o consumo pessoal — e resultou em superendividamento, especialmente entre servidores públicos e aposentados.

As novas regras do consignado rompem o último tabu que protegia os direitos trabalhistas. Só um presidente oriundo do movimento dos trabalhadores e amparado pelos aparatos das centrais sindicais poderia ir tão longe na via da financeirização dos meios de subsistência dos assalariados. No terreno político, o consignado deve ser classificado como imoral.

Na esfera jurídica, precisa ser rotulado como ilegal. O Código de Processo Civil, no seu artigo 833, veta a penhora de salário, excetuando apenas o caso de quantias superiores a 50 salários mínimos destinadas a cobrir débitos de prestação alimentícia. Um acórdão de 2021 do TJ do Distrito Federal explica:

— A impenhorabilidade tem por objetivo a dignidade da pessoa e a proteção legal do salário, motivo pelo qual não é devida a penhora, mesmo em suposto baixo percentual do salário do devedor.

O consignado equivale a penhora de salário ou aposentadoria. É nítida violação da lei, que passou a ser permitida por uma criativa “reinterpretação” do STJ de 2023.

Segundo as regras do consignado, o tomador perde o direito básico de renegociar sua dívida — ou de renegá-la, no caso de fracasso da renegociação. A instituição financeira emprestadora torna-se detentora do poder absoluto de recolher os saldos devedores diretamente nas folhas de pagamento. Tal poder viola um princípio geral do direito contratual moderno: o equilíbrio econômico.

Os princípios contratuais tradicionais, baseados nas ideias liberais, não se preocupavam com as desigualdades entre as partes. O contrato era, para todos os efeitos, lei. Isso mudou. O direito moderno privilegia a isonomia de condições dos contratantes na defesa de seus interesses. As regras do consignado pertencem ao pensamento jurídico do século XIX. Sobrevivem no presente graças a um pacto informal pela ilegalidade firmado entre o poder político e os juízes.

— É a troca de crédito caro por crédito barato — festejou um economista, referindo-se à MP 1.292, que regulamenta o novo consignado para celetistas.

O tal “crédito barato” oscila entre 40% e 80% anuais. É empréstimo quase sem risco que rende cerca de quatro vezes a taxa Selic. Os bancos devem uma rodada nacional de aplausos ao governo Lula e aos desembargadores que escolheram driblar a lei.

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