O Senado entre a sensatez e a provocação
O Globo
Se merecem elogios por barrar reformas sem
sentido, senadores têm de parar de retaliar o STF
O Senado tem desempenhado papel fundamental
ao cumprir sua missão constitucional de Casa revisora dos projetos recebidos da
Câmara. Nos últimos dias, a atitude cautelosa dos senadores impediu o avanço de
propostas que, se aprovadas na forma como queriam os deputados, teriam
representado retrocesso para o país.
A primeira foi a minirreforma eleitoral, que alivia controles e punições a políticos e partidos. A segunda foi a PEC da Anistia, que, além de livrar as legendas e candidatos de punições da Justiça por irregularidades nas últimas eleições, cria um sistema de cotas nas vagas do Legislativo sem paralelo nas maiores democracias. A resistência do Senado em aprová-la a tempo de vigorar no pleito municipal do ano que vem levou a própria Câmara a adiar a votação na semana passada.
“São temas muito complexos para votar num
tempo muito exíguo”, afirmou à GloboNews o senador Marcelo
Castro (MDB-PI), relator da minirreforma. “Vamos com mais
calma, mais devagar, com mais sensatez.” Castro sugeriu que, em vez de uma
minirreforma, o Congresso aprove uma reforma mais duradoura, com base nos
projetos de código eleitoral e de lei sobre inelegibilidades que já tramitam no
Senado. É uma sugestão que, para empregar o termo do próprio Castro, traduz
sensatez.
Sensatez também foi o que levou os senadores
a rejeitar um projeto aprovado em 2021 na Câmara recriando as coligações em
eleições proporcionais, expediente que favorece a pulverização de partidos no
Legislativo e felizmente foi banido pela minirreforma eleitoral de 2017. E a
mesma sensatez retarda a tramitação no Senado da esdrúxula proposta aprovada na
Câmara criminalizando a “discriminação” de políticos.
Paradoxalmente, parcela dos senadores revela
não partilhar dessa sensatez. Numa votação de apenas 42 segundos, a Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou um projeto que impõe limite a
decisões individuais de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Proposta semelhante já havia fracassado em 2019 — e o próprio STF já adotou
normas mais rígidas para as decisões monocráticas.
A iniciativa foi uma reação a julgamentos do
Supremo que têm desagradado a parlamentares conservadores, em temas como o
marco temporal para demarcação de terras indígenas, a descriminalização do
porte de drogas ou as regras para o aborto legal.
No caso do marco temporal, declarado inconstitucional pelo STF, o Senado
aprovou projeto contrariando a tese no próprio dia da votação. Tramita também
na Casa uma proposta descabida impondo mandatos a ministros do Supremo.
Todas essas são provocações sem sentido, que
em nada contribuem para a harmonia entre os Poderes. Cada Poder tem seu papel,
e a Constituição garante independência para que seja exercido na plenitude. Mas
é fundamental que os atores saibam agir com comedimento, sobretudo num momento
em que o país precisa recobrar a normalidade institucional. O Senado tem
demonstrado conhecer seus deveres ao rever projetos da Câmara que exigem maior
reflexão e mais debate entre os parlamentares. É essa sensatez que deveria
prevalecer.
Seca histórica no Amazonas é alerta sobre
riscos das mudanças climáticas
O Globo
Governo fez promessas para garantir energia,
transporte e sustento à região, mas só ação emergencial não basta
Os efeitos da estiagem no Amazonas são graves
e exigem ação de várias esferas de governo. O estado vive uma das piores secas
da série histórica iniciada em 1980, segundo dados do Centro de Monitoramento e
Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Provocada pelo fenômeno climático El
Niño e agravada pelo aquecimento global, a falta de chuvas tem baixado o nível
de rios, dificultado o escoamento de produtos de comunidades ribeirinhas,
prejudicado a operação de hidrelétricas e aumentado a preocupação com
queimadas.
