- Valor Econômico
A pandemia justificou o coronavoucher. Qualquer outro programa deve ser implementado de forma cuidadosa
Os efeitos econômicos da pandemia, com impactos dramáticos sobre o emprego e a renda do trabalhador, aceleraram no país o debate sobre a necessidade de um programa de renda básica universal. Tal programa serviria não só como um colchão contra choques agregados adversos como o atual, mas seria também uma forma de compensar os efeitos negativos de longo prazo sobre a renda e o emprego da automação e de diversos avanços tecnológicos, que estariam diminuindo o poder de barganha do trabalhador e levando à precariedade de muitas atividades laborais.
Em sua forma tradicional, a renda básica universal seria uma transferência monetária pelo governo a cada indivíduo na sociedade, independentemente de sua renda ou posição no mercado de trabalho, com o objetivo de garantir uma renda mínima que pudesse tirar as pessoas da pobreza.
A proposta não é nova e já foi implementada em alguns lugares de forma experimental.
Vários economistas, de diferentes correntes econômicas e políticas, já endossaram tal proposta. Os economistas James Meade (Nobel de 1977) e James Tobin (Nobel de 1981), mais associados com as ideias keynesianas de intervenção governamental, apoiaram alguma forma de renda mínima. Milton Friedman, prêmio Nobel de economia de 1976 e símbolo do liberalismo moderno, defendeu o imposto de renda negativo, que é uma forma de renda básica universal.
Milton Friedman era a favor de uma proposta que juntasse todos os programas de assistência social (a exemplo de seguro desemprego e moradia pública) em apenas um programa de transferência de renda. Segundo Friedman, tal programa simplificaria a burocracia existente e seria uma forma de libertar os trabalhadores da dependência do Estado, que muitas vezes define onde os trabalhadores devem morar (habitação popular) ou comer (voucher para comprar certos alimentos).
Além disso, as condicionalidades dos outros programas de assistência social podem gerar problemas de risco moral, incentivando os indivíduos a permanecerem em algum estado de vulnerabilidade (desemprego, informalidade ou invalidez) para continuarem recebendo benefícios. Assim, acabando com as condicionalidades, a renda básica universal corrigiria esses problemas de incentivos.
As principais críticas à renda básica universal são os elevados custos fiscais associados ao programa e ao fato de vários beneficiários receberem sem realmente ter a necessidade de um auxílio financeiro. Seria mais eficiente e barato transferir recursos para as pessoas realmente necessitadas, para quem o valor marginal do benefício é elevado.
No Brasil, a ideia também não é recente. Eduardo Suplicy, ex-senador pelo PT, fez forte campanha nos anos 90 a favor do governo brasileiro prover uma renda mínima para cada cidadão. Em 2004, o Congresso Nacional instituiu o Fundo Brasil de Cidadania para viabilizar a “renda básica de cidadania”, através da Lei Federal nº 10.835, de janeiro de 2004, mas que nunca foi efetivamente implementada.
Recentemente, Rozane Siqueira e José Ricardo Nogueira, professores de economia da UFPE, colocaram luz no debate simulando uma proposta clássica de renda básica universal para o Brasil. Nas simulações dos economistas, haveria uma garantia de renda básica de R$ 406 a preços de 2017 - definida pela linha de pobreza do Banco Mundial - aos cidadãos brasileiros. Nessa proposta, todos os outros benefícios existentes (assistenciais e previdenciários) seriam reduzidos pelo valor da renda básica. Para financiar o custo líquido adicional de 11,5% do PIB, os economistas propuseram um imposto de renda linear, sem deduções, de 35,7% sobre todos os rendimentos, inclusive previdenciário.
Os impactos econômicos dessa proposta seriam significativos. A pobreza, pelo desenho da política, seria erradicada e a desigualdade cairia substancialmente. Os 50% mais pobres da população teriam a renda familiar aumentada e os maiores ganhos relativos se concentrariam na base da distribuição de renda. Para os 10% mais ricos, haveria uma redução média na renda domiciliar per capita de 16%. Há vários efeitos de incentivos e preços, que não foram contabilizados nas simulações dos autores, mas claramente os efeitos na redução da pobreza e desigualdade seriam elevadíssimos.
Guardo simpatia pela simplicidade da proposta, eliminando as deduções de imposto de renda, que em geral beneficiam os mais ricos, e unificando diversos benefícios. A alíquota única do imposto de renda a princípio teria que ser mais elevada, já que os autores, pelo que entendi, assumem a possibilidade de tributação da renda dos trabalhadores informais.
A proposta é interessante pois coloca em perspectiva o custo fiscal da política - 11,5% do PIB, ao invés de assumir que o governo pode financiar gastos indefinidamente apenas com a emissão de novos títulos da dívida pública. Isso é importante para ancorar as expectativas, já que a carga tributária brasileira é de cerca de 35% do PIB e nossa dívida pública está próxima de 100% do PIB. Números bastante elevados quando comparados com países com nível de desenvolvimento semelhante ao nosso e com infraestrutura pública ainda a ser construída.
Portanto, não parece claro que um programa de renda básica universal seja superior a um programa mais forte de transferência de renda focada nos mais pobres, transferindo recursos para onde o benefício marginal do dinheiro é mais elevado. A eliminação das deduções do imposto de renda deveria acontecer independentemente do fortalecimento de qualquer programa de transferência de renda.
A renda básica universal tem suas origens no livro “Utopia” de Thomas More. Dentro de uma perspectiva utópica, sou contra a transferência de renda, sem contrapartida social direta. Sou a favor de adotar política de renda mínima para todas as pessoas abaixo da linha de pobreza, com base no trabalho em serviços comunitários e obras públicas. Além da contrapartida do investimento no capital humano com vistas a alcançar melhorias sociais.
Os custos de oportunidade dos recursos públicos devem sempre ser levados em conta na implementação de qualquer política. A pandemia justificou a transferência emergencial do coronavoucher. Qualquer outro programa permanente de assistência social deve ser implementado de forma cuidadosa e avaliando as diversas alternativas.
*Tiago Cavalcanti é professor de Economia na Universidade de Cambridge e na FGV-SP.
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