• Após recessão, retomada do Brasil continuará lenta - Editorial | Valor Econômico
O mundo está entrando em sua pior recessão desde 1930, constata o Panorama Econômico Mundial do Fundo Monetário Internacional. E a situação pode ser ainda pior. Na hipótese mais otimista, a de que os confinamentos em massa cessem no segundo trimestre do ano, a economia global encolherá 3% e a dos países mais ricos, 6,1%. Se o recolhimento forçado se prolongar ao longo de 2020, com novas recaídas no ano que vem, a economia global prosseguirá em recessão, sem crescer 5,8%, como previsto.
Os cenários são funestos. Ao menos 90% dos países terão sua renda per capita reduzida e os gastos feitos para enfrentar a pandemia e apoiar famílias e empresas levarão a uma explosão de um endividamento anterior já elevado. O coronavírus levou o caos aos mercados financeiros em velocidade inédita. As ações no mercado americano (S&P 500) tiveram a queda mais rápida da história - bastaram 16 sessões para perderem 20% de seu valor.
Sobre os países emergentes formou-se a “tempestade perfeita”, segundo o FMI. Eles assistiram à “maior reversão de fluxos de recursos em portfólio da história”, com US$ 100 bilhões batendo em retirada de 21 de janeiro até 9 de abril. Enquanto o dólar se valorizou 8,5% (até 3 de abril) em relação a uma cesta de divisas, as moedas emergentes caíram em uma espiral de desvalorizações, com África do Sul, México e Brasil à frente, com perdas de 25%. Os spreads dos títulos das dívidas emergentes pularam para 700 pontos-base, maior nível desde a crise financeira de 2008.
Além disso, as cotações das commodities, vital para vários emergentes, desabaram. O preço do petróleo, pelas projeções, se situará 42% abaixo do de 2019, e os dos metais, 15% abaixo. As cotações dos alimentos, dos quais o Brasil é um dos maiores exportadores, escapará dessa zona triste e podem cair apenas 2,6%.
As exportações dos emergentes devem diminuir 9,6%, um pouco menos do que o recuo do comércio internacional, estimado em 11%.
O Brasil, que já vinha em uma torturantemente lenta recuperação antes da pandemia, seguirá no mesmo passo lento de sempre depois, se o segundo trimestre for de fato o auge da crise do coronavírus.
Segundo o Fundo, o PIB brasileiro diminuirá 5,3% em 2020, para avançar 2,9% no ano que vem. Dentre os países emergentes relevantes, será a retomada mais fraca, superior apenas à da Nigéria e Arábia Saudita. Os emergentes devem crescer 6,6% em 2021 e os países da América do Sul, 4%.
No último trimestre de 2020 ante o mesmo período de 2019, o PIB será 5,8% menor e na comparação do trimestre final de 2021 com o de 2020, 3,6%, ou seja, a economia estará acelerando. O problema é que o Brasil vem carregando resultados ruins faz tempo e chama a atenção para o encolhimento de sua renda per capita - 5,9% este ano. É um péssimo número que se somará à enorme queda de 8,8% no biênio 2015-2016, nem um pouco compensada pelo avanço de 1,3% acumulado entre 2017 e 2019.
Nos relatórios do FMI, chama a atenção a observação de que o estoque de capital público do Brasil ter caído 5% entre 2010 e 2017 e de que sua capacidade de reverter esta situação seja considerada baixa por não ter espaço fiscal para isso. É de fato a situação fiscal que coloca o país em desvantagem em relação a seus pares antes da crise da covid-19 e que pode distanciá-lo ainda mais deles quando ela terminar. Os outros indicadores são sólidos. A inflação será de 3,6% este ano e 3,3% em 2021, o que parece um exagero para mais do FMI. O déficit em conta corrente, uma preocupação quando os fluxos de capital se revertem, pode ser de 1,8% do PIB agora e 2,3% no ano que vem. O desemprego deve subir para 14,7% em 2020.
