Quando, em maio de 1998, chegou às bancas o primeiro número da revista Época, o Brasil vivia um momento de otimismo. Pesquisa do Latinobarômetro dava conta de que o país ingressara no futuro, a confiança ressurgira e as famílias começavam a acreditar que seus filhos conheceriam dias melhores à frente. Os computadores estavam entrando no cotidiano dos brasileiros, o DVD prometia se expandir, hábitos novos chegavam à classe média e movimentavam o setor de serviços.
Havia alguma preocupação com o futuro do emprego. A ocupação na indústria caía e a torcida era para que os serviços funcionassem como fator de compensação. A taxa de desemprego de 8,18% (hoje é de 13%) incomodava, e a oferta de vagas vinha acompanhada da exigência de maior escolarização e especialização, o que prometia impulsionar o sistema educacional do país. A expectativa era que a economia manteria o pique e freasse a tendência a uma expansão caótica do mercado informal e da precarização do trabalho. Já então se ouviam vozes defendendo a reforma da legislação trabalhista, de modo a aumentar o poder de negociação entre sindicatos e empresas.
A sensação era de que a sociedade havia atravessado o trecho mais difícil da redemocratização, da luta contra a inflação e da modernização administrativa. Os próximos passos seriam de avanço, com melhor distribuição de renda e maior inclusão social.
Armadilhas da transição
Sociedades são entidades que se movem com dificuldade, tensão e sofrimento. Mas sempre se movem. Mesmo quando a paralisia parece prevalecer e tudo se mostra congelado, os germes da mudança trabalham em silêncio, corroendo a situação prevalecente. Começam então a ser percebidos os primeiros indícios de que algo irá se romper. Mas somente após um longo, lento e árduo processo de desconstrução é que emerge uma nova situação.
Nem tudo, porém, se desfaz. Ecos e pedaços do que existia antes permanecem na memória coletiva e nas estruturas sociais. O passado, a rigor, nunca passa. Verdade conhecida por historiadores e sociólogos, o fato assume proporções trágicas no Brasil, que carrega em seu DNA a dificuldade de romper com os arranjos sociopolíticos que, acumulados pelo tempo, terminam por condicionar o progresso social. Entre nós, ressoam fortes as célebres palavras de Karl Marx no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.
A passagem de uma ordem mais “tradicional”, agrária, para uma ordem mais “moderna”, industrial, por exemplo, sempre implica muita turbulência, deslocamento de forças e alterações no modo como se estratificam os grupos e se pensa a vida. A superação de uma ditadura enraizada e sua substituição por uma democracia estável, que são difíceis e conflituosas por definição, não podem ser viabilizadas sem uma boa dose de persistência, sem elites qualificadas e um padrão mínimo de unidade nacional, coisas que nem sempre estão ao alcance das mãos.
O Brasil entrou no século XXI convencido de que o pior havia ficado para trás.
Aos poucos, porém, foi ficando claro que as coisas não eram tão simples. Primeiro porque as estruturas arcaicas mostravam resiliência, ainda que estivessem sistematicamente pressionadas por uma modernidade que vinha embalada pelos ventos da globalização e da revolução tecnológica. O país resistia a abraçar o século XXI e insistia em continuar exibindo déficits assustadores em saúde, educação e infraestrutura.
Além do mais, o que havia de expectativa de renovação seria bloqueado pela lenta mas firme corrosão do sistema político, travado pelas peripécias do “presidencialismo de coalizão”. A política foi-se mostrando refratária à adoção de novas práticas, com a reposição de atitudes pouco republicanas e muito oligárquicas.
Foi assim, mas poderia não ter sido. Por volta de 1994, quando da eleição de Fernando Henrique Cardoso, ensaiou-se a adoção de um inédito caminho socialdemocrático, sustentado pelas dinâmicas que provinham de dois partidos paulistas, o PSDB e o PT, que não chegaram a dar-se as mãos de modo claro, mas revelaram a existência de muitos pontos de convergência. Mais tarde, quando do início do governo Lula, em 2003, o ensaio voltou a se manifestar, graças à transição governamental que fez com que a faixa presidencial passasse de um partido a outro sem acidentes e em grande estilo. O presidente sociólogo e o presidente metalúrgico pareciam estar ali, naquele momento emblemático, selando um pacto que impulsionaria o país.
