Escritor publicou clássicos da literatura brasileira, como 'A Grande Arte' e 'Feliz Ano Novo'
Maurício Meireles – Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O escritor Rubem Fonseca, autor de clássicos como "O Cobrador" e "A Grande Arte", morreu na tarde desta quarta-feira (15), no Rio de Janeiro, aos 94 anos. Ele teve uma parada cardíaca, informou o Hospital Samaritano, onde o autor foi atendido.
Conhecido por sua reclusão —e recusa a dar entrevistas—, a Rubem Fonseca normalmente é atribuída a fundação de uma nova era na ficção nacional, que se tornou mais urbana depois dele. Com os livros do autor, também chega ao país uma influência mais direta da literatura dos Estados Unidos, além da linguagem cinematográfica.
Com livros marcados pela linguagem afiada e pela violência, Zé Rubem, como era chamado pelos amigos, publicou principalmente histórias policiais, mas era um dos autores que levava gênero —muitas vezes associado ao mero entretenimento— à alta qualidade literária.
Sua histórias, nos contos ou romances, contavam muitas vezes com personagens do submundo, como prostitutas e cafetões. Seu senso de ironia conseguia torná-las ainda mais perturbadoras.
Quando estreou na literatura, nos anos 1960, com a coletânea de contos "Os Prisioneiros", sua literatura chegou a ser descrita como brutalista. O autor se tornou, por décadas, um dos poucos autores nacionais de ficção a ser um best-seller livro após livro.
Ele publicou outras obras seminais da literatura urbana brasileira, como os romances "O Caso Morel" e "A Grande Arte" ou os contos de "A Coleira do Cão" e "Lúcia McCartney".
Influenciado pela linguagem cinematográfica, o caminho natural foi que parte da sua obra ganhasse adaptações no cinema e na TV. Em 1991, Walter Salles verteu para a telona "A Grande Arte". Já "Mandrake - A Bíblia e a Bengala" virou primeiro um telefilme, em 1983, e depois uma série da HBO já em 2005, com Marcos Palmeira no papel principal. A adaptação era de seu filho, o cineasta José Henrique Fonseca, que fez também de "Lúcia McCartney" uma série no GNT.
A influência de Rubem Fonseca se projetou de forma sólida sobre a literatura brasileira. Em alguns casos, apadrinhou diretamente escritores que desenvolveram uma carreira de sucesso, caso de Patrícia Melo e Ana Miranda. Do outro lado, também gerou uma série de imitadores baratos de seu estilo.
Recebeu alguns prêmios Jabuti e, em 2003, o Prêmio Camões, principal troféu literário da língua portuguesa. Em 2015, ganhou o Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras. A cerimônia de entrega foi uma das raras aparições públicas do autor. "Sou um homem idiossincrático e idiossincrasias não se explicam", disse na ocasião.
O escritor chegou a planejar com sua editora, a Nova Fronteira, as comemorações para seus 95 anos, que seriam comemorados em maio. Os livros devem sair com novo projeto gráfico e prefácios. Sua obra antes era publicada pela Companhia das Letras, mas ele deixou a editora em 2009, após um rompimento nunca esclarecido.
José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1925, viveu a maior parte da vida no Rio de Janeiro —e, mesmo recluso, se tornou um dos personagens da cidade. Morador do Leblon, não era incomum vê-lo levemente disfarçado em caminhadas matinais, com boné e óculos escuros.
Sua reclusão gerou anedotas. Por exemplo, há a história clássica de um repórter de TV que, cobrindo a queda do Muro de Berlim, em 1989, resolve entrevistar um brasileiro que por ali passava. Aos ser questionado sobre seu nome, o tal brasileiro responde: "José Rubem". O jornalista conversa com o escritor sem se dar conta de sua real identidade.
O lançamento de "Feliz Ano Novo", em 1975, e proibição posterior geraram uma das polêmicas mais rumorosas envolvendo um escritor no regime militar. O livro trazia cinco contos com o estilo que consagrou Fonseca, com os personagens urbanos e do submundo dos quais ele gostava de tratar, como um milionário que atropela pessoas de noite.
A obra já tinha saído há um ano e sido um best-seller quando a ditadura o proibiu, acusando o autor de atentar contra a moral e os bons costumes. Fonseca processou a União, mas o livro só voltaria às prateleiras em 1989, após a reabertura.
Sobre a ditadura, há um período da biografia de Fonseca que nunca ficou totalmente esclarecido, sua passagem pelo Ipes (Instituto de Pesquisa Econômica e Social), órgão que ofereceu apoio ao golpe de 1964 ao regime que se seguiu a ele. Criado por empresários na oposição a João Goulart, o instituto produzia, por exemplo, propaganda anticomunista.
Rubem Fonseca chegou a ser diretor do Ipes. Em artigo publicado na Folha nos anos 1990, o autor disse que a organização se dividia entre duas alas —uma que defendia uma solução política com o uso da força e outra que era democrática. Ele, que dizia ser parte da segunda ala, também costumava afirmar que cortou qualquer relação com o Ipes em 1964.
Em 2009, contudo, a professora Aline Pereira, da Universidade Federal Fluminense, levantou documentos do Ipes preservados no Arquivo Nacional que mostravam a ligação do autor com o instituto mesmo após o golpe. Em 1965, uma carta lamentava sua exoneração da diretoria. Outros papéis mostravam sua relação com o Ipes pelo menos até 1970, inclusive com contribuições financeiras.
Advogado de formação, ele foi policial nos anos 1950, experiência que alimentou sua literatura. Em 1995, a Folha fez uma pesquisa de dois meses nos arquivos da polícia do Rio de Janeiro além de ter colhido depoimentos de seis policiais que trabalharam com ele. O caso de uma vaca vítima de um atropelamento que é devorada por pessoas famintas, narrado em "Relato de Ocorrência", conto de "Lúcia McCartney", por exemplo, é inspirado numa história real —o caso aconteceu em 1953, quando Fonseca trabalhava no 24º Distrito Policial, em Madureira, zona norte do Rio.
Em 5 de agosto de 1954, já perto da meia-noite, o ainda policial tomava um copo de leite perto da rua Toneleros, em Copacabana. Foi por pouco que não viu o tiro que Carlos Lacerda sofreu naquela rua, atentado que foi o início da crise política que terminaria com o suicídio de Getulio Vargas. Fonseca e seus colegas policiais chegaram a ir para o local descobrir o que tinha acontecido, mas foram dormir na sequência. A morte de Vargas é o pano de fundo do romance histórico "Agosto".
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