O déficit fiscal do Brasil este ano, ampliado pelo combate aos efeitos do coronavírus, é estimado em 9,3%, perto da média mundial de 9,9%. Mas ele parte de um nível muito alto. O FMI projeta uma dívida bruta de 98,2% do PIB em 2020, superior, por exemplo, à da zona do euro, (97,4%). Subestimadas parecem as projeções do déficit primário para o ano (2,3%), bem como das despesas (39,9% do PIB, ante 37,9% em 2019) e das receitas, que cairão apenas 1,4% do PIB diante de uma recessão muito forte (de 31,9% para 30,5%).
Ao final, se o país atravessar a crise com o mínimo de sofrimento e mortes, os gastos terão valido mais que a pena. Restará o saldo a pagar. A dívida líquida atingirá 62,8% do PIB (2020) ante 45,8% dos emergentes do G-20. A dívida bruta, de 98,2% do PIB, será bem maior que a deste grupo, de 63,3%. Ao optar por um ajuste prolongado antes da pandemia, terá de fazer outro mais forte, depois.
*A pandemia nas contas públicas – Editorial | O Estado de S. Paulo
Quando a pandemia ceder, o Brasil começará a pagar os gastos emergenciais. Até dezembro, o rombo nas contas públicas poderá chegar a R$ 600 bilhões
Quando a pandemia ceder e a mortandade cair, o Brasil começará a pagar a conta dos gastos emergenciais para proteção da vida e apoio aos trabalhadores. Até dezembro o rombo nas contas públicas poderá chegar a R$ 600 bilhões, sem contar os juros. O buraco previsto no começo do ano será multiplicado por quatro ou cinco. O governo geral estará muito mais endividado. No fim de 2020 a dívida bruta poderá estar entre 85% e 90% do Produto Interno Bruto (PIB). Em fevereiro, estava em R$ 611 bilhões e a proporção era de 76,5%. Com muito trabalho, a equipe econômica tentava mantê-la abaixo de 80%. Também se abandonou essa meta, quando foi preciso destinar mais dinheiro à saúde e atenuar os efeitos econômicos da covid-19. Mas a dívida será administrável, se o governo mantiver o compromisso com a seriedade fiscal e com a pauta de reformas, disse o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, ao apresentar as novas estimativas. O recado implícito é claro: são condições para o governo preservar a confiança de quem o financia.
Além de matar, acuar populações e derrubar a economia, o coronavírus devastou as contas públicas, em todo o mundo, ampliando os déficits e as dívidas. Governos perderam receita e foram forçados a gastar muito mais que o previsto. Gastos adicionais e outras medidas para defesa da saúde e ajuda a empresas e famílias devem ter chegado a uns US$ 3,3 trilhões, globalmente, estima o Fundo Monetário Internacional (FMI). O total ainda cresce quando se adicionam operações de suporte financeiro. Os números estão no recém-divulgado Monitor Fiscal.
O governo brasileiro seguiu e continua seguindo, portanto, uma estratégia implantada em muitos países. “Ser liberal não significa ser estúpido”, disse o secretário Mansueto Almeida. “Não há dúvida de que temos de gastar mais, para ajudar o sistema de saúde, os trabalhadores que ganham pouco, os trabalhadores informais. Mas será um gasto temporário e não vai continuar nos próximos anos.” Por isso, acrescentou, esta será diferente de outras crises. Foi uma referência indireta aos gastos de emergência iniciados em 2009 e mantidos por vários anos.
Por enquanto, diz o secretário, um colchão de liquidez dispensa o Tesouro de buscar financiamento. Mas novos empréstimos serão inevitáveis, como indica a nova projeção da dívida pública.
Segundo o FMI, no Brasil a dívida bruta do governo geral – da União, de Estados e municípios – passará de 89,5% do PIB em 2019 para 98,2% em 2020. A média mundial aumentará de 83,3% para 98,4%. A dos países emergentes e de renda média crescerá de 38,3% para 45,8%.