Até esta quinta-feira, 40 municípios haviam
decretado situação de emergência, outros 19 de alerta. Juntas, as 59 cidades
reúnem 200 mil habitantes. Em alguns rios, embarcações maiores não conseguem
passar com segurança. Na quarta-feira, a linha de transmissão que conecta as
usinas de Jirau e Santo Antônio ao Sudeste, a maior do país, foi desligada
devido à baixa vazão.
Diante do quadro, foi acertada a ida a Manaus
da comitiva de ministros chefiada pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin. Ele
fez promessas para garantir o transporte fluvial, afirmou que a dragagem do Rio
Solimões deverá estar pronta em 45 dias e prometeu que até dezembro também
serão dragados 12 quilômetros do Rio Madeira.
Para mitigar os danos à população, o governo
federal antecipou o pagamento do Bolsa Família e do Benefício de Prestação
Continuada (BPC). Pagará também auxílio a pescadores impedidos de exercer suas
atividades, o seguro-defeso. Agricultores que perderem a produção receberão
seguro integral. Para o município de Beruri, onde a erosão provocou o
desabamento de 40 casas e três mortes, Alckmin disse estar disponível auxílio
de R$ 400 por pessoa para pagar abrigo temporário. Por fim, determinou o envio
de brigadistas para combater queimadas, garantiu terem sido tomadas medidas
preventivas e que não faltará energia.
Na esfera estadual, o governo antecipou o
pagamento de auxílio. Embora ainda não tenha estimativa do impacto na produção
agrícola, encaminhou projeto de lei para anistiar produtores rurais com
prejuízo. Num plano de longo prazo, pretende mapear até o ano que vem a
população suscetível a impactos do aquecimento global.
Uma iniciativa mais controversa é o pleito
para finalizar o asfaltamento da BR-319 entre Manaus e Porto Velho, sob o
pretexto de a estrada oferecer alternativa de escoamento em momentos de seca.
Por um lado, a abertura de estradas na Amazônia costuma vir acompanhada de
desmatamento no entorno. Por outro, certas áreas não podem ficar isoladas. A
questão merece ser analisada com cuidado, não sob o calor da estiagem.
Medidas emergenciais são necessárias e
bem-vindas para socorrer os atingidos. Mas não bastam para lidar com um
problema que só se agravará. A seca no Amazonas é mais um alerta, entre tantos,
sobre os riscos e desafios trazidos pelas mudanças
climáticas. Eles exigem do governo ação estrutural de longo prazo,
do contrário estaremos sempre tentando empurrar morro acima a pedra que rolará
morro abaixo.
Maior bacia hidrográfica do mundo vive seca
devastadora
Valor Econômico
Será básico estabelecer planos de adaptação
para as populações ribeirinhas, com aporte dos países ricos e da venda de
créditos de carbono
A ação do aquecimento das águas do Oceano
Atlântico Norte, acima do Equador, e a do aquecimento das águas do Oceano
Pacífico na faixa do Equador (que ainda vai se manifestar em sua plenitude)
provocaram uma seca devastadora em partes da maior bacia hidrográfica do mundo.
O Estado do Amazonas está praticamente em estado de emergência, decretado em 55
dos seus 62 municípios. A estação chuvosa, que deveria iniciar-se em meados de
outubro, deve atrasar. Há previsões de que a próxima temporada de chuvas não
será generosa, e os efeitos da seca podem se prolongar ao longo de 2024. Com
boa parte dos rios Negro, Juruá, Purus e Solimões com baixa profundidade, o
transporte de mercadorias, alimentos e pessoas, basicamente aquático, entrou em
colapso. A seca atinge 8 Estados.
Os efeitos sociais e econômicos imediatos são
graves e, pior, são indícios de um futuro climático hostil. A ausência de
precipitações vem acompanhada do flagelo das queimadas. Embora o desmatamento
seja menor do que no mesmo período de 2022 (janeiro a agosto), o Amazonas foi o
segundo estado que mais destruiu a floresta em agosto - as áreas mais críticas
ficam na parte sul, na região afetada pela grave seca, e perto de Manaus.