Um abismo se anuncia
As coisas desandaram, no entanto, logo depois. O mensalão fez com que o PT se jogasse nos braços do PMDB e da centro-direita e voltasse a hostilizar o PSDB que, por sua vez, ativou todas as baterias contra os petistas. Repetiu-se o mesmo enredo que havia complicado a vida de Fernando Henrique: uma incorporação dos segmentos mais fisiológicos da política nacional.
De lá para frente, a temperatura política só fez subir. De uma eleição a outra, tucanos e petistas se comportaram como exércitos focados na destruição do inimigo. Foi assim em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014. Nessa última, o esforço de destruição recíproca varreu a dignidade de todo o campo político, graças a uma campanha de baixíssimo nível.
Subiu à superfície um subsolo tóxico, liberando gases que envenenaram o debate político e passaram a desafiar a democracia, jogando-a em uma zona de risco. Espasmos de uma direita autoritária passaram a se fazer sentir na cena pública. Dissolveu-se a possibilidade de retomada e fortalecimento do ensaio socialdemocrático. Avanços tópicos continuaram a ser registrados e houve mesmo uma nova onda de euforia no final da década de 2000, quando o consumo popular se expandiu e ajudou a turbinar a economia.
Lula deixaria o governo em 2010 com altíssimas taxas de popularidade. Mas as bases daquele ciclo não se mostraram fortes o suficiente. A crise logo irrompeu, acompanhando a alteração de humor da economia internacional.
Em 2013, a sociedade se desencontrou do Estado e dos governos, proclamou sua independência diante de partidos e políticos. As redes e as ferramentas de comunicação, então já devidamente massificadas, fizeram com que as multidões extravasassem a irritação e tomassem as ruas das grandes cidades, vocalizando a frustração por não verem atingidas as promessas de progresso anteriormente anunciadas.
A política instituída, como que tomada de surpresa, não soube reagir. Dilma Rousseff, governante de plantão, foi literalmente engolida pela combinação de crise e manifestação popular. Desenhou-se ali, nas reações às ruas de 2013, o mapa do que viria a seguir. Dilma se reelegeria em 2014, graças a uma campanha milionária, agressiva e plena de difamação. Seu segundo governo, porém, mal conseguiu dar os primeiros passos. Ficou suspenso no ar, sendo minado pelo desarvoramento da presidente e pela ansiedade das forças políticas.
Para complicar, em 2014 iniciou-se a Operação Lava Jato. A corrupção entrou de vez na agenda, sensibilizando a opinião pública e atormentando os políticos, que aos poucos perderam as condições de desmentir as seguidas denúncias do Ministério Público e da Polícia Federal, dando conta não só de uma prática recorrente como de um verdadeiro sistema de desfalques, lavagem de dinheiro, financiamentos ilegais e enriquecimento ilícito. Os partidos que governavam – o PT, o PMDB, o PP – foram atingidos em cheio.
Previsão autorrealizável
O impeachment em 2016 foi uma previsão que se autorrealizou, um processo repleto de improvisação e de tentativas de atalhar a crise pela recomposição da classe política, pelo amortecimento da Lava Jato e por uma maior aproximação entre o Executivo e o Legislativo.
Nada deu muito certo. O governo de Michel Temer conseguiu segurar o agravamento da crise econômica e aprovar algumas medidas para melhorar a administração das contas públicas. O ambiente econômico ficou mais arejado, com maior previsibilidade e equilíbrio. Meses depois de seu início, porém, o governo já não conseguia governar o país nem muito menos cair nas graças da população. Foi sendo devorado em parte por sua própria composição, desprovida de envergadura técnica, em parte pelas denúncias de corrupção e em parte pelo fisiologismo da classe política, que se atirou sobre o governo com a fúria de uma matilha esfomeada.
Tudo isso com um quadro partidário fragmentado, integrado por três dezenas de partidos, muitos dos quais sem programa ou perfil ideológico. Um sistema caro e pouco eficiente, distante da sociedade e que se impõe como uma espada sobre os governos, chantageando-os de mil maneiras e roubando-lhes governança e aptidão reformadora.