No caso da dívida pública brasileira, os números do Fundo são normalmente maiores que os de Brasília, por diferença de critérios. Os cálculos do FMI, ao contrário dos brasileiros, incluem títulos do Tesouro na carteira do Banco Central. Isso resulta numa diferença às vezes superior a dez pontos, quando se trata da relação dívida/PIB.
Como é aplicado de forma geral, o critério do Fundo facilita a comparação entre a dívida brasileira e as de outros países. O endividamento do governo geral do Brasil é bem maior que o da média das economias emergentes e de renda média. No ano passado, a diferença ficava entre 89,5% e 38,3% do PIB. Mesmo na América Latina a diferença é sensível. Na média, a dívida pública latino-americana deve crescer de 45,3% no ano passado para 51,7% em 2020.
Em vários países avançados, a dívida é muito maior que no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, o endividamento estimado para o fim deste ano é de 131,1%. Na Itália, a proporção deve atingir 155,5% em 2020. No Japão, há muito tempo campeão do endividamento público, a proporção deve subir de 237,4% para 251,9%. Mas em todos esses países o setor público obtém financiamento abundante a juros muito baixos, às vezes até negativos.
No Brasil, juros em queda têm atenuado os custos financeiros do governo. Neste ano podem ajudar a conter a expansão da dívida. Será um prêmio pela inflação contida e pelo esforço fiscal desde o governo anterior.
• Em defesa do SUS – Editorial | O Estado de S. Paulo
Sem ele, o País estaria em situação muitíssimo pior no enfrentamento da emergência sanitária
Há poucos dias, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, fez um emocionado pronunciamento após ter recebido alta do Hospital St. Thomas, em Londres, onde ficou internado durante uma semana – três dias na UTI – acometido por covid-19. “É difícil encontrar palavras para expressar minha dívida com o NHS (o Serviço Nacional de Saúde, na sigla em inglês) por ter salvado a minha vida”, disse o primeiro-ministro. “Se conseguirmos impedir que o NHS seja sobrecarregado”, continuou Johnson, reforçando a necessidade de seus concidadãos perseverarem no isolamento social, “nós não seremos derrotados (pelo coronavírus).”
É justificável a preocupação de Boris Johnson com a preservação do NHS, não só pelo papel decisivo que o serviço público de saúde teve em sua dramática experiência, como também pelo que ele representa para todo o país. Criado três anos após a 2.ª Guerra com o objetivo de prover aos cidadãos do Reino Unido serviços de saúde de forma universal e gratuita “do berço até a sepultura”, como se dizia à época, o NHS é um orgulho nacional dos britânicos.
O modelo de saúde pública do Reino Unido foi a maior inspiração para a criação, no Brasil, do Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o maior sistema de saúde universal e gratuito do mundo. Há mais de 30 anos, o SUS é o único refúgio para 8 em cada 10 brasileiros que precisam de atendimento médico-hospitalar. Se o NHS é fruto de um esforço de recuperação pós-guerra, o SUS nasce para atender a um dos mais candentes anseios da sociedade brasileira no processo de redemocratização do País e de ampliação dos direitos e garantias fundamentais que, por fim, foram inscritos na Constituição de 1988. A unir os dois sistemas públicos está a visão de que a saúde não é uma mercadoria a ser vendida, mas um bem público a ser provido.
Em seu artigo 196, a Constituição estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Já o artigo 198 dispõe que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”. Em 1990, o Congresso aprovou a Lei Orgânica da Saúde, que regulamentou o funcionamento do SUS e estabeleceu os parâmetros que até hoje regem o sistema. Este arcabouço legal revolucionou o serviço público de saúde no Brasil. Convém lembrar que antes do SUS não havia nada remotamente parecido. Quando adoeciam, os desvalidos, os que não tinham empregos formais ou recursos para custear um plano de saúde particular só contavam com a filantropia das Santas Casas e com os hospitais públicos das redes estadual e municipal, não raro precários.