Segundo especialistas, a revolta do clima no
Amazonas não pode ser debitada toda na conta do periódico El Niño. Mas sua ação
passada, em conjunto com o aquecimento das águas do Atlântico Norte, produziu
em 2009-2010 a maior escassez de chuvas desde 1903, a mais grave do século
passado. A contabilidade dos recordes é desimportante em relação à gravidade da
situação dos rios amazônicos, que estão se transformando em poeira. A
profundidade do rio Negro caiu a 15,4 metros, já se aproximando do menor nível
histórico, de 13,6 metros. O rio Solimões perto de Tabatinga reduziu-se a um
espelho de água de apenas 11 centímetros do leito (Folha de S. Paulo, 4 de
outubro).
As chuvas foram menores do que deveriam ser
no período seco, entre julho e setembro. A previsão é de que continuarão mais
fracas mesmo no período das águas, atrasando a recuperação do volume dos rios.
Em dezembro e janeiro, o El Niño agirá como sempre, reduzindo as precipitações
no Norte e ampliando-as no Sul, que passou a conviver com inusitados ciclones
extratropicais, que causaram destruição e mais de 50 mortes no Rio Grande do
Sul em 4 de setembro.
A instabilidade das precipitações se instalou
no bioma amazônico e tende a se agravar com o aquecimento global. Segundo o
Imazon, 2022 foi o primeiro em doze anos em que a Amazônia teve superfície de
água maior do que a média histórica. Entre 1985 e 2022 (38 anos) a região teve
23 anos com superfície de água abaixo da média. As variações não são
gradativas, mas abruptas. 2022 foi um ano de muita chuva, sucedido agora por
uma enorme seca e precedido em 2021 por outra. O início de 2023 foi marcado por
muita chuva no Norte e seca no Sul - agora a situação inverteu-se
dramaticamente. A severa escassez de água atual afeta a vida de 500 mil pessoas,
além da matar em massa botos cor de rosa e peixes. As mudanças climáticas, que
ampliam a destruição ambiental de um desmatamento sem fim, podem levar a
estragos irreparáveis. Os efeitos do El Niño têm se mostrado mais impactantes
com o passar do tempo. Agora, ele intensificará as consequências do aquecimento
do Atlântico Norte, levando a estiagem do Sudoeste para o Centro e Norte
amazônicos. Ambos devem provocar secas drásticas no semiárido nordestino,
segundo Gilvan Sampaio, coordenador de Ciências da Terra do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (O Globo, 2 de outubro).
O governo agiu tempestivamente para amparar a
população diante das privações da seca, que colocou restrições a 90% das 116
embarcações que navegam pelos rios para transporte de pessoas, mercadorias e
assistência médica e social. Mesmo com a paralisação da hidrelétrica Santo
Antônio, no rio Madeira, o abastecimento de energia foi mantido sem problemas
na região. Efeitos mais demorados serão sentidos no escoamento das safras de
grãos do Centro-Oeste pelos portos do Norte ou rotas de mercadorias saídas da
Zona Franca de Manaus.
A situação climática tende a piorar, e não
melhorar. A longo prazo, o que fará a diferença é eliminar as fragilidades da
floresta e restaurar ao máximo seu vigor. O desmatamento por si só contribui
muito para alterar o regime de chuvas. É preciso pôr um fim ao garimpo ilegal,
cujos danos são múltiplos. Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, da
Fiocruz, do Greenpeace e do WWF Brasil constatou nos peixes coletados no Acre,
no Amapá, no Amazonas, no Pará, em Roraima e em Rondônia nível de mercúrio
21,3% superior ao permitido. Os peixes mais consumidos pela população
apresentaram nível de contaminação até 14 vezes maiores que os de outras
espécies.
Será básico estabelecer planos de adaptação
para as populações ribeirinhas, com aporte dos países ricos e da venda de
créditos de carbono, que precisa deslanchar. As mudanças que o clima ameaça
trazer são profundas e reduzirão a zero o espaço para improvisação.
