sábado, 5 de abril de 2025

‘Adolescência’ cria pânico moral nos progressistas – Pablo Ortellado

O Globo

Estamos mesmo diante de uma epidemia de misoginia adolescente? Não há evidência disso

A minissérie “Adolescência”, na Netflix, tornou-se um dos assuntos mais comentados nas últimas semanas. Ela conta a história (fictícia) da prisão de um menino inglês de 13 anos, acusado de assassinar uma colega, aparentemente movido por um impulso misógino. A trama investiga como a escola, a família e a cultura da internet podem ter colaborado para a tragédia.

A minissérie não apenas emocionou espectadores — também disparou um alarme. Mas será que esse alarme está baseado em fatos ou é apenas um pânico moral, alimentado por setores progressistas da sociedade?

Pânico moral é uma reação desproporcional a grupos sociais percebidos como ameaças graves aos valores e à ordem de uma sociedade. O conceito foi desenvolvido em 1972 pelo sociólogo Stanley Cohen para explicar a reação social aos confrontos violentos entre grupos juvenis — os mods e os rockers — nas cidades costeiras inglesas durante a Páscoa de 1964. Embora os incidentes tenham sido pontuais e de pequena escala, foram retratados pela imprensa como ameaças graves à ordem pública e aos valores morais da sociedade. Jornais sensacionalistas cobriram os confrontos com manchetes alarmistas e relatos distorcidos, gerando um clima de medo.

Os grupos de jovens viraram inimigos públicos, que Cohen chamou de “demônios do povo”. Especialistas foram chamados a explicar o fenômeno da juventude desviante e autoridades foram pressionadas a agir. A reação das instituições, com prisões em massa e condenações exemplares, foi desproporcional à real gravidade dos fatos.

Desde os anos 1970, o conceito de pânico moral tem sido mobilizado para explicar reações desproporcionais a grupos percebidos como ameaça à ordem social. Normalmente, esse sentimento é percebido por setores conservadores. Porém, desde que a polarização moralizou o debate político, a esquerda também produz pânico moral quando sente que certos grupos violam gravemente valores que lhe são caros.

“Adolescência” provocou o que poderia ser descrito como pânico moral progressista. A reação à minissérie segue as etapas descritas pela literatura sobre o tema. Um episódio — no caso, fictício, mas considerado ilustrativo de uma realidade social — é percebido como grave ameaça a valores sociais, à igualdade entre homens e mulheres.

Em seguida, a ameaça é amplificada pelos meios de comunicação, numa série interminável de debates que produzem “demônios do povo”, os adolescentes misóginos à espreita, nas famílias e nas escolas, para cometer feminicídios. Medo e ansiedade tomam conta da sociedade. Psicólogos, assistentes sociais e sociólogos são chamados a explicá-los. Em seguida, as autoridades são cobradas a apresentar soluções.

Estamos mesmo diante de uma epidemia de misoginia adolescente? Não há evidência disso. A misoginia juvenil, no sentido estrito — aquela que se organiza em torno de comunidades como os “masculinistas” e os incels (“celibatários involuntários”) —, existe, mas permanece um nicho —pequeno, isolado, com alcance limitado. Não se trata de movimento de massa com potencial de transformar meninos em ameaças generalizadas à segurança das meninas nas escolas.

É compreensível que pais, professores e autoridades se preocupem com manifestações de misoginia entre adolescentes — especialmente diante de casos reais de violência de gênero. No entanto a preocupação tem de ser ancorada em evidências, e a resposta precisa respeitar o princípio da proporção. É um erro grave tratar pequenos grupos misóginos juvenis como se fossem sinal de uma ameaça social iminente a exigir respostas drásticas — vigilância sistemática nas famílias, medidas punitivas nas escolas ou políticas públicas baseadas no medo.

Esse tipo de reação desproporcional a ameaças percebidas não é novidade. Tivemos, no Brasil recente, um caso que ilustra os riscos concretos de agir com base no medo. Em abril de 2023, o Brasil mergulhou em pânico moral quando ataques a escolas no começo daquele ano mobilizaram a opinião pública e o Estado de forma desproporcional.

Nas duas décadas anteriores a 2023, havíamos registrado 36 ataques a escolas — número que, embora preocupante, não justificava a histeria coletiva. Para “prevenir novos ataques”, legitimados pelo medo social, o país deteve em poucos meses mais de 1.600 crianças ou adolescentes e prendeu cerca de 400 jovens. O saldo não foi uma sociedade mais segura, mas sim um sistema educativo traumatizado, jovens criminalizados preventivamente e famílias destruídas pela suspeita. Faremos o mesmo com nossos filhos que se tornaram agora suspeitos de misoginia?

 

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