A universalização do acesso à saúde no País, portanto, é uma conquista inestimável dos brasileiros. Assim há de ser valorizada em seus pontos fortes e corrigida em suas deficiências. A capilaridade do SUS, seja no atendimento à população, seja na gestão regionalizada, é uma das fortalezas do sistema. Por outro lado, há anos os investimentos públicos no sistema – nas três esferas de governo – não condizem com sua necessidade e com sua importância para o Brasil. O Orçamento da União de 2019 destinou R$ 132,8 bilhões para o SUS. Este ano, R$ 142 bilhões. Parece muito dinheiro, mas este montante serve apenas para cobrir despesas de manutenção, sem margem para investimentos. Ainda assim, com todas as limitações, o SUS é reconhecido internacionalmente pela excelência de seus programas de vacinação e de transplantes de órgãos, o maior do mundo, sem falar na enorme quantidade de atendimentos que presta e na gama de pesquisas científicas que realiza anualmente.
Não fosse o SUS, o País estaria em situação muito pior no enfrentamento da maior emergência sanitária em um século, a pandemia de covid-19. Se os britânicos podem se orgulhar de seu serviço público de saúde, aos brasileiros não faltam razões para que também se orgulhem do seu. É necessário, pois, que a União, os Estados e os municípios, nos limites de suas responsabilidades, invistam no SUS para que o sistema seja aprimorado e possa entregar com mais qualidade tudo o que dele a Nação espera.
• Nem as pragas do Egito – Editorial | O Estado de S. Paulo
Em meio à pandemia do coronavírus, a fortaleza que protege os interesses dos servidores continua firme
O secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, defendeu o congelamento dos salários do funcionalismo público por até dois anos, pois “o exemplo tem que vir de cima” no enfrentamento da pandemia de covid-19. Afinal, se milhões de trabalhadores do setor privado estão sendo sacrificados, seja na forma de redução de salários, seja em razão de desemprego, como consequência do impacto da pandemia na economia, não há argumento plausível para que os servidores públicos – que gozam, ademais, de estabilidade – também não tenham seus vencimentos reduzidos ou congelados.
“O desemprego está subindo a passos largos. Será que está correto algumas pessoas manterem seus empregos e não perderem salário?”, questionou o secretário Sachsida em transmissão da XP Investimentos. É uma pergunta que todo brasileiro que não está na folha de pagamento do Estado deve estar se fazendo.
Por esse motivo, é reconfortante saber que funcionários do governo estejam expressando em público o desconforto causado por essa flagrante desigualdade. Enquanto a maioria absoluta dos cidadãos enfrenta a aspereza do presente, com a redução muitas vezes brutal de sua renda, além da angustiante incerteza sobre o futuro, uma minoria está sofrendo apenas o inconveniente do isolamento social, mantendo intactos seus salários e seus empregos, como se nada estivesse acontecendo.
Também o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, disse, ao site jurídico Jota, que os servidores “aceitarão o sacrifício” do congelamento de seus vencimentos, pois “mais de 1 milhão de trabalhadores do setor privado já foram afetados” pela redução de salários. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, no início do mês, havia defendido o congelamento por dois anos.
Portanto, há consenso na equipe econômica do governo para que se corrija essa tremenda injustiça. O problema é que o governo não se mostra interessado em tomar a iniciativa de propor o “sacrifício” do funcionalismo, pois até agora nenhum projeto nesse sentido foi apresentado.
A única iniciativa vagamente relacionada ao tema está na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial encaminhada pelo governo no final do ano passado, mas aquele texto determina o corte de salários e de jornada de servidores nos Estados somente se as despesas com o funcionalismo superarem 95% das receitas correntes. Ou seja, nada tem a ver com a emergência atual, muito mais grave e imediata.
Como bem lembrou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o presidente Jair Bolsonaro poderia ter exigido o congelamento de salários do funcionalismo como contrapartida para a concessão de recursos a Estados e municípios prevista em uma medida provisória recentemente encaminhada ao Congresso, mas não o fez. Assim, ao que parece, o receio de se indispor com a poderosa corporação do serviço público – base do presidente Bolsonaro – mais uma vez ameaça relegar tão importante tema ao terreno das boas intenções anunciadas da boca para fora.