Congresso x Supremo
Folha de S. Paulo
Em reação ao STF, parlamentares lançam
propostas perigosas para instituições
É movida a casuísmo e espírito revanchista
a ofensiva
deflagrada por líderes do Congresso contra o Supremo Tribunal Federal,
na qual já surgiram três propostas diferentes de mudança constitucional.
Pode-se perfeitamente debater se o
STF tem abusado do ativismo e invadido a seara legislativa —o
que é mais claro em alguns casos e menos em outros que incomodam deputados e
senadores. Entretanto é descabido votar matérias de tal impacto institucional
sob o ânimo da briga política.
A única PEC desse pacote a avançar até aqui,
com aprovação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, é,
felizmente, a menos problemática. O texto busca disciplinar os pedidos de vista
e restringir as decisões monocráticas dos ministros da corte, o que são
preocupações corretas e endossadas por esta Folha.
De todo modo, a proposta merece análise mais
serena e aprofundada quanto a seu alcance, ainda mais porque o próprio Supremo
já tomou providências recentes para atingir os mesmos objetivos.
Mais perigosa é a ideia de instituir mandatos
limitados para os ministros, encampada por ninguém menos que o presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). É verdade que a norma é adotada, por exemplo,
em países desenvolvidos da Europa. Por aqui, entretanto, é necessário
considerar os custos e riscos da mudança.
A vitaliciedade (até a aposentadoria
compulsória aos 75 anos) se mostrou importante para reforçar a independência
dos magistrados ante os governantes que os indicaram aos cargos —e, no entender
deste jornal, deve ser mantida.
O objetivo de limitar a permanência de um
ministro pode ser atingido com a elevação da idade mínima exigida, hoje de 35
anos.
Mas é com uma PEC apresentada na Câmara dos
Deputados que as represálias chegam ao despautério. O diploma, que parece ter
sido concebido apenas para fomentar uma crise institucional, pretende permitir
que o Congresso possa anular decisões do Supremo.
No mérito, a proposta é escandalosa. Embora
seu propósito declarado seja o de reequilibrar os Poderes, seu resultado seria
o esvaziamento da corte constitucional.
O Judiciário, recorde-se, é um Poder sem voto
que muitas vezes precisa desempenhar um papel contramajoritário. Sua força
reside em ter a última palavra no que diz respeito à interpretação da lei, o
que seria perdido com a emenda.
Cabe ao STF deliberar sobre temas
controversos, aí incluídos o marco temporal das terras indígenas, a
descriminalização da maconha e o aborto —e a corte deve fazê-lo sem pretender
legislar. De sua parte, o Congresso não pode querer intimidar magistrados.
Urge esclarecer
Folha de S. Paulo
Gastos com obras emergenciais sem licitação
na cidade de SP exigem transparência
Decreto de 2019, publicado pelo então
prefeito Bruno Covas (PSDB),
determina que obras públicas emergenciais executadas pelas subprefeituras
paulistanas devem observar "a urgência de atendimento de situação que
possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras,
serviços, equipamentos e outros bens".
Exigem-se ainda informações detalhadas e, se
for o caso, "laudo técnico" e "relatório de risco" para
classificar a sua dimensão.
Tamanho zelo não é à toa. Se por um lado
situações de caráter emergencial demandam pronta resposta do poder público,
desburocratizando ao máximo suas ações, por outro estão dispensadas de
licitação —processo que visa garantir saudável concorrência, promovendo assim
menor dispêndio de verbas da administração municipal.
Reportagem da Folha mostrou que o
conceito de "emergencial", porém, pode ter adquirido contornos
elásticos sob Ricardo Nunes (MDB),
prefeito desde maio de 2021.
Auditoria do Tribunal de
Contas do Município apontou que de 2020 —último ano completo de
Covas à frente da capital— para 2022 houve um aumento de 1.313% em obras
executadas de forma emergencial.
Se considerados os últimos cinco anos, a explosão de
despesas é da ordem de 10.400%. Trata-se de um salto de R$ 20
milhões, em 2017, para R$ 2,1 bilhões no ano passado.
