Em um único ano, em São Paulo, a perda com a baixa execução foi de quase 60 vezes a perda com o mensalão!
Por Guilherme Lichand e Gustavo Fernandes* | Valor Econômico
É comum o argumento de que faltam recursos para que os governos ofereçam serviços públicos de qualidade para o cidadão. Se em tempos de pandemia a movimentação dos Estados e municípios por mais recursos torna ainda mais claro esse quadro de escassez, essa é uma realidade permanente brasileira; afinal, vivemos em um país em desenvolvimento, com recursos limitados e necessidades quase infinitas. Para ilustrar, o Brasil comprometeu 10,5% do PIB com ensino básico em 2016, acima da média da OCDE de 7,9%.No entanto, como o PIB brasileiro é muito menor do que a média dos países da organização, o gasto médio por aluno nos anos iniciais do ensino fundamental naquele ano ficou em menos da metade da média dos países da OCDE.
Não é então surpreendente que, ao mesmo tempo, sobre dinheiro para investir nessas necessidades mais básicas? Para ilustrar, em 2012, o Ministério da Justiça gastou apenas 28% do R$ 1 bilhão disponível para reduzir o déficit prisional - um problema gravíssimo que, à época, equivalia a cerca de 200 mil vagas. Nos três anos anteriores, a pasta tinha deixado de investir R$ 673 milhões do Fundo Penitenciário Nacional. Problemas similares são rotineiros em Estados e municípios.
Como pode faltar e sobrar dinheiro ao mesmo tempo? Embora as razões sejam diversas, destacamos neste artigo aquela que julgamos a mais importante e já noticiada neste jornal: o famoso “apagão das canetas”. Artigo publicado em 27/7/2018 já destacava que “o medo de sujar CPF paralisa a tomada de decisões no governo”.
De fato, no Brasil, ser acusado de corrupção é talvez a única maneira de um servidor não apenas perder o emprego, como ter que pagar multa do próprio bolso e acabar na cadeia. Acontece que há diferentes tons de cinza quando se trata do que os órgãos de controle brasileiros chamam de corrupção. Em um extremo do espectro, há o pedido de propina e o roubo flagrante, que aparecem nas manchetes. No outro extremo, porém, aparecem problemas diversos com o processo de contratação, em desacordo com as diretrizes dos Tribunais de Contas e Ministério Público, que não geram benefício para o político ou o gestor.
De fato, é complexo executar recursos orçamentários quando isso envolve compras públicas (e não só pagamento de salários). Todo processo precisa ser extremamente bem documentado e divulgado, os termos de referência não podem ser direcionados a nenhum participante (distorcendo a livre competição), deve haver ao menos 3 competidores, e assim por diante. Uma vez contratado o vencedor, as notas devem seguir o valor empenhado, e qualquer mudança precisa ser feita formalmente através de reforço ou anulação do valor empenhado, sob pena de configurar superfaturamento. Qualquer erro no processo configura evidência de corrupção.
Se alguns itens são fáceis de comprar, via leilão online, como papel higiênico, muitos outros exigem processos de compra complexos. Contratar obras exige não só termo de referência em ordem, mas também projeto básico detalhado. Isto num ambiente de grande informalidade, em que documentos formais não são simples de serem obtidos e mantidos atualizados. Além disso, bilhões de reais são comprados por pequenas prefeituras, em que há carência de profissionais especializados para auxiliar todo o processo. O gestor típico não tem formação nem equipe técnica para fazer isso.
A solução acaba sendo sentar com o fornecedor potencial, a famosa figura do “escritório de projetos” - que entrega esses documentos sob encomenda. O resultado, contudo, muitas vezes é questionado pelos Tribunais de Contas, que impõem exigências rígidas, de acordo com a legislação brasileira - as quais se chocam frontalmente com a capacidade técnica da linha de frente das compras públicas, sobretudo nos governos subnacionais.
É o que explica porque é mais fácil para o gestor deixar de gastar do que se arriscar. Sem ser premiado por resultado, nem por esforço, qual a racionalidade de se expor ao risco? Não fazer nada é, paradoxalmente, a decisão individualmente ótima - a despeito de ser uma tragédia social.
Para entender a dimensão e as causas do problema de forma estruturada, coletamos dados sobre a execução orçamentária dos municípios de São Paulo (exceto a capital), entre 2010 e 2015, com o Tribunal de Contas do Estado. De acordo com os dados, o impacto das falhas de execução é enorme. O total da dotação orçamentária dos municípios de São Paulo (líquida de despesas de pessoal) aumentou 25% em termos reais em 5 anos. No entanto, aproximadamente 27% do orçamento todos os anos foi deixado na mesa, o que equivale a uma média de R$ 15,7 bilhões por ano.
Para fazer um contraste, em 2016, Rodrigo Janot apontou que o esquema de corrupção teria desviado R$ 357,9 milhões dos cofres da Petrobras. Neste mesmo ano, o valor não executado alcançou espantosos R$ 21,43 bilhões. Somente no Estado de São Paulo, e em um único ano, a perda com a baixa execução foi de quase 60 vezes a perda com o mensalão!
A baixa execução orçamentária é como um cano furado: quanto mais água “sobra” fora do sistema, mais água “falta” para chegar até a torneira. Os serviços públicos sofrem com a falta de dinheiro porque esse recurso está sobrando sem querer ao longo do caminho. É possível botar ainda mais água no sistema, mas isso efetivamente quer dizer que o desperdício aumenta se medidas de gestão não forem tomadas. Seria mais inteligente consertar o cano. Mas como fazer?
Uma ideia promissora seria reduzir a assimetria de risco entre órgãos de controle e os gestores responsáveis pelas compras públicas. Isso pode ser feito por dois caminhos. Primeiro, dando mais espaço para que o gestor possa fazer o seu trabalho sem correr riscos. Segundo, dando ferramentas para que o gestor público tenha mais segurança para licitar, como o programa Fortalecimento da Gestão Pública, da própria CGU, que treina os gestores de compra in loco.
Outra estratégia nessa linha seria oferecer templates de termos de referência e projeto básico para os itens mais comumente licitados por cada órgão, que poderiam estar disponíveis nos sites dos próprios Tribunais de Conta. Ainda, os Tribunais poderiam oferecer apoio jurídico para os órgãos subnacionais (sem recursos para atrair os caros profissionais do direito), para que o gestor pudesse consultar o auditor antes que o problema fosse gerado.
Para isso, contudo, os órgãos de controle no Brasil precisariam resgatar sua missão: garantir o bom uso do dinheiro público - e não, ao tentar impedir seu mau uso, impedir qualquer uso no processo. Os números são claros: estancar a sangria da baixa execução é dezenas de vezes mais importante do que a obsessão com impedir corrupção, sobretudo quando estamos falando de problemas com processos de compra de governos sub-nacionais.
Em tempos de pandemia, regimes de contratação com menos requerimentos (e, portanto, mais céleres e com maior execução orçamentária!) estão sendo admitidos - como a iniciativa de decreto proposta pelo TCE-SP para a Assembleia Legislativa. Se, de um lado, a aprovação de decretos como esse poderia ajudar muito a dar vazão a recursos já existentes, de outro teremos ainda dificuldade para que os governos consigam cumprir o papel necessário para restabelecer a trajetória de crescimento anterior à crise se, ao final, tudo voltar a ser como era.
*Guilherme Lichand é professor-assistente de Economia na Universidade de Zurich e PhD em Economia Política e Governo pela Universidade de Harvard. Gustavo Fernandes é professor da FGV-EAESP e doutor pela USP.
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