O governo, decerto, espera que alguma iniciativa parta do Congresso, para que o ônus do desgaste com os servidores fique com os parlamentares, mas o deputado Rodrigo Maia já avisou que isso não vai acontecer, porque “o governo não pode tratar o Parlamento como barriga de aluguel”. O presidente da Câmara garante que os parlamentares estão dispostos a discutir o congelamento de salários dos servidores – mas convém lembrar que essa mesma Câmara aprovou, há um par de dias, um projeto que, a título de socorrer Estados e municípios neste momento de penúria, pode servir para engordar o contracheque do funcionalismo.
Nessa toada, a fortaleza que protege os interesses dos servidores públicos se mantém firme, imune até mesmo à gritante emergência provocada pela pandemia. A atual crise, inédita em muitos sentidos, deveria servir como uma oportunidade para acabar de vez com os inaceitáveis privilégios de boa parte do funcionalismo. Pelo jeito, contudo, nem as pragas do Egito, somadas, parecem capazes de abalar esse histórico status quo.
• Atraso no pacote prejudica área da saúde – Editorial | O Globo
Ajuda aos estados, preservada a responsabilidade fiscal, precisa ser concretizada com rapidez
A contaminação política do fundamental socorro do Tesouro aos estados e municípios só pode ser superada, por óbvio, pela negociação. Um exercício sempre difícil para um governo cujo presidente despreza a política. Mas não resta outra saída.
A grande distância entre o projeto aprovado na Câmara dos Deputados, sob a condução do seu presidente, Rodrigo Maia, e a posição da equipe econômica do governo precisa ser encurtada ou eliminada à base de conversas e concessões.
As cifras são díspares: R$ 77,4 bilhões das medidas do governo; R$ 89,6 bilhões da parte dos estados. Mas as diferenças vão além dos números.
O longo histórico de governos estaduais relapsos na gestão de suas contas, irresponsáveis no zelo pelo equilíbrio fiscal, causa justificados ruídos na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. A ideia dos governadores, acolhida na Câmara, de um programa de ajuda por seis meses — e não três, como tem sido com outras áreas — não é aceita pelo governo.
Tampouco, o conceito de “seguro”, pelo qual a cada mês seria calculado quanto faltaria para os estados e municípios terem no ICMS e ISS receita idêntica à do mesmo período do ano anterior, e seria despachada para o Tesouro a conta com a diferença.
Na visão compreensível da equipe econômica, trata-se de um “cheque em branco”, para estados e municípios manterem receitas sem qualquer esforço de ajuste, como se a crise do coronavírus só existisse para a União e a sociedade. Ressalvados os funcionários públicos, cujos empregos e salários continuam preservados, apesar de um cataclismo histórico.
A proposta correta da equipe econômica de pelo menos não haver reajuste dos servidores durante dois anos não transita com facilidade no Congresso, onde corporações sindicais, principalmente do funcionalismo, têm longa tradição de influência.
A contaminação política se dá de maneira clara nesta questão do “seguro”, porque o mecanismo é adequado aos estados e municípios das regiões mais ricas (Sudeste, Sul). Nelas estão possíveis concorrentes de Bolsonaro em 2022, e estados e municípios que dependem das arrecadações de ICMS e ISS. Enquanto nas regiões mais pobres (Norte, Nordeste), prefeitos e governadores vivem basicamente dos Fundos de Participação (FPE, FPM), já contemplados no primeiro pacote de ajuda à Federação.
Se a burocracia estatal atravanca a distribuição das três parcelas de R$ 600 aos trabalhadores informais, dificuldades políticas atrasam o fechamento de um acordo para a liberação do socorro fundamental do Tesouro para estados e municípios. Sem ele não chegam os necessários recursos na ponta dos hospitais e de toda a estrutura de saúde pública, onde aumenta o risco de colapso à medida que cresce o número de infectados.