O processo no tribunal ainda está em
andamento: analisa-se agora os argumentos enviados pela administração. A
auditoria, contudo, concluiu que em muitos casos há falta de planejamento, o
que classifica de "emergência fabricada".
O relatório expõe ainda que parte das obras
poderia ter sido licitada e que há concentração de empresas que receberam os
valores.
Pré-candidato
à reeleição em 2024, o prefeito negou qualquer irregularidade ou
superfaturamento e atrelou o documento do TCM a interesses eleitorais. Todos os
procedimentos prévios legais foram adotados, declarou a prefeitura em nota, e a
alta dos gastos ocorre por "situações de risco em encostas e margens de
córregos, principalmente em regiões periféricas".
De fato, a maioria dos trabalhos foi
executada em regiões afastadas, com histórico de carências.
Entretanto, dado que não há notícia de que a cidade tenha sido acometida por recente calamidade, cabe à gestão, em nome da transparência e do bom uso do erário, trazer à luz as razões para cada uma das inadiáveis intervenções.
Excesso de excepcionalidades
O Estado de S. Paulo
O STF criou um problema insolúvel com os processos
do 8 de Janeiro. Excepcionalíssimos, os julgamentos de ações penais no plenário
virtual devem ter a contrapartida de punição mais leve
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu os
primeiros três julgamentos realizados em plenário virtual de processos penais
relativos ao 8 de Janeiro. Os réus foram condenados a penas que variam de 12 a
17 anos, pelos crimes de associação criminosa, abolição violenta do Estado
Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e
deterioração de patrimônio tombado. Um dos réus, preso quando estava na Praça
dos Três Poderes, foi absolvido dos crimes de dano qualificado e deterioração
de patrimônio tombado.
Esses julgamentos expõem um dilema sério. Por
um lado, o STF não tem condições de realizar o julgamento presencial de todos
esses casos. São mais de mil ações penais. Por outro, é inegável que o
julgamento virtual produz graves limitações ao direito de defesa. Nessa
situação, a atuação da defesa fica resumida à apresentação de um vídeo do
advogado, que ninguém sequer sabe se será visto pelos ministros julgadores. A
Lei 8.038/90 e o Regimento Interno do STF garantem o direito à sustentação
oral.
Cabe advertir, em primeiro lugar, que foi o
próprio Supremo o autor desse problema, ao entender que competia à Corte
realizar esses julgamentos. Foi uma interpretação um tanto criativa, tendo em
vista que nenhum dos acusados tem foro especial por prerrogativa de função. De
toda forma, a maioria do colegiado acolheu o entendimento do relator, ministro
Alexandre de Moraes. Há, nessa história, um aprendizado. O respeito à
competência de cada jurisdição contribui também para o bom funcionamento
operacional da Justiça.
Um segundo ponto refere-se à
proporcionalidade e à razoabilidade, princípios frequentemente usados pelo STF
na fundamentação de suas decisões. Se, por impossibilidade material, os casos
terão de ser julgados no plenário virtual – num cenário de evidente redução de
direitos dos acusados –, a contrapartida necessária é reduzir drasticamente o
patamar das penas. Não cabe condenar uma pessoa a 17 anos de prisão, sendo 15
anos e meio em regime fechado, em um julgamento no qual o defensor foi impedido
de apresentar suas alegações – e que, por já ter começado no STF, terá
reduzidas oportunidades de recurso e de revisão.
Precisamente porque os ataques ao regime
democrático foram gravíssimos é que a resposta da Justiça deve ser exemplar –
exemplar no cumprimento da lei e no respeito aos direitos próprios de um regime
democrático. Se há um impedimento material para que os processos se realizem da
maneira prevista na lei, isso deve se refletir em uma aplicação mais comedida
da pena. Não se pede impunidade. Mas deve haver um mínimo de ponderação – é por
isso que há juízes, e não máquinas, aplicando a lei no caso concreto.
Não adianta impor penas duríssimas sobre quem
invadiu as sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro, se os articuladores do golpe
ficarem impunes. Há uma grande disfuncionalidade nessa suposta proteção da
democracia. Punir mais de mil pessoas a penas duríssimas – de mais de uma
década na prisão – não tornará o regime democrático mais seguro, se os
mandantes do golpe não forem punidos.
