O Estado de S. Paulo
A sensação é de que a institucionalidade fiscal vai se desfazendo na sanha por recursos, cujos contendores não entendem nenhum limite
Na Constituição de 1988, relatei o Capítulo
das Finanças Públicas, na condição de deputado constituinte. Toda confusão
fiscal da década de 1980 impunha que o redesenho do aparato de planejamento,
orçamento e gasto fosse solidamente delineado pela nova Carta.
Na verdade, a ditadura militar nos brindou com uma bagunça institucionalizada nas contas governamentais. Com a arrogância própria daqueles que se julgam portadores das verdades econômicas assim como os golpistas de 2022, o governo militar executava um orçamento alternativo, muitas vezes maior do que as minguadas dotações do Orçamento que era votado no Congresso. Este último não poderia alterar nada, devendo aprovar a proposta do Executivo tal como enviada ao Legislativo.
A bagunça fiscal era tamanha, que os recursos
públicos ficavam espalhados por milhares de contas dos órgãos, ministérios,
secretarias e departamentos da União. No caso do crédito agrícola, muito
expressivo e importante, as decisões estavam totalmente fora do Legislativo e
mesmo do Executivo, porque o Banco do Brasil dominava o processo.
A principal inovação foi a construção de um
sistema integrado de planejamento e orçamento com interação entre o Executivo e
o Legislativo. O Plano Plurianual (PPA), proposto e votado no primeiro ano de
governo, daria as linhas gerais da ação do Estado. Ano a ano, a Lei de
Diretrizes Orçamentárias seria votada no primeiro semestre para dar diretrizes
da formatação da proposta orçamentária anual, em alinhamento com o PPA. A Lei
de Responsabilidade Fiscal veio dar mais solidez ao arcabouço constitucional.
A Constituição veio, também, consolidar os
avanços do governo Sarney, como a criação da Secretaria do Tesouro Nacional.
Mas foi muito além, restabelecendo as condições de participação do Congresso na
decisão sobre o gasto. Vale notar que o Orçamento-Geral da União passou a
abarcar todos os desembolsos comandados pelo governo: empresas, fundações,
fundos e operações de créditos.
Se o passado orgulha o Brasil, a
desintegração do aparato de planejamento, orçamento e gasto que temos visto, na
última década, parece um sintoma da falência da institucionalidade brasileira.
Vale um breve histórico da trajetória do
desastre. Desde a Constituição de 1988, foi possível aos congressistas
apresentar emendas ao projeto de lei orçamentária, sempre indicando a fonte de
financiamento e não sendo essa referente a um gasto obrigatório.
Inicialmente, os congressistas buscaram
aumentar o tamanho do Orçamento, indicando erros e omissões do Executivo na
estimativa de receitas, dado que não poderiam mudar o gasto obrigatório (em
juros e salários, por exemplo). Assim, abriu-se o espaço para que as emendas
individuais (RP6) passassem a um montante expressivo.
Até aí, houve uma imensa queda de braço nas
liberações financeiras do pagamento das emendas, a cada votação importante. Mas
o Executivo tinha o controle. No entanto, 2015 foi um ponto de inflexão, quando
as emendas ganharam o status de impositivas. Vale lembrar que o Orçamento como
um todo é autorizativo sendo regulado pelo fluxo de receitas. Essas emendas
passaram, no entanto, a ser de pagamento obrigatório. Em 2015, eram R$ 9,7
bilhões e, em 2024, chegaram a R$ 25,1 bilhões.
Como o poço não tem fundo, a Emenda
Constitucional 105/2019 criou as emendas Pix, um verdadeiro espetáculo de
descompromisso com o mínimo de transparência no uso dos recursos públicos. Elas
permitem repasses diretos a Estados e municípios, sem necessidade de indicar
objetivo e destinatário. Essa modalidade exótica representa cerca de um terço
das emendas individuais.
Mais, as emendas de bancada (por Estado)
ganharam condição de impositivas, em 2019, e rapidamente abandonaram a ideia de
grandes investimentos regionais para serem picadas entre os parlamentares.
O crescimento do poder dos presidentes da
Câmara e do Senado foi concomitante à emergência, em 2020, da emenda de relator
(RP9). Esse orçamento secreto não durou muito, frente aos questionamentos do
Judiciário.
Como criatividade não falta, a expansão do
poder do Congresso sobre as contas públicas vem, agora, na forma de emendas de
comissão. A briga é a mesma, apenas o formato jurídico vai mudando. Agora a
forma de ganhar um filão cada vez maior do Orçamento é a emenda de comissão
(RP8), criada pela Resolução 1/2006 do Congresso Nacional, mas sem previsão
constitucional. Em 2024, elas correspondem a R$ 15,4 bilhões no Orçamento.
Numa suprema ironia, a Lei Complementar
210/2024 obrigou que 50% das emendas de comissão fossem para a saúde. A
necessidade de cumprir o mínimo constitucional transformou metade das emendas
de comissão em gasto obrigatório. E o Ministério da Fazenda aplaude, tanto que
a medida é citada no pacote fiscal.
A sensação que esse processo deixa é de que a institucionalidade fiscal vai se desfazendo na sanha por recursos, cujos contendores não entendem nenhum limite. Mas o Brasil tem muito a perder com isso.
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