• Governo tem de agir para impedir a contaminação de indígenas – Editorial | O Globo
Mas vai na direção oposta a demissão de diretor do Ibama que reprimiu ação de garimpeiros e madeireiros
Entre as muitas tragédias perpetradas pela pandemia do novo coronavírus, uma começa tomar forma no Norte do país e pode adquirir proporções incalculáveis se medidas de contenção não forem tomadas logo. Trata-se da chegada da doença às aldeias indígenas, levada por garimpeiros e madeireiros que atuam ilegalmente.
O sinal de alerta surgiu na quinta-feira passada, quando morreu, em Boa Vista, Roraima, o adolescente ianomâmi Alvanei Xirixana Pereira, de 15 anos, que testara positivo para a Covid-19. Ele morava numa aldeia às margens do Rio Uraricoera, região explorada por garimpeiros. Como mostrou o “Fantástico”, da Rede Globo, pelo menos outras duas mortes de indígenas já foram registradas no Alto Solimões.
Com o aumento do número de casos e o surgimento das primeiras mortes, o clima nas aldeias é de apreensão. O líder Dario Yanomami disse ao “Fantástico” que está “muito preocupado” com avanço da doença em Roraima. Estima-se que existam 20 mil garimpeiros ilegais atuando em terras ianomâmis. Eles podem disseminar facilmente a Covid-19 para as populações indígenas. A situação se torna mais complexa porque, em geral, essas regiões não têm estrutura para tratar casos graves.
Outra preocupação é que o Amazonas, estado que registra a maior proporção de casos de Covid-19 no Brasil, concentra a maior população indígena do país, cerca de 170 mil pessoas.
Não se pode dizer que setores do governo não estejam agindo para impedir que essas populações sejam dizimadas. Há dias, o Ibama deflagrou uma megaoperação para afastar garimpeiros e madeireiros de três terras indígenas no Sul do Pará, onde vivem 1.700 índios. Os fiscais, que não entraram nas aldeias, tiveram o cuidado de fazer quarentena. Invasores foram expulsos, armas apreendidas e equipamentos queimados, tudo dentro do protocolo.
Mas, como o governo Bolsonaro age de forma transversa, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, exonerou o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo. A repressão a garimpeiros e madeireiros teria desagradado ao Planalto, e o entendimento é que Azevedo não conseguiu impedir o ímpeto dos fiscais, que nada mais faziam do que cumprir o seu papel.
A reprovação à ação do Ibama já seria condenável do ponto de vista ambiental, principalmente quando se sabe que o desmatamento na Amazônia continua crescendo, apesar de o governo não querer vê-lo. Mas, nesse caso, se trata sobretudo de um grave problema de saúde pública. É preciso proteger essas populações, impedindo que invasores se aproximem das aldeias. Nesse sentido, o afago do governo a garimpeiros e madeireiros ilegais ganha ares de crueldade.
• Socorro perdulário – Editorial | Folha de S. Paulo
Projeto de ajuda a estados e municípios não incentiva uso correto dos recursos
Pressões do governo federal e alertas de especialistas não impediram a Câmara dos Deputados de aprovar um pacote de socorro financeiro aos estados e municípios que, se atende a uma necessidade real em meio à crise sanitária e econômica, deixa de lado precauções básicas para o bom uso do dinheiro.
O texto, negociado pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), prevê que a União compense integralmente por seis meses, a partir de abril, a queda de arrecadação do ICMS e do ISS ante o mesmo período de 2019.
Ainda que tenham sido eliminados outros dispositivos irresponsáveis, como a possibilidade de endividamento sem contrapartidas de ajuste posterior, há falhas no projeto —a começar pela incerteza quanto ao tamanho da ajuda.
O custo estimado é de R$ 93 bilhões, mas esse cálculo se baseia na mera suposição de que a receita cairá 30%. A cifra, portanto, poderá ser menor ou maior.
