A ajuda às empresas foi, até agora, claramente insuficiente. É paradoxal ter um grupo governante que se diz liberal, mas joga contra capitalistas e empreendedores
O início da flexibilização do isolamento social em boa parte do país dá a impressão de termos saído da pior fase da pandemia. No entanto, a situação é mais complexa por três razões. A primeira é que ainda não atingimos o ápice da doença, algo que, segundo epidemiologistas, poderá acontecer em junho ou, mais provavelmente, julho. Além disso, há chances de ocorrer uma segunda onda da covid-19 (ou o alargamento da primeira onda), fruto da maneira desorganizada com que tratamos a crise sanitária - e aí teríamos um número maior de mortes. E quando passar a fase mais aguda do novo coronavírus, virá o maior dos desafios: a reconstrução do país.
O desempenho do presidente Bolsonaro no combate à covid-19 tem sido sofrível até agora. Ele já foi considerado por analistas estrangeiros como o pior governante do mundo neste quesito. A maneira como o país está tentando sair da quarentena pode aumentar o descrédito do Brasil no cenário internacional, em especial se a doença revigorar seu poder de disseminação. Uma nova onda da pandemia, ademais, atrasaria ainda mais a retomada das atividades econômicas, e num cenário como esse o bolsonarismo pode dobrar a aposta na confusão, desinformação e conflito com os governos subnacionais e outros atores sociais, ampliando a crise atual.
O dia em que o Brasil sair do pior da pandemia será marcado por duas questões. A primeira dirá respeito ao legado deixado pelos erros no combate à covid-19. A desconstrução do SUS, o acirramento dos conflitos federativos, a ascensão de grupos bolsonaristas de extrema-direita que atentaram contra a democracia e a falta de liderança presidencial, que reduziu a capacidade de os governadores e prefeitos lidarem com a política sanitária local, serão marcas com impacto sobre o futuro.
Hipoteticamente, é possível recomeçar e buscar um novo modelo de relacionamento político. Porém, isso exigirá capacidade de organizar a reconstrução do país. E aqui está o segundo ponto: o governo Bolsonaro já deveria estar preparando o Brasil para o “day after” da crise, mas está completamente perdido. Fica a pergunta: o presidente tem condições de reconstruir a nação?
A reconstrução do país enfrentará uma série de desafios. O primeiro deles será o de ajudar as pessoas atingidas pela doença, especialmente os familiares das pessoas mortas. Há cenários que vão de 100 mil a 150 mil mortes do país nos próximos meses.
Qualquer um dos números é aterrorizador. Cabe ao governo federal reconstruir a confiança social da nação e, para tanto, uma política de apoio às famílias atingidas pela covid-19 seria uma forma inteligente e humanista de restaurar um clima positivo no Brasil.
O sistema de Saúde e seus profissionais precisarão de uma atenção especial após toda a pressão pelo qual passaram por meses, numa intensidade descomunal. Embora seja necessário manter uma estrutura por um tempo para lidar com a covid-19, haverá uma demanda represada muito grande. Outras doenças importantes do ponto de vista epidemiológico podem ter se descontrolado e, mais uma vez, o SUS terá uma sobrecarga de trabalho. Muitos acham que foi necessário ampliar os recursos financeiros agora por conta da crise, mas se perceberá na volta ao normal que o subfinanciamento das políticas de saúde é estrutural.
Mais importante será apoiar os profissionais da área médica no dia seguinte dessa pandemia. Não foi só ver milhares de mortos e sentir a impotência de não poder evitar um destino trágico e rápido dos pacientes. O governo federal, em particular, desrespeitou continuamente às tecnicalidades da área, sugerindo soluções médicas sem evidências cientificas e, obviamente, isso afeta quem está na ponta do sistema. Para piorar, o presidente Bolsonaro incitou pessoas a invadirem hospitais, um lugar sagrado para o bem-estar das sociedades, tanto mais numa pandemia tão avassaladora. Valorizar os profissionais da saúde, em especial do SUS, deveria ser um dos primeiros atos da reconstrução nacional.
As relações internacionais serão estratégicas no dia seguinte do ápice da pandemia. As soluções mais duradoras em relação à covid-19 vão depender de cooperação com outros países, não apenas no que se refere à comercialização da tão desejada vacina, mas também em relação ao restabelecimento do crescimento econômico global. Tudo isso só será possível se o Brasil mudar a sua orientação atual de política externa, que se diz contra o globalismo e os organismos multilaterais. Acreditar que governo americano vai salvar o país de todas as suas trapalhadas e equívocos frente à opinião pública mundial, como nos casos das fracassadas políticas ambientais e indigenistas, é um caminho incerto e ingênuo - afinal, nem se sabe se Trump continuará presidente após a eleição de novembro.