Há outro aspecto que merece atenção. Como
alertou o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, esse deslocamento do
julgamento das ações do 8 de Janeiro para o plenário virtual, por ter sido
realizado pela mais alta Corte do País, gera apreensão também “pela potencial
disseminação da orientação a outros tribunais que possuam competência
originária para processar ações penais”. Isso seria um grande retrocesso. Só
faltava que a defesa da democracia, que demanda tanto tempo e energia do STF,
levasse a um decaimento na compreensão e no respeito a direitos fundamentais.
Cabe à Corte, portanto, explicitar que o procedimento foi absolutamente
excepcional, não devendo ser replicado em outras jurisdições.
É preciso punir quem atuou contra a lei e
contra as instituições democráticas. Mas essa tarefa, no Estado Democrático de
Direito, exige mais do que mão pesada. Requer discernimento e razoabilidade. Só
assim a punição cumprirá sua função.
A seca no Norte e a inação oficial
O Estado de S. Paulo
Falta de estratégia das autoridades federais e estaduais para preparar o Norte e o Nordeste para uma grave seca que foi prevista por centros de pesquisa expõe brasileiros ao improviso
A seca mais grave nas Regiões Norte e
Nordeste do Brasil desde 1980 é mais um clássico caso de tragédia anunciada. A
inação do poder público na prevenção de seus potenciais efeitos sobre a
população, seguida pela correria improvisada para mitigar a catástrofe,
demonstra o quanto os governos federal e estaduais ainda ignoram os alertas de
entidades de referência no estudo dos fenômenos climáticos. A ausência de
planejamento prévio há muito não é admissível no País, tão sujeito como os
demais aos impactos conhecidos do aquecimento do planeta.
A possível transferência emergencial de
comunidades agrícolas pelo Estado do Amazonas reflete a gravidade da seca deste
ano, motivada pelo El Niño e acentuada pelo desmatamento florestal. Retirar
centenas de milhares de pessoas de seus locais de origem, muitas das quais com ascendentes
ali assentados há décadas, nada tem de banal. Se adotado, será um plano extremo
para preservar vidas, mas claramente tardio ante o impacto de uma estiagem
prevista.
A seca no Norte e no Nordeste está associada
primariamente ao El Niño, fenômeno natural provocado pelo aquecimento da
superfície do Oceano Pacífico e em nada motivado pela atividade humana. Não há
como detê-lo – apenas como prevenir e/ou remediar seus prováveis efeitos. Em
2010, foi essa a razão da mais grave seca registrada até então no Norte, com
repercussões semelhantes às de agora. Os alertas sobre a ferocidade do El Niño
neste ano vinham desde 2022. Em junho passado, o Escritório Nacional de
Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) anunciou que
seus efeitos já eram perceptíveis.
Naquele mês, um boletim de quatro
instituições federais, entre as quais o Centro Nacional de Gerenciamento de
Riscos e Desastres (Cenad), informou sobre a elevação de 3 graus centígrados na
superfície do Pacífico Equatorial e as consequências esperadas, como as chuvas
intensas no Rio Grande do Sul de setembro. Já se registravam nos meses
anteriores os níveis alarmantes de baixa precipitação no Norte e no Nordeste.
O quadro no Norte do País é altamente
desafiador. Mais de 500 mil brasileiros estão diretamente afetados, e 60
municípios declararam situação de emergência. As vazões de 42 rios, entre os
quais o Solimões e o Negro, recuaram a patamares alarmantes em uma região onde
eles são sinônimos de vida, acesso a direitos elementares, trabalho, renda e
transporte. Várzeas exploradas pela agricultura familiar viraram terra
improdutiva, a pesca tornou-se inviável e o ar seco eleva os riscos de
incêndios florestais. O linhão de transmissão das usinas no Rio Madeira, de
Rondônia a São Paulo, foi desligado, assim como os geradores da Hidrelétrica de
Santo Antônio (RO). Térmicas serão ativadas para evitar o colapso no
fornecimento de energia na região, como anunciou o vice-presidente Geraldo
Alckmin em visita no último dia 4 a Manaus.