Além da impossibilidade de quantificar o montante, a garantia irrestrita incentiva um comportamento leniente de governadores e prefeitos quanto à gestão do caixa. O projeto mantém brechas para alívios tributários que podem elevar significativamente a conta do Tesouro Nacional.
Tampouco há vedações suficientes para evitar que os recursos acabem caindo no sorvedouro do custeio da máquina administrativa e das demandas corporativistas.
Não são poucas as ofensivas por reajustes salariais pelo país —como na recente e sorrateira tentativa de beneficiar o Tribunal de Contas paulista, abortada na última hora.
Melhor seria aprovar uma ajuda de valor fixo e por prazo menor, com a possibilidade de rever as condições depois. Não se sabe, afinal, qual será a duração e a intensidade da recessão econômica que ora parece inevitável.
Um projeto alternativo foi apresentado pelo governo, com auxílio proposto de R$ 22 bilhões. O valor decerto parece insuficiente e deveria ser debatido, mas o texto tem o mérito de estabelecer restrições quanto ao emprego da verba.
Infelizmente, o ambiente de conflagração entre o governo Jair Bolsonaro e o Legislativo paralisa negociações e favorece o andamento de pautas-bombas. O Senado deveria resistir a essa tentação e buscar a correção do projeto.
A emergência do coronavírus justifica a suspensão temporária dos limites ao gasto público, mas tal condição excepcional não revoga as leis do Orçamento. A conta do enfrentamento da crise virá, cedo ou tarde, e é necessário que se pense desde já como minimizá-la.
• O mau e velho Trump – Editorial | Folha de S. Paulo
Após ensaio de sensatez, republicano barra verbas para a OMS por motivo torpe
“Crime contra a humanidade” e “ato execrável” foram algumas das expressões utilizadas por especialistas em saúde para adjetivar a decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de suspender o repasse de fundos à Organização Mundial da Saúde (OMS).
Líderes políticos e empresariais, além do secretário-geral das Nações Unidas, usaram palavras menos fortes, mas não tergiversaram ao condenar a decisão do mandatário norte-americano.
Com uma transferência anual em torno dos US$ 400 milhões, os EUA são a nação que mais dá dinheiro à organização. A OMS se mostra a única entidade com estrutura para promover em escala global a troca de informações sobre a Covid-19 e coordenar os esforços de autoridades sanitárias de todo o mundo.
Especialmente para países pobres da África e da América Latina, é ela que na prática acaba delineando as políticas para o enfrentamento da epidemia. Se seu poder de reação cair por falta de financiamento, deve haver custo em vidas.
Se já configura absurdo, por si só, privar a organização de verbas no auge da provável pior pandemia desde a da gripe espanhola, entre 1918 e 1920, a medida desafia os limites da torpeza quando se consideram as motivações de Trump.
Por um momento, pareceu que o republicano, que até há pouco integrava o bloco dos governantes negacionistas, havia feito as pazes com a realidade. Ele passou a ouvir seus conselheiros médicos e deixou de atuar contra as medidas de isolamento social.
Também começou a ordenar ações fortes para a aquisição de equipamento médico —talvez fortes demais, uma vez que os EUA passaram a ser acusados por aliados europeus de “pirataria moderna”, ao sequestrar cargas destinadas a outros países.
Bastou, porém, que a imprensa apontasse os muitos erros cometidos por Trump —notadamente a recusa em agir antes do espalhamento do vírus— para desencadear uma reação defensiva.
O americano decidiu fazer da OMS um bode expiatório, atribuindo-lhe alguns de seus próprios erros. Acusou-a, por exemplo, de demorar a reconhecer a magnitude da crise. Também deu vazão a suas obsessões clássicas, afirmando que a instituição “globalista” estava a serviço de interesses da China, entre outros disparates.
Não se pretende que a gestão da OMS nesta crise tenha sido perfeita. As críticas justas, entretanto, devem levar em conta o nível de informação de que se dispunha no momento da decisão. Nesse quesito, Trump se sai bem pior.
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