Globo
Se o local estiver minado, o ‘escudo’ civil
explode primeiro. Caso contrário, ele tem a promessa de ser libertado uma vez
cumprida a missão
Na semana passada, mais que em qualquer momento anterior, nosso planeta viu-se forçado a mudar de órbita e girar em torno de Donald Trump, autoproclamado rei-sol do desvario tarifário em curso. Consequências e reverberações da medida têm sido dissecadas em todos os quadrantes, exceto na estreita faixa de terra, sangue e história chamada Gaza. Ali não há o que taxar. Ali uma vida humana vale menos que a de um cachorro.
Foi em agosto de 2024 que se ouviu a primeira
referência ao termo shawish, empregado no contexto da guerra desencadeada
por Benjamin Netanyahu em retaliação ao atentado terrorista do Hamas de outubro
de 2023. A palavra de origem turca significa “sargento”, mas, segundo revelou à
época o jornalista investigativo Yaniv Kubovich, passou a ser usada como
sinônimo de “escravo” ou “escudo humano” pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). A
longa reportagem de Kubovich publicada no jornal de oposição Haaretz causou
incômodo. Ela deu voz a soldados e oficiais da frente de combate que
denunciaram o uso de civis palestinos como cobaias em operações militares.
A prática, também conhecida como Protocolo
Mosquito, consiste em pinçar algum jovem ou idoso entre civis palestinos,
vesti-lo com uniforme das FDI, amarrar-lhe as mãos pelas costas, afixar uma
câmera ao colete à prova de balas e obrigá-lo a entrar em túneis do Hamas ou
imóveis semidestruídos. Com dez minutos de antecedência em relação à tropa. Se
o local estiver minado, o “escudo” civil explode primeiro. Caso contrário, ele
tem a promessa de ser libertado uma vez cumprida a missão. Em tese, são
recrutados à força por apenas 24 horas, mas há relatos de shawishes sendo
usados ao longo de uma semana inteira. Para tanto, recebem rações militares e
água.
Segundo a reportagem original, houve
instâncias em que unidades de combate chegaram a questionar seus superiores
sobre a legalidade do procedimento, inquiriram sobre a origem e a necessidade
da ordem recebida. Recebiam respostas impacientes:
— Você concorda que é melhor seus amigos
continuarem vivos e não estraçalhados por algum explosivo, e que eles ‘se
explodam’ no nosso lugar, certo?
— Um soldado não deve se interessar por leis
de guerra. Vocês precisam pensar nos valores da nossa defesa.
A proteção à unidade canina militar Oketz
também era ressaltada — vários cães farejadores haviam morrido ou saído
horrendamente feridos desse tipo de incursão, enquanto outros, apesar de
sobreviver, perdiam seus sentidos operacionais. Era preciso protegê-los.
Melhor, portanto, usar cobaias humanas. Leia-se, palestinos inocentes.
Dias atrás, foi a vez de um oficial
israelense (não identificado nominalmente, por motivos óbvios) publicar seu
desabafo diante da normalização do procedimento. Entre as primeiras denúncias e
hoje, a Divisão de Investigações Criminais das FDI abriu apenas seis inquéritos
referentes ao uso de palestinos como escudos.
— Hoje, praticamente todo pelotão mantém um
shawish de prontidão. Isso significa quatro escudos palestinos por companhia,
12 por batalhão e pelo menos 36 numa brigada. Estamos operando com um
subexército de escravos — escreveu o militar.
O signatário do desabafo serviu por nove
meses no inferno de Gaza e testemunhou várias ações do gênero. O procedimento
não exige tecnologia — é mais barato e simples que o uso de robôs ou drones.
Relatos de combatentes coletados pela ONG Breaking the Silence (Quebrando o
Silêncio) sustentam que pelo menos dois oficiais do mais alto escalão das FDI
tinham conhecimento da prática ilegal.
— Não sei o que é pior — escreve o autor da
denúncia — Se os comandantes não saberem o que ocorre nas fileiras subalternas
ou saberem e ignorarem.
Ele acredita que os seis inquéritos em curso
visam somente a aplacar a consciência nacional e mundial pinçando alguns bodes
expiatórios.
Enquanto isso, prosseguem o fatiamento e a
ocupação de Gaza, a expansão da operação militar, a criação de mais “zonas de
segurança” para as FDI, o enxotamento de mais de 140 mil para a nova “zona
humanitária”. Ganho territorial parece ter se tornado a prioridade única de
Netanyahu. O cessar-fogo inicial de 42 dias expirou em fevereiro e, desde
então, vigora a suspensão de qualquer ajuda humanitária para o enclave. Um
diretório especial israelense já começou a ser formado para supervisionar a
“saída voluntária” de palestinos do enclave e, segundo revelou o site Axios,
agentes do Mossad iniciaram o trabalho de “convencimento” de países africanos
como Somália e Sudão do Sul para que aceitem receber esses excluídos à força.
Quantos shawishes mais precisarão
ser usados para limpar Gaza de sua vida palestina?
— Estremeço ao pensar no dano causado à
psique de quem é obrigado a entrar numa casa como cobaia, sozinho, desarmado e
aterrorizado. Também estremeço ao pensar no dano que isso causa a nossos jovens
soldados israelenses que prepararam a vítima — escreveu o oficial no Haaretz. —
Não apenas falhamos na proteção de nossas tropas, como também corrompemos suas
almas. Não há como saber o que será de nós, como sociedade, quando eles
retornarem da linha de frente.
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