É preciso notar que o governo federal só se
fez presente na região para tratar da estiagem quando a tragédia já estava
consumada, com vítimas como os moradores de uma vila de Beruri que desmoronou
pela falta de vazão no Rio Purus. Alckmin apresentou um pacote para aliviar a
carestia da população atingida, o envio de médicos e brigadistas e a dragagem
do Solimões para garantir o escoamento de produtos da Zona Franca de Manaus.
“Não faltarão recursos”, prometeu. Bom saber, mas isso é nada mais do que a
obrigação.
A remoção às pressas de famílias de
agricultores pelo governo do Amazonas, se levada a cabo, será o mais triste
resultado da omissão diante de uma grave seca fartamente prevista. Contrasta
com a intenção da diplomacia brasileira de apresentar proposta sobre o planejamento
da transferência de populações sujeitas aos efeitos do aquecimento global na
COP 28 de Dubai, neste fim de ano. O Brasil precisa investir em sua capacidade
de antecipar tragédias naturais e climáticas e de atuar preventivamente. Os
brasileiros têm direito a esse esforço e não merecem mais atrasos.
O pastelão republicano
O Estado de S. Paulo
A queda do presidente da Câmara dos Estados
Unidos mostra política refém de radicais e vigaristas
Pela primeira vez na história dos EUA, um
presidente da Câmara foi deposto. É um sinal da disfuncionalidade da atual
política americana que o republicano Kevin McCarthy tenha caído pela iniciativa
de uma minoria de seu partido em conjunto com a minoria democrata, justamente
por cumprir o seu trabalho.
No sábado, McCarthy pôs os interesses do seu
país em primeiro lugar, recusando a tentativa de oito republicanos radicais de
barrar a aprovação do Orçamento e fechando um acordo com os democratas para
evitar a paralisação do governo. Quando, em retaliação, os mesmos jacobinos
republicanos ativaram a moção para depô-lo, ele pôs os interesses de seu
partido em primeiro lugar, recusando um acordo com os democratas que salvaria
seu cargo à custa da perda de prerrogativas que o Partido Republicano tem
enquanto majoritário na Casa.
Em contraste, o republicano Matt Gaetz, o
líder do motim, se apresenta como um vingador do povo contra o establishment,
um feroz oponente dos democratas e o defensor dos princípios republicanos. Mas,
supostamente em nome desses princípios, se aliou aos democratas para implodir a
gestão de seu partido. Em nome do conservadorismo, está aumentando seu capital
eleitoral progressista. Em nome do povo, está sabotando o funcionamento do
Estado.
A crise foi contratada já na eleição de
McCarthy, no início do ano. Após inéditas 15 votações, quando os mesmos
radicais republicanos se recusavam a lhe conferir os votos para garantir a
gestão republicana na Casa pela qual os eleitores optaram, McCarthy, para
romper o impasse, concedeu-lhes o direito de ativar a moção que agora
utilizaram para depô-lo. Isso deixou a Câmara à mercê de um grupo pautado pelo
extremismo e a autopromoção: 4% dos deputados republicanos foram suficientes
para derrubar a vontade de 96%, sem nenhuma alternativa, nenhum plano, muito
menos uma proposta de políticas públicas.
A busca por um novo presidente deve ser longa
e caótica. O candidato republicano não terá alternativa senão fazer concessões
ou à minoria republicana radical ou aos democratas. Em todo caso, a maioria
republicana e os moderados do partido perderão poder.
Enquanto isso, os democratas se regozijam: é
a prova de que eles precisam para mostrar ao eleitorado que os republicanos são
bons para reclamar, mas não para governar. É, porém, uma vitória de Pirro. O
acordo que garantiu o financiamento do governo vale só até novembro, quando o
Orçamento precisa ser aprovado. Mas, sem um novo presidente, a Câmara está
paralisada.
