Eu & / Valor Econômico
A democracia brasileira tem sido, desde que se começou a nela falar, uma democracia provisória e temporária
O melhor que já tivemos em democracia foi o
que eufemisticamente se tem chamado de “intervalo democrático”. Foi o nome que
se deu ao período entre o fim da ditadura de Getúlio Vargas e o início da
ditadura militar de 1º de abril de 1964. E ainda não se deu ao período iniciado
em 1985 e lentamente terminado em 2018.
Nessas demarcações, pode-se facilmente
constatar que os “intervalos democráticos” são os de pausa para conspiração
contra a democracia pelos insaciáveis de poder. A democracia brasileira tem
sido, desde que se começou a nela falar, uma democracia provisória e
temporária. A ideia de “intervalo democrático” já sugere uma antidemocrática
consciência da democracia como realidade passageira.
Embora já perdida pelo candidato da extrema direita, a eleição de 2022 foi marcada pela conspiração antecipada de civis e de militares, supostos salvadores da pátria. Em quem a salvará deles?
Uma concepção que pressupõe um país condenado
a ser para os donos do poder. Quando nele não estão consideram-se usurpados em
seus supostos “direitos de nascimento”. Para eles, acolitados pela massa de
bajuladores e feitores, gente que não sabe o que é o país, senão quando veste
abusivamente trajes interiores verde e amarelo. O Brasil será viável apenas
como país de joelhos. Os seres adjetivos de capatazes do eito e feitores de
senzala. Os chamados lambe-botas. É incrível que essa condição tenha gerado um
vocabulário e uma ironização conceitual pela qual os de cima dizem o que pensam
dos de baixo que não sabem que de baixo são. Os agitadores de 8 de janeiro.
Felizmente, temos também o que Dom Hélder
Câmara chamava de minorias proféticas, a dos capazes de discernir no meio da
escuridão a luz da manhã. Os que têm a competência da consciência verdadeira
para ver e compreender os fatores e causas do nosso atraso político e
reconhecer nas tentações do poder a iniquidade da dominação antidemocrática
herdada de tantos passados que persistem de vários modos. Os que concebem a
pátria na perspectiva do bem comum e da esperança.
Nos países que a tem, a democracia
literalmente nasce de um conjunto de fatores e circunstâncias historicamente
reunidos e convergentes para torná-la não um acaso, como aqui, mas uma
necessidade social e política. Nunca os tivemos. Os nossos “intervalos
democráticos” literalmente emergem entre nós não quando estamos de acordo
quanto à democracia, mas em desacordo quanto à mera forma da ditadura. Coisa de
sociedade de cabeça para baixo.
O término da ditadura do Estado Novo, em
1945, se deu pelo golpe de Estado com a participação dos mesmos militares que
derrubaram o governo em 1930 e que derrubariam o governo constitucional em
1964.
O fim da ditadura de 1964 deveu-se mais aos
progressivos desacordos entre os filhos do golpe de Estado do que aos civis
numerosos e lúcidos que se congregaram para apoiar uma estratégia de superação
do regime autoritário. Lembremo-nos de que a demanda de “diretas já” não teve a
acolhida do Congresso Nacional. A eleição de Tancredo se deu no marco das
eleições indiretas, um instrumento de reprodução legal da ditadura para
negá-la.
O golpismo brasileiro se baseia na anômala
consciência política de que a democracia é um defeito, um regime de usurpadores
apoiados em dispositivos constitucionais e legais que estabelecem e regulam as
eleições livres e a alternância de poder. A anomalia política é constitutiva da
democracia brasileira.
A bela Constituição de 1988 contém o
antidemocrático artigo 142, que coloca o povo brasileiro sob suspeita, por isso
carente de tutela militar, uma armadilha antidemocrática para supostamente
garantir a democracia. Como se fôssemos um país de menores de idade.
O Brasil é um país, aliás, que faz leis não
raro com a autorização nelas embutida para seu próprio descumprimento. É o que
torna “justa” nossa legalidade entre parênteses.
Quando começou a ficar evidente para os
defensores do obscurantismo como instrumento de poder que Bolsonaro não tinha
discernimento nem competência para governar um país da importância do Brasil,
os inconformados começaram a buscar um candidato de “centro” que viabilizasse a
continuidade do projeto antidemocrático de 2018. Parte dela aceitou fazer uma
aliança política tácita com a candidatura de Lula, ainda que arruinado pela
satanização e a conspiração que o levaram à prisão. Que, vai se vendo aos
poucos, articulavam à margem da lei a viabilidade eleitoral de quem acabaria
eleito em 2018. Gente que continua ativa.
Em boa parte isso decorre da força econômica
de um capitalismo corroído por técnicas anticapitalistas de acumulação de
capital em face do qual o empresariado, inseguro, titubeia.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do
instante” (Editora Unesp, 2021).
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