Valor Econômico
Muitos dos que foram presos e interrogados
disseram que foram a Brasília orar pelo Brasil no 8 de Janeiro, mesmo as
velhinhas com Bíblia nas mãos
Os aspectos mais retrógrados e sombrios da
sociedade brasileira vieram à tona com a subversão olavo-bolsonarista em
aspectos que nos perturbam e nos colocam diante daquilo que somos e não
julgamos ser. Da cabeleireira ao general, todos expressam o fato de que o país
está à beira do abismo de sua história. Ao menos um dos brasis que conhecemos
está chegando ao fim. Resta saber qual deles.
O caso da cabeleireira sugere que uma inocente mãe de família, por ter participado de uma alegre excursão a Brasília e açulada por circunstantes movidos pelo mesmo espírito, depredou uma obra de arte, a escultura “A Justiça”, do artista plástico mineiro Alfredo Ceschiatti. Escrevendo-lhe no peito “Perreu, Mané” (sic).
Uma bandeira brasileira foi amarrada no
pescoço da escultura, mais ou menos como o faziam as centenas de manifestantes
que com o mesmo ímpeto invadiram e depredaram os palácios dos Três Poderes.
A ocorrência por ter mobilizado os
contraditórios sentimentos que formam a personalidade nacional transformou-se
em símbolo dessas contradições. Há nela todos os indícios do que não
conseguimos ser, que manifestamos naquilo que achamos que somos, os patriotas
que não somos.
Pátria somos quando estamos comprometidos com
o nosso nós. O olavo-bolsonarismo nos dividiu e fragmentou, nos privou de
pátria. Gente que vai ao governo americano pedir uma intervenção em nosso país,
para assegurar interesses que não são os de nossa pátria, trai a pátria. Gente
que ataca as instituições, que planeja assassinato de autoridades, é inimiga da
pátria e inimiga de todos nós.
Gente, civil ou militar, que não sabe a
diferença entre um botequim de Xiririca e os palácios que em Brasília abrigam
as instituições, ao se comunicar por meio de palavrões, diz que por ela a
pátria acabou. Porque pátria é também uma linguagem, a de uma unidade política
de referência comum a todos. Religiosos, não só evangélicos que aceitam
naturalmente essa linguagem são o quê?
O ato em torno da escultura de Ceschiatti
reuniu e consagrou várias ignorâncias. A de não saber escrever. “Perreu”, em
lugar de “perdeu”. A de achar que escultura é mera estátua e não saber que é
obra de arte, obra de conhecimento e, nos países civilizados, de respeito e de
admiração.
Não é estranho, pois, que os subversivos,
imediatamente após a decisão do STF de transformar os acusados em réus, já têm
montado o discurso de continuidade do golpe. Começam artimanhas para justificar
as próprias ilegalidades com base na própria lei. Fragmentar o criminoso
coletivo para diluir o delito na suposta multiplicidade de individualidades.
Justiça e Parlamento parecem propensos a cair
na armadilha. O que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023 foi crime de
multidão. Tem explicação sociológica e psicológica como crime de um sujeito
único, um sujeito social e político. O próprio Código Penal atenua, mas não
perdoa a participação nele.
Na imensa pesquisa que fiz sobre linchamentos
no Brasil, crime de multidão, 2 mil casos num período de mais de 20 anos, ficou
evidente que os participantes nesse tipo de violência coletiva têm consciência
de que “linchar não é crime”, o que não é verdade.
Em seus depoimentos, os participantes da
insurreição de 8 de janeiro de 2023 dão várias indicações de que se
consideravam convocados por Bolsonaro e pelo Exército para depor o presidente
eleito da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Aqueles acampamentos às portas
dos quartéis só foram possíveis porque legitimados por diferentes modos de
solidariedade e apoio de militares, de empresários e igrejas e seitas.
A multidão é um ente coletivo. Desde Gustave
Le Bon, o médico e psicólogo que no século XIX estudou o surgimento e a ação
desse sujeito social da modernidade, sabe-se que a personagem da turba é
instrumento voluntário do que a turba faz. Ela se dirige com precisão aos
objetivos e símbolos disseminados da ação coletiva.
Neste caso atual, a conspiração golpista
desde 2021 era meramente indicial. A multidão subversiva da Praça dos Três
Poderes revelou-lhe os meandros e os laços de unidade, o invisível tornou-se
visível e deu sentido ao que já se vinha vendo.
Houve uma omissão na investigação. Muitos dos
que foram presos e interrogados disseram que foram a Brasília orar pelo Brasil,
mesmo as velhinhas com Bíblia nas mãos. De fato as filmagens registraram
exaltados pentecostais orando aos berros dentro dos palácios, exorcizando o
satanás do poder, isto é, das instituições democráticas.
A convergência das justificativas dos
acusados indica um dos sujeitos invisíveis da mobilização e da violência, as
igrejas e seus pastores. Não foram indiciados e continuam conspirando.
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