sexta-feira, 19 de junho de 2020

Carlos Melo* - Um golpe sem dia seguinte

- Valor Econômico

É pouco plausível que tentativa golpista tenha apoio

No Brasil, previsões duram o tempo de uma garoa e só o futuro dirá se os temporais imaginados eram reais ou lágrimas na chuva; a política atropela profetas. Porém, o espectro de um golpe de Estado tramado pelo Poder Executivo ronda o ambiente nacional. A anuência do presidente da República e seus ministros à manifestações do gênero, além de conflitos com o Supremo Tribunal Federal, agitam fantasmas e geram “previsões”. Então, lá vai mais uma: eventual golpe, se houver, não trará dia seguinte.

A história ensina: em 1930, a Revolução se deu de fora para dentro do governo; novas camadas médias urbanas moveram-se contra Washington Luís e a continuidade da oligarquia expressa na eleição de Júlio Prestes. A crise de 1929 colocou fim a uma era, Getúlio Vargas e os tenentes marcharam sobre seus escombros.

Em 1937, o golpe ocorreu de dentro para fora, em favor do governo. Imprensa sob censura, partidos proscritos, comunistas presos; integralistas - bolsonaristas de então - gloriosamente enganados. A ditadura brotou das mãos de Vargas, tipo de raposa hoje extinta. O país se industrializava e a economia dava saltos, condições que favoreciam e fortaleciam o governo.

Em 1964, mais uma vez o golpe se deu de fora para dentro: conservadores e classe média, empresários e militares puseram fim ao curto mandato de João Goulart, o presidente errático que quebrou a hierarquia das Forças Armadas e pagou o preço. Tempos de Guerra Fria de verdade, elevação inflacionária e um governo sem amplo apoio.

Nos dois impeachments, de Fernando Collor e Dilma Rousseff, a crise de governabilidade resultou da perda de controle da agenda do Legislativo, além do fim da tolerância do establishment. A dinâmica política assumiu autonomia, veio a impopularidade e, no caso de Dilma, a teimosia levou à tragédia da recessão.

Impeachments não são passeios na Av. Paulista; são caminhos sem volta.

Na maioria das vezes, os governos desabaram. À exceção de 1937, quando a Fortuna guiou Getúlio, golpes e impeachments se deram contra, não a favor dos governantes - o “Pacote de Abril”, de Ernesto Geisel, ação contra “o golpe dentro do golpe” em nome da “transição lenta gradual e segura”, foi mais tarde seguido pelo fim da censura e pela volta dos anistiados.

Comparadas à história, as condições que rodeiam Jair Bolsonaro o remetem ao campo dos derrotados, não dos vitoriosos.

O desgastado da vez é ele, a impopularidade do momento é a sua; a bomba econômica está no seu colo; as derrotas políticas, em sua conta; o alvo de suspeitas, nas suas costas. Como Vargas em 1954, o embaraçado com parentes é de Jair; outro não é quem ameaça a hierarquia militar se não Bolsonaro. Carregando o ônus pelo desprezo à pandemia e péssimas expectativas econômicas, o presidente é vidraça; não pedra. Nesse quadro, é pouco plausível que tentativa golpista obtenha apoio popular.

Embora falte articulação, a sociedade é complexa, heterogênea, cáustica; há associações, sindicatos, movimentos sociais novos e antigos, novas tecnologias; empresários que não se puseram a bajular o governo. E, ineficazes notas de repúdio à parte, instituições que não se têm intimidado; grupos de comunicação arrostam o governo, a imprensa vocaliza a sociedade descontente. Maior que os cercadinhos ao pé dos palácios, há um povo majoritariamente democrático.

Se isso não bastar, ao campo das impossibilidades acresça a imagem internacional do governo. Nos Estados Unidos, a aliança bolsonarista se deu com Donald Trump e a extrema-direita, não com o Estado americano. O “amigo”, pouco confiável, passa por igual perrengue de isolamento e impopularidade e, aos olhos de hoje, terá dificuldade para se reeleger, em novembro.

Na Europa, de igual princípio ativo, Hungria, Polônia e Ucrânia contam nada diante do resto. Ali, da indisposição fez-se o asco: política ambiental bolsonarista, ataques a direitos humanos e individuais, além do desrespeito à vida repugnam a governos e opinião pública. A diplomacia de Ernesto Araújo salgou o solo e deu ao presidente o título de “o pior líder político do mundo democrático”, na visão da prestigiosa imprensa europeia e americana. O “Ocidente livre e democrático”, como dizem os bolsonaristas, rejeita e seu líder.

Iguais dificuldades no Mundo Árabe, na Rússia, em Israel - prestes a trocar liderança. Quanto à China, maior parceiro comercial, o máximo a esperar será a indiferença a um governo que a pretere e a estigmatiza. No Mercosul, a inamistosa reação à eleição de Alberto Fernández levará o governo argentino a evocar “cláusula democrática”, presente nos acordos do Bloco - irônico é o vinho da vingança.

Quem compara o capitão Bolsonaro ao coronel Chávez desconsidera que na Venezuela foi do assistencialismo, oriundo do petróleo caro e abundante, que se construiu apoio ao governo populista. Pouco provável que, no Brasil, efeitos do “coronavoucher” prosperem no ambiente de penúria fiscal sem arrebentar as contas públicas e aterrorizar o mercado financeiro, um dos últimos bastiões do governo.

Restaria a força e a força se impõe. Com efeito, o poder de estrago não é desprezível e a pouca inteligência para ativá-lo menos ainda. Mas o poder duro, que sufoca a sociedade, tem fôlego curto: sem projeto, sem perspectiva e sem carisma, não dá luz ao futuro. Deixa marcas, espalha sangue, mas se esgota em si; sem apoio e amplitude social, não traz o pão do dia seguinte. Se o quadro acima estiver correto, o eventual golpe não será sustentável.

Claro, nesses tempos, nada garante a tranquilidade: desastres não deixam de ocorrer apenas porque não deveriam acontecer. A razão não conta em tempos de cólera e onde nada há a perder, tem-se muito a ganhar. Tratamos com personagens que olham para o abismo e se encantam quando o abismo lhes sorri. Mas, a impossibilidade do dia seguinte pode servir de alerta e freio a quem guarde responsabilidades, tenha algo a perder e nada a ganhar. Reputações, vidas, negócios e hierarquia militar não são detalhes. O dia seguinte importa e são poucos os que o desprezam.

*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.

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