César Felício
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O processo nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, em que a OAB pede a revisão da lei da anistia, é um dos pontos que provavelmente impedirá o regime militar de sair da vida para entrar na história antes do dia 13 de dezembro, data em que se completam 40 anos da edição do Ato Institucional número 5. A expectativa dos impetrantes é que a questão só seja apresentada em plenário em 2009. Os resquícios do regime que encerrou-se em 1985 ainda subsistem na militarização das polícias, no Código Penal Militar e na indefinição dos limites para as investigações do Estado que envolvam a flexibilização de sigilos constitucionais.
A quantidade de episódios do passado não resolvidos até hoje é um sinal de como foi bem sucedida, do ponto de vista de controle de danos políticos, a estratégia de instalação e posterior remoção do poder de um sistema ditatorial. E também mostra até que ponto boa parte das análises sobre o que significou o AI-5 apóia-se sobre mitologias.
Estudiosos como o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ou o cientista político João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, lembram que convencionou-se considerar que o que ocorreu em 13 de dezembro de 1968 foi um golpe dentro do golpe, em que uma ala legalista das Forças Armadas foi suplantada por um comando radical, quando na verdade esta ascensão foi consentida dois anos antes, com o triunfo do marechal Costa e Silva no Colégio Eleitoral, contra a vontade do marechal Castelo Branco. Atribuiu-se o AI-5 a uma reação da linha-dura à radicalização da oposição, ignorando-se uma série de decisões de governo sinalizando que se aguardava apenas um pretexto para o fechamento total. E justificou-se a insurgência armada da esquerda como uma resposta ao ato, quando as organizações dissidentes do PCB já se preparavam para pegar em armas antes mesmo do golpe de 1964.
Foi exatamente por não ser um golpe dentro de um golpe e um processo reativo à luta armada que o fechamento do regime consagrado pelo AI-5 não mergulhou o Brasil no banho de sangue vivido pelo Chile e pela Argentina. A resistência foi débil. O apoio popular ao regime era sólido.
"A memória tem a função de redimir, de tornar fatos duros confortáveis para as partes que se confrontaram. Mas para isso às vezes esquecem a cronologia dos acontecimentos ", comenta Carlos Fico, um especialista nos anos de chumbo. "Os militares e a esquerda colocam o AI-5 e a luta armada dentro de uma relação de causa e efeito, quando na verdade o que havia era um processo simultâneo de radicalização", complementa João Roberto Martins Filho.
O AI-5 revogado nas semanas finais do governo do presidente Geisel permitiu que o regime militar negociasse em posição de força a lei da anistia nos meses inaugurais do governo Figueiredo. Isto explicou a ausência no País de uma Comissão de Reconciliação e Verdade, como a que existiu na África do Sul de Mandela, ou o atabalhoado processo argentino, em que primeiro Alfonsín procurou punir seus antecessores, depois recuou diante da ameaça de deposição, com as leis do "Ponto Final" e da "Obediência Devida", passou-se pelo indulto aos ex-presidentes dado por Menem e terminou na volta dos processos com a ascensão de Kirchner.
Ao esvaziar as cadeias com as rédeas firmes no poder, o governo de então conseguiu, de maneira implícita, consagrar a tese que equipara atos de terrorismo urbano a políticas de tortura e extermínio. Algo praticamente inédito na América Latina. "Apenas no Uruguai aprovou-se uma anistia nestes moldes, mas a decisão foi tomada pela sociedade, por meio de um plebiscito", comenta o cientista político Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco.
O vigor da lei da anistia resistiu a dois governos comandados por oposicionistas do regime militar, como os de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, mas perdeu fôlego diante da divisão em relação ao tema dentro do governo Lula. A discussão pública entre o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o da Defesa, Nelson Jobim, sobre a natureza política ou não dos crimes cometidos pelos agentes de Estado motivou a OAB a levar a questão ao Supremo. "O processo da OAB irá fazer com que pela primeira vez, depois de quase 30 anos, a lei da anistia seja discutida em um contexto de institucionalidade", diz Carlos Fico.
Paradoxalmente, é o triunfo do regime de então ao decretar o AI-5, exterminar a esquerda armada e impor as regras para a anistia um dos fatores que perenizam o debate. "Enquanto não partir de integrantes das próprias Forças Armadas o reconhecimento de erros cometidos no regime autoritário, sobretudo o uso da tortura, esta questão estará sempre colocada. E não tenho notícia de que houve alguma autocrítica", comenta Martins Filho.
É pelo impasse político, e não pelo exame dos argumentos jurídicos do caso, que Fico, Martins Filho e Zaverucha se arriscam a apostar que o STF manterá a lei da anistia intocada.
"A transição no Brasil implicou na manutenção de uma série de enclaves autoritários, de reservas de poder para as Forças Armadas que não existem em países democráticos, como a militarização do tema da segurança pública. Na questão da anistia, não há condições de romper o acordo político de 1979. Esta é uma linha que os militares não aceitarão o transpasse", diz Zaverucha.
