- Valor Econômico
É desejável que já se planeje o que fazer após o isolamento. O silêncio atual é um mau coordenador de expectativas
Em momentos de crise, espera-se um papel maior das lideranças, eleitas ou não, na reflexão sobre os melhores caminhos, sobre como minimizar os danos, e implementar possíveis soluções. Talvez mais importante, pensar e planejar as estratégias de saída e a vida pós-crise. No caso de nosso presidente isto não poderia estar mais longe da realidade. Mas também na área econômica parece haver insuficiência de liderança.
Bolsonaro, de modo recorrente e calculado, mas não menos catastrófico, tem se posicionado contra a ciência e a evidência empírica, uma estratégia que só aumenta o número de infectados. Ao criticar o isolamento social e outras medidas recomendadas por especialistas, incentiva seus seguidores a saírem à rua, qual gado se dirigindo ao matadouro.
A “gripezinha” já matou cerca de 130 mil pessoas no mundo todo, atingindo mais de dois milhões de casos. No Brasil não há sinal de recuo. A insistência do presidente contra medidas de isolamento, que já se mostraram eficazes pelo mundo afora, parte do cálculo político de que ele não tem nada a ganhar apoiando os governadores no isolamento, mas poderá culpá-los pela recessão que inevitavelmente virá. Contribui também para isso uma ideologia anti-ciência e imune a qualquer fato ou dado.
Essa atitude dificulta a ação governamental no presente e, mais importante, impede um projeto de saída futura do isolamento. Sendo impossível manter a população em casa para sempre, ou mesmo muitos meses, será necessário relaxar o “lockdown” em algum ponto. Mas como pensar o futuro de forma articulada, bem construída e planejada, se mesmo as mais óbvias medidas para evitar o contágio no presente encontram oposição de Bolsonaro e seus seguidores? Vai-se relaxar o isolamento pouco a pouco ou de uma vez só? Liberar esta ou aquela região? Esta ou aquela atividade? Enquanto o presidente estiver pensando só no seu futuro político, estimulado por sua claque, essas perguntas seguirão sem resposta. Sem um bom plano de saída, o fim do isolamento social se dará de forma certamente ineficaz, podendo levar a uma segunda onda de contágio.
O isolamento político do presidente abre espaço para todo tipo de comportamento oportunista, como o projeto atualmente no Congresso de ajuda aos Estados e municípios. Aqui também há que se levar em conta a ausência de articulação mais consistente do Ministério da Economia. Até boa parte de março, mal se ouviu falar do ministro, e o que se via era uma medida aqui da Caixa Econômica e outra ali do Banco Central.
Mesmo medidas importantes, como flexibilização de relações de trabalho e cortes temporários de salário, foram anunciadas, e aparentemente concebidas, pelo competente pessoal de segundo e terceiro escalão. Não se viu ou ouviu o ministro em um momento que sua direção teria sido importante. E outros grandes acertos, como a ajuda temporária de R$ 600, foram tímidos inicialmente e de lenta implementação. Não é surpresa, portanto, que os parlamentares tenham se sentido à vontade para distribuir benesses que pouco têm a ver com a crise, mas muito com a histórica irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos.
O contágio avança, mas as medidas tomadas pelos governos locais e Ministério da Saúde parecem estar funcionando, apesar do presidente. O isolamento, entretanto, inevitavelmente levará à recessão. As previsões vão de queda modesta do produto, e recuperação rápida, a perdas gigantescas e duradouras. As medidas tomadas até agora no campo econômico vão amenizar o impacto da recessão sobre empresas e trabalhadores no curto prazo. Seria desejável que já planejasse o que fazer após o isolamento.
Entretanto, não há evidência de ação nessa dimensão. Há pelo mundo afora centenas de economistas estudando esse ponto específico e os impactos da epidemia. Já se criou inclusive uma revista on line totalmente dedicada a estudos sobre o assunto, a Covid Economics: Vetted and Real-Time Economics. Já há muitos artigos circulando. Eichenbaum e co-autores, por exemplo, embutem um modelo clássico de epidemia em um arcabouço macro-dinâmico, mostrando que a reação dos agentes à epidemia e a políticas públicas reduzirá muito as mortes, mas levará a uma recessão severa.
Este tipo de modelo pode ser utilizado para estudar políticas de estímulo pós-epidemia. Em outro artigo, Violante e co-autores utilizam modelos de agentes heterogêneos para estudar o impacto da epidemia e de políticas de lockdown sobre os mais pobres, o que permite formular estratégias de minimização de custos sociais. Os exemplos são muitos.
Governos estrangeiros têm participado do debate. Há várias questões em aberto, como o impacto distributivo da crise, o impacto sobre cadeias produtivas e seu potencial disruptivo, o efeito da propagação de falências, devido à falta de liquidez, o futuro do comércio internacional, e o papel do Estado em um mundo sujeito a choques de saúde.
No Brasil, serão especialmente importantes questões envolvendo o manejo da política macroeconômica, em um cenário esperado de explosão da dívida pública, pois não haverá espaço para a manutenção da política fiscal emergencial recentemente adotada. O governo precisa entrar no debate, se informar mais e começar a pensar estratégias de saída. O silêncio atual é um mau coordenador de expectativas.
Fica a impressão de que um governo que, tendo assumido com uma agenda liberal clássica, talvez não esteja equipado para responder a essas novas questões. É verdade que mesmo a agenda liberal já estava andando de lado, com a privatização quase parada e a abertura comercial abandonada. Ambas dificilmente serão retomadas na atual conjuntura. Mas se a área econômica não teve o desempenho que se esperava até o momento, e o ministro desapareceu quando mais se precisava dele, nos próximos meses a ação coordenada da área será fundamental para se evitar não só uma longa recessão, como seus efeitos mais perversos sobre os pobres.
Há pouca esperança de que o presidente assuma, perante todos os brasileiros, o papel de um líder que conduza o Brasil a uma saída suave desta crise. É provável que continue mais atrapalhando do que ajudando. Entretanto, na equipe econômica e em suas lideranças, há quadros qualificados e competentes capacitados para pensar uma transição para a normalidade. O futuro próximo dirá se estão à altura do desafio.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento. Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV
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