A desigualdade ficou ainda mais visível com o crescimento da Covid-19, realçando como o país não resolverá seus principais problemas se não tiver políticas de longo prazo contra as diferenças sociais que dividem tragicamente o país. A adoção de políticas de transferência de renda mais eficazes já entrou na ordem do dia no debate público, embora o governo ainda não tenha deixado claro como irá lidar com esse assunto.
É preciso entender que há vários tipos de desigualdade que foram realçados com a crise sanitária. A distribuição de renda aos mais pobres é essencial, mas não esgota o tema. Deveria receber maior atenção a situação de moradia de grande parte das famílias brasileiras, que vivem em condições insalubres e quase sempre sem saneamento básico. A manutenção endêmica da dengue no Brasil já se vinculava a essa característica de desigualdade urbana. Se novas pandemias que não tenham ainda um remédio adequado atingirem o país, formas de isolamento social serão mais uma vez difíceis de se obter - e sem isso, o número de mortes sempre será maior.
Outras desigualdades, como as que atingem os idosos e sobretudo a população negra, também merecem tratamento mais adequado. O retrato dos mortos da pandemia tem revelado que não somos iguais perante as políticas públicas. Na verdade, outros indicadores, como o de violência urbana e o de escolarização da população, há décadas têm mostrado um país doente em termos de desigualdade. Mudar esse cenário seria uma forma de mostrar que aprendemos com a trágica história da covid-19.
A reconstrução econômica será um dos maiores desafios do pós-covid-19. É preciso, inicialmente, garantir alguma renda a milhões de brasileiros que ficarão sem emprego e para os quais a informalidade não garantirá sustento. Essa ajuda provavelmente precisará ter uma temporalidade maior do que a imaginada pelo governo, pois o retorno das atividades econômicas não vai puxar tão rapidamente o PIB e o emprego como se gostaria. O mundo pode entrar numa depressão, e para esta é preciso mais ideias de keynesianos do que de liberais extremos.
A ajuda às empresas brasileiras foi, até agora, completamente insuficiente. O governo Bolsonaro demonstrou ser insensível com pequenos, médios e grandes empresários, com exceção daqueles que o apoiaram diretamente na eleição e que continuam fiéis nas redes sociais. Faltou uma imaginação institucional e um sentido de urgência que houve na época do Proer e que evitou a crise bancária, ou quando o presidente Lula garantiu a sobrevivência de várias empresas após a crise de 2008. É muito paradoxal ter um grupo governante que se diz liberal e joga contra os capitalistas e empreendedores.
Mesmo sabendo que o tamanho da crise econômica e sanitária deva se fazer sentir por alguns anos no Brasil, a consequência mais profunda da crise da covid-19 ocorrerá na educação. Alunos pobres que ficaram por meses sem aula aumentarão a enorme distância que os separa dos mais ricos. A forma de corrigir isso está em melhorar a qualidade das escolas e ter professores motivados e preparados para essa batalha contra tamanha desigualdade.
Porém, até agora o MEC não disse como enfrentará essa tragédia. Na verdade, o governo Bolsonaro lavou as mãos diante dessa desgraça coletiva, abandonando a geração que será o futuro da nação. Os livros de história contarão quem foi o governante que mais abandonou a educação no país.
Obviamente que o ministro da Educação, cujo nome é indigno de ser pronunciado, tem culpa na falta de rumo para o setor. Mas o presidente deveria chamar para si a responsabilidade de aprovar um Fundeb capaz de financiar o enorme desafio que será reconstruir a esperança de crianças e jovens pobres pelo país afora.
Deveria também retomar o diálogo com governadores e prefeitos para tomarem decisões conjuntas que garantam o aprendizado de todos os alunos, desculpando-se assim do vexame que foi brigar com os governos subnacionais em meio a milhares de mortes. Mais do que tudo, deveria gritar que a reconstrução do país começa nas escolas, congregando professores, famílias e filhos em torno de um projeto de Brasil mais justo e capaz de aumentar a qualidade de seu capital humano. Gostaria de acreditar nessa imagem, mas, infelizmente, Bolsonaro é mais habilidoso em criar guerras culturais do que em juntar pacificamente as pessoas em torno do conhecimento como a principal arma de mudança social.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Nenhum comentário:
Postar um comentário