O Globo
O menino, sem os dois braços, tem o torso
coberto por uma camiseta regata e posa com os tocos à mostra
Uma está viva. Samar Abu Elouf, de 26 anos,
mãe de três filhos, é fotojornalista veterana. Conseguiu ser retirada de Gaza nos
primeiros meses da guerra e trabalha como freelancer para o New York Times em
Doha, no Catar.
Seu trabalho documental tem a força de silenciar quem o vê. As imagens são
absolutas, sem retórica, por isso machucam tanto. O foco de Samar está nos
poucos palestinos de Gaza que conseguem autorização de Israel para
sair do enclave e buscar sobrevida longe da brutalização em curso.
Dez dias atrás uma das imagens de Samar foi premiada com o prestigioso troféu 2025 World Press Photo of the Year, pinçada entre 59.320 concorrentes. A cerimônia, realizada sob as arcadas góticas da Nieuwe Kerk, uma igreja em Amsterdã, costuma ser festiva, mas neste ano precisou aguardar até a vencedora conseguir discursar — seu rosto era um espelho de lágrimas silenciosas. A seu lado, a imagem premiada de um garoto palestino, Mahmoud Ajjour, de 9 anos, sem os dois braços. O retrato em tons de pintura flamenga é respeitoso, não grita, apenas pede reflexão. O menino tem o torso coberto por uma camiseta regata e posa com os tocos à mostra. Seu olhar parece perdido num abismo — abismo de toda uma geração de crianças palestinas moídas pela guerra.
— Quero que esta foto faça alguma diferença,
que ajude a acabar com esta guerra. Se não conseguir isso, qual o propósito do
nosso trabalho? — indaga Samar.
A segunda mulher do título está morta. Fatima
Hassouna, também fotojornalista, tinha 25 anos e planejava achar um pedaço de
chão ainda verde e intacto para seu casamento em agosto. Palestina, nunca pôde
sair de Gaza. Na terça-feira dia 15, recebeu chamada de vídeo da cineasta
iraniana Sepideh Farsi, exilada em Paris. As notícias
eram alvissareiras: o documentário em que vinham trabalhando havia mais de um
ano, centrado no cotidiano de Fatima nestes 18 meses de guerra, seria exibido
agora em maio, no âmbito do programa Acid do Festival de Cannes. Sigla de
Associação do Cinema Independente para sua Difusão, a Acid é uma espécie de
versão cult da programação oficial. Está na 33ª edição, teve 650 concorrentes
neste ano e costuma revelar talentos. Por meio de videoconversas regulares com
a cineasta, Fatima é a cara, a alma, o espírito e a força de “Put your soul on
your hand and walk (em tradução literal, “ponha sua alma na mão e
caminhe”), título do documentário.
Vinte e quatro horas depois de a notícia
viralizar, o impacto de um míssil israelense estraçalhou a casa de Fatima no
bairro de Tuffah, em Gaza. A fotojornalista e nove membros da família,
inclusive uma irmã grávida, morreram na hora. Coincidência, dirão alguns.
Coincidência, perguntarão outros? Vale lembrar que, três semanas depois de
receber o Oscar de melhor documentário, o codiretor palestino de “Sem chão”,
Hamdan Ballal, foi sequestrado e severamente surrado por colonos israelenses
extremistas na Cisjordânia Ocupada.
Desde o início da guerra de asfixia contra
Gaza, em retaliação ao ataque terrorista do Hamas a Israel de outubro de 2023,
a Federação Internacional de Jornalistas computa mais de 160 jornalistas e
trabalhadores de meios de comunicação mortos nos escombros do enclave.
Relatórios de entidades locais sugerem que o número real pode ser bem superior.
Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, Gaza simplesmente tornou-se uma
vala comum para os palestinos e para aqueles que os ajudam.
Com sua câmera e imensa lente zoom colada ao
corpo, Fatima Hassouna fazia uma narrativa visual personalíssima do enclave que
morria e renascia todos os dias.
— Ela era os meus olhos em Gaza, combativa e
cheia de vida — diz a cineasta com quem dialogava. — Filmei suas gargalhadas,
lágrimas, esperanças e depressão.
Por testemunhar de perto o prolongado
massacre de sua gente, Fatima tinha motivos para se desolar diante do
apagamento de tantas vidas, muitas vezes em minutos. Jamais compreendeu a
covardia do mundo islâmico nem a cumplicidade envergonhada das democracias
ocidentais — a matança, simplesmente, continua à luz do dia. Com presença
notável nas redes sociais e colaborações para o jornal The Guardian e a
plataforma Mondoweiss, Fatima fazia barulho em vida. E quis barulho quando
morresse. Embora, em Gaza, as mortes em geral sejam ruidosas, pois brotam da
máquina de guerra, a quase totalidade das mais de 51 mil vítimas fatais
computadas até agora partiu anônima, soterrada no esquecimento mundial.
— Quanto à morte inevitável, quero uma morte
barulhenta, não me quero num flash de notícia urgente, ou [embutida] num número
coletivo. Quero uma morte que seja ouvida pelo mundo. Um rastro que dure para
sempre e imagens imortais que nem o tempo nem o espaço possam enterrar —
escreveu numa postagem de 2024.
Quem sabe, talvez, quiçá. A humanidade tem
sido cruel com sua história ultimamente.
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