A desconfiança, o ceticismo, a decepção voltaram a crescer. A corrupção tornou-se desafiadora. A insegurança e a violência passaram a assustar sempre mais. O desentendimento entre os políticos chegou às raias do absurdo, traduzindo-se, por um lado, na multiplicação de postulações presidenciais e, por outro, na desagregação quase completa dos dois principais partidos “programáticos” do país, o PT e o PSDB. Cada um a seu modo, ambos mergulharam na fase mais sombria e melancólica de sua trajetória. A condenação e a prisão de Lula, líder máximo do petismo, fizeram par com as dificuldades operacionais e o apagamento propositivo dos tucanos, eles também às voltas com seguidas denúncias de corrupção.
As dificuldades do Executivo e do Legislativo ajudariam a impulsionar um processo de “judicialização” do processo de tomada de decisões. As instâncias do Judiciário, a começar do STF, passam a ocupar os espaços deixados abertos pela classe política, fato que faz com que a incerteza deságue nas eleições de 2018. A candidatura de Lula, tida até então como “imbatível”, fica a um passo de ser impugnada, erguendo uma interrogação sobre a expectativa que se tinha de um confronto eleitoral entre a direita de Bolsonaro e a esquerda petista. O “centro democrático”, por sua vez, que em tese seria o maior beneficiário, tarda a se compor, colhido em pleno voo pela fragmentação e pela multiplicidade de postulantes.
Decodificar o futuro
Mas, como não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe, é preciso tentar decodificar as tendências em curso. O país não parece destinado a retroceder, nem a se desagregar irremediavelmente. Compartilha parte importante de suas dificuldades com as demais sociedades do mundo globalizado e tecnológico: diferenciação social, individualização, hostilidade contra a política e os políticos, emergência de movimentos fundamentalistas e postulações autoritárias, expansão da criminalidade e da insegurança. Tem contra si a desigualdade e os déficits assustadores em termos de educação, saúde, habitação, infraestrutura. A seu favor, jogam a riqueza do território, o tamanho do mercado interno, a diversidade cultural e a índole do povo, como se costuma dizer.
Ainda há alguma gordura para ser queimada, mas o país corre o risco real de enveredar por uma trilha que o deixará fora dos circuitos principais do mundo, desperdiçando oportunidades para avançar e atingir patamares decentes de vida para todos. O tempo, que sempre jogou a favor, agora conspira contra, interpondo uma interrogação dramática para os futurólogos: conseguirá esse país-continente corrigir seus desníveis e suas injustiças, suas lacunas e insuficiências, para então se inserir na terceira e na quarta ondas de crescimento impulsionadas pela globalização?
Inteligência artificial, robótica, economias integradas e cooperativas, mercados dinâmicos operando em rede, financeirização, crises constantes, ativismo governamental mas menor poderio dos Estados nacionais, sistemas políticos em crise, uma cidadania ativa impregnada de ressentimento e “desejo de reconhecimento”, de luta por direitos e pautas identitárias – tudo isso explode na vida cotidiana. São coisas que vieram para ficar: ponto sem retorno. As diferentes sociedades nacionais veem-se diante de um cenário que as obriga a adaptações sucessivas, à incorporação de novas tecnologias produtivas e à integração econômica, de modo a se incorporarem às “cadeias globais de valor”.
Em teoria, o cenário parece claro. No chão histórico concreto, porém, tudo está sobredeterminado por decisões e arranjos políticos, sempre complexos e difíceis. O mundo descarrega sobre os países um complexo conjunto de desafios. A atual estrutura mundial é interdependente, limita as possibilidades de escolha e dificulta a consideração plena das próprias carências de cada país.
No Brasil, em particular, por seu tamanho e por suas dificuldades, será preciso cada vez mais olhar para fora e para dentro ao mesmo tempo. Um mínimo de unidade nacional terá de ser alcançado para que se viabilizem decisões corajosas e escolhas estratégicas, com seus sacrifícios. Não há milagres a esperar, nem atalhos a percorrer.
Somente a política carrega as chaves do futuro. Não, porém, qualquer política, mas uma que saiba se organizar, moderar suas pretensões e ser assimilada pela sociedade. Somente uma política democrática reúne condições de articular a complexidade, construir as mediações necessárias e transferir confiança aos cidadãos, ajudando-os a defender seus direitos e alcançar seus objetivos.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
*Artigo publicado na revista Época, nº 1039, 28/05/2018, p. 26-32.
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