César Felício é repórter de Política. A titular da coluna, às quintas-feiras, Maria Inês Nassif, está em férias
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O processo nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, em que a OAB pede a revisão da lei da anistia, é um dos pontos que provavelmente impedirá o regime militar de sair da vida para entrar na história antes do dia 13 de dezembro, data em que se completam 40 anos da edição do Ato Institucional número 5. A expectativa dos impetrantes é que a questão só seja apresentada em plenário em 2009. Os resquícios do regime que encerrou-se em 1985 ainda subsistem na militarização das polícias, no Código Penal Militar e na indefinição dos limites para as investigações do Estado que envolvam a flexibilização de sigilos constitucionais.
A quantidade de episódios do passado não resolvidos até hoje é um sinal de como foi bem sucedida, do ponto de vista de controle de danos políticos, a estratégia de instalação e posterior remoção do poder de um sistema ditatorial. E também mostra até que ponto boa parte das análises sobre o que significou o AI-5 apóia-se sobre mitologias.
Estudiosos como o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ou o cientista político João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, lembram que convencionou-se considerar que o que ocorreu em 13 de dezembro de 1968 foi um golpe dentro do golpe, em que uma ala legalista das Forças Armadas foi suplantada por um comando radical, quando na verdade esta ascensão foi consentida dois anos antes, com o triunfo do marechal Costa e Silva no Colégio Eleitoral, contra a vontade do marechal Castelo Branco. Atribuiu-se o AI-5 a uma reação da linha-dura à radicalização da oposição, ignorando-se uma série de decisões de governo sinalizando que se aguardava apenas um pretexto para o fechamento total. E justificou-se a insurgência armada da esquerda como uma resposta ao ato, quando as organizações dissidentes do PCB já se preparavam para pegar em armas antes mesmo do golpe de 1964.
Foi exatamente por não ser um golpe dentro de um golpe e um processo reativo à luta armada que o fechamento do regime consagrado pelo AI-5 não mergulhou o Brasil no banho de sangue vivido pelo Chile e pela Argentina. A resistência foi débil. O apoio popular ao regime era sólido.
"A memória tem a função de redimir, de tornar fatos duros confortáveis para as partes que se confrontaram. Mas para isso às vezes esquecem a cronologia dos acontecimentos ", comenta Carlos Fico, um especialista nos anos de chumbo. "Os militares e a esquerda colocam o AI-5 e a luta armada dentro de uma relação de causa e efeito, quando na verdade o que havia era um processo simultâneo de radicalização", complementa João Roberto Martins Filho.
O AI-5 revogado nas semanas finais do governo do presidente Geisel permitiu que o regime militar negociasse em posição de força a lei da anistia nos meses inaugurais do governo Figueiredo. Isto explicou a ausência no País de uma Comissão de Reconciliação e Verdade, como a que existiu na África do Sul de Mandela, ou o atabalhoado processo argentino, em que primeiro Alfonsín procurou punir seus antecessores, depois recuou diante da ameaça de deposição, com as leis do "Ponto Final" e da "Obediência Devida", passou-se pelo indulto aos ex-presidentes dado por Menem e terminou na volta dos processos com a ascensão de Kirchner.
Ao esvaziar as cadeias com as rédeas firmes no poder, o governo de então conseguiu, de maneira implícita, consagrar a tese que equipara atos de terrorismo urbano a políticas de tortura e extermínio. Algo praticamente inédito na América Latina. "Apenas no Uruguai aprovou-se uma anistia nestes moldes, mas a decisão foi tomada pela sociedade, por meio de um plebiscito", comenta o cientista político Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco.
O vigor da lei da anistia resistiu a dois governos comandados por oposicionistas do regime militar, como os de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, mas perdeu fôlego diante da divisão em relação ao tema dentro do governo Lula. A discussão pública entre o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o da Defesa, Nelson Jobim, sobre a natureza política ou não dos crimes cometidos pelos agentes de Estado motivou a OAB a levar a questão ao Supremo. "O processo da OAB irá fazer com que pela primeira vez, depois de quase 30 anos, a lei da anistia seja discutida em um contexto de institucionalidade", diz Carlos Fico.
Paradoxalmente, é o triunfo do regime de então ao decretar o AI-5, exterminar a esquerda armada e impor as regras para a anistia um dos fatores que perenizam o debate. "Enquanto não partir de integrantes das próprias Forças Armadas o reconhecimento de erros cometidos no regime autoritário, sobretudo o uso da tortura, esta questão estará sempre colocada. E não tenho notícia de que houve alguma autocrítica", comenta Martins Filho.
É pelo impasse político, e não pelo exame dos argumentos jurídicos do caso, que Fico, Martins Filho e Zaverucha se arriscam a apostar que o STF manterá a lei da anistia intocada.
"A transição no Brasil implicou na manutenção de uma série de enclaves autoritários, de reservas de poder para as Forças Armadas que não existem em países democráticos, como a militarização do tema da segurança pública. Na questão da anistia, não há condições de romper o acordo político de 1979. Esta é uma linha que os militares não aceitarão o transpasse", diz Zaverucha.
César Felício é repórter de Política. A titular da coluna, às quintas-feiras, Maria Inês Nassif, está em férias
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