Os radicais de ambos os lados podem estar contentes – os republicanos, por imporem suas vontades ao restante do partido; os democratas, por assistirem à entropia republicana –, mas ninguém mais está. Os moderados de um lado e outro não podem avançar os trabalhos legislativos, e o governo se aproxima de uma paralisação. O apoio à Ucrânia, um consenso bipartidário, também é prejudicado pela impossibilidade de enviar recursos. Quem paga mais caro é o povo. A retaliação virá nas urnas, e para os republicanos ela promete ser mais amarga.
A covid-19 continua matando
Correio Braziliense
A baixa procura vacinal, decorrente do
relaxamento da população, graças aos índices descendentes de hospitalizações e
de mortes, é um dos principais motivos para os óbitos recentes
Já se passaram mais de três anos desde o
início da pandemia da covid-19. E as pessoas continuam morrendo em decorrência
da doença. A verdade é que todos estamos exauridos. Exauridos dos sintomas, das
máscaras, das sequelas, das fake news, de informações verdadeiras e até mesmo
das vacinas. Passado o pior momento — em outubro de 2021, o Brasil atingiu a
marca de 600 mil óbitos —, as pessoas entraram em um período de letargia, como
se o coronavírus e suas variantes (que não são poucas) tivessem desaparecido. Atualmente,
são mais de 705 mil mortes por covid.
Recentemente, no 16º Fórum da Longevidade,
promovido pelo Bradesco Seguros, em São Paulo, a médica, professora, escritora
e pesquisadora brasileira Margareth Maria Pretti Dalcomo mostrou a preocupação
dos especialistas quanto ao que chamou de “uma nova onda” da covid-19, a qual
ela atribui às variantes e subvariantes da ômicron. E mais: fez um alerta. No
Brasil, continuam morrendo cerca de 70 a 80 pessoas por coronavírus a cada
semana, sendo a maioria das vítimas os não vacinados.
Entre os principais motivos para que essas mortes continuem sendo registradas
está a baixa procura vacinal, decorrente do relaxamento da população, graças
aos índices descendentes de hospitalizações e de mortes, se comparados aos números
contabilizados no auge da pandemia. Além disso, ela atribui os recentes óbitos
ao fato de a pandemia ser dada como controlada pela própria Organização Mundial
de Saúde (OMS) e pelos governos, o que fez com que a população perdesse o medo
e abandonasse a vacina.
Outro fator foi o discurso antivacina, muito
forte e enraizado nos primeiros anos da covid no Brasil, o que impactou também
outras coberturas vacinais até então vitoriosas, como as do sarampo, doença que
havia sido eliminada por aqui em 2016 (o Brasil ganhou até um prêmio concedido
pela OMS naquele ano), mas voltou com força em 2019.
Mas, e a partir de agora? Como fazer com que
a população se atente para a importância de se vacinar, de levar crianças e
idosos aos postos? Vale lembrar que os idosos que se vacinaram tomaram a quinta
dose há mais de um ano, e, portanto, não estão mais protegidos contra as cepas
mais recentes. E as crianças não completaram o calendário vacinal, ainda que
tenham apresentado um sistema imunológico mais resistente. Dalcomo cita,
inclusive, o Nordeste, região em que ela afirma que grande parte das famílias
não leva suas crianças aos postos.
Por outro lado, não há como não falar do
Programa Nacional de Imunizações (PNI), que este ano completa meio século,
tendo sido criado no governo militar e atravessado a democracia, além de todos
os outros governos, sem nenhum abalo. Ele deu certo, não há dúvidas. Prova
disso é que o Brasil tem atualmente 38 mil salas de imunização espalhadas pelo
país, com um calendário vacinal elogiado em todo o mundo.
Enfim, Margareth Dalcomo, profissional da saúde preocupada com o futuro do
país, apresenta algumas ações. “Não nos cansemos das campanhas, mas desta vez
regionais, devido à enorme diversidade do país. Não nos cansemos de informar e
alertar a população.” Parece mesmo que só assim voltaremos a ter números
decentes de imunizações.
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