O Globo
Estamos mesmo diante de uma epidemia de
misoginia adolescente? Não há evidência disso
A minissérie “Adolescência”, na Netflix,
tornou-se um dos assuntos mais comentados nas últimas semanas. Ela conta a
história (fictícia) da prisão de um menino inglês de 13 anos, acusado de
assassinar uma colega, aparentemente movido por um impulso misógino. A trama
investiga como a escola, a família e a cultura da internet podem ter colaborado
para a tragédia.
A minissérie não apenas emocionou espectadores — também disparou um alarme. Mas será que esse alarme está baseado em fatos ou é apenas um pânico moral, alimentado por setores progressistas da sociedade?
Pânico moral é uma reação desproporcional a
grupos sociais percebidos como ameaças graves aos valores e à ordem de uma
sociedade. O conceito foi desenvolvido em 1972 pelo sociólogo Stanley Cohen
para explicar a reação social aos confrontos violentos entre grupos juvenis —
os mods e os rockers — nas cidades costeiras inglesas durante a Páscoa de 1964.
Embora os incidentes tenham sido pontuais e de pequena escala, foram retratados
pela imprensa como ameaças graves à ordem pública e aos valores morais da sociedade.
Jornais sensacionalistas cobriram os confrontos com manchetes alarmistas e
relatos distorcidos, gerando um clima de medo.
Os grupos de jovens viraram inimigos
públicos, que Cohen chamou de “demônios do povo”. Especialistas foram chamados
a explicar o fenômeno da juventude desviante e autoridades foram pressionadas a
agir. A reação das instituições, com prisões em massa e condenações exemplares,
foi desproporcional à real gravidade dos fatos.
Desde os anos 1970, o conceito de pânico
moral tem sido mobilizado para explicar reações desproporcionais a grupos
percebidos como ameaça à ordem social. Normalmente, esse sentimento é percebido
por setores conservadores. Porém, desde que a polarização moralizou o debate
político, a esquerda também produz pânico moral quando sente que certos grupos
violam gravemente valores que lhe são caros.
“Adolescência” provocou o que poderia ser
descrito como pânico moral progressista. A reação à minissérie segue as etapas
descritas pela literatura sobre o tema. Um episódio — no caso, fictício, mas
considerado ilustrativo de uma realidade social — é percebido como grave ameaça
a valores sociais, à igualdade entre homens e mulheres.
Em seguida, a ameaça é amplificada pelos
meios de comunicação, numa série interminável de debates que produzem “demônios
do povo”, os adolescentes misóginos à espreita, nas famílias e nas escolas,
para cometer feminicídios. Medo e ansiedade tomam conta da sociedade.
Psicólogos, assistentes sociais e sociólogos são chamados a explicá-los. Em
seguida, as autoridades são cobradas a apresentar soluções.
Estamos mesmo diante de uma epidemia de
misoginia adolescente? Não há evidência disso. A misoginia juvenil, no sentido
estrito — aquela que se organiza em torno de comunidades como os
“masculinistas” e os incels (“celibatários involuntários”) —, existe, mas
permanece um nicho —pequeno, isolado, com alcance limitado. Não se trata de
movimento de massa com potencial de transformar meninos em ameaças
generalizadas à segurança das meninas nas escolas.
É compreensível que pais, professores e
autoridades se preocupem com manifestações de misoginia entre adolescentes —
especialmente diante de casos reais de violência de gênero. No entanto a
preocupação tem de ser ancorada em evidências, e a resposta precisa respeitar o
princípio da proporção. É um erro grave tratar pequenos grupos misóginos
juvenis como se fossem sinal de uma ameaça social iminente a exigir respostas
drásticas — vigilância sistemática nas famílias, medidas punitivas nas escolas
ou políticas públicas baseadas no medo.
Esse tipo de reação desproporcional a ameaças
percebidas não é novidade. Tivemos, no Brasil recente, um caso que ilustra os
riscos concretos de agir com base no medo. Em abril de 2023, o Brasil mergulhou
em pânico moral quando ataques a escolas no começo daquele ano mobilizaram a
opinião pública e o Estado de forma desproporcional.
Nas duas décadas anteriores a 2023, havíamos
registrado 36 ataques a escolas — número que, embora preocupante, não
justificava a histeria coletiva. Para “prevenir novos ataques”, legitimados
pelo medo social, o país deteve em poucos meses mais de 1.600 crianças ou
adolescentes e prendeu cerca de 400 jovens. O saldo não foi uma sociedade mais
segura, mas sim um sistema educativo traumatizado, jovens criminalizados
preventivamente e famílias destruídas pela suspeita. Faremos o mesmo com nossos
filhos que se tornaram agora suspeitos de misoginia?
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