terça-feira, 9 de abril de 2019

Maria Clara R. M. do Prado: Percalços da previdência social

- Valor Econômico

O melhor sistema é aquele capaz de funcionar com o melhor equilíbrio financeiro possível

Quando a previdência social foi pela primeira vez introduzida no mundo, há 130 anos, ninguém poderia ter imaginado que o sistema de seguridade, com a garantia de uma renda fixa aos idosos após a participação produtiva no mercado de trabalho, resultaria em um dos maiores problemas para as políticas públicas no mundo.

Nos idos de 1889, o sistema da previdência significou um grande avanço social. Foi perpetrado pelo conservador Otto Von Bismarck, então chanceler da Alemanha, quando a taxa de fertilidade era alta, a expectativa de vida ao nascer era baixa e a distribuição populacional, por faixa etária, favorecia largamente os mais jovens. Com a invenção dos métodos contraceptivos e com a evolução da medicina, a vida foi prolongada para uma quantidade cada vez mais baixa de nascimentos. Esta é a realidade com a qual os governos passaram a confrontar-se, no Ocidente e no Oriente. O problema é comum a todos. As soluções, porém, mantêm-se limitadas.

Ainda hoje, as alternativas concentram-se em dois extremos: ou bem o Estado assume o déficit fiscal crescente entre contribuições e benefícios, garantindo certa tranquilidade financeira aos aposentados às custas da absorção de boa parte da renda do setor privado; ou bem o setor privado assume a administração do sistema, através da gestão financeira das contribuições dos trabalhadores com o risco de comprometer a renda dos futuros aposentados pela remuneração com juros abaixo do mercado e pela incidência de altas taxas de administração.

O Chile, como se sabe, mudou em 1981 o seu sistema da previdência social do regime antigo, semi-público, representado por caixas de pensão segmentadas por atividades profissionais, para o regime de capitalização individual, em que cada trabalhador contribui para um fundo privado, administrado por instituições financeiras (chamadas AFP, Administradoras de Fundos de Pensão) que lhes garantem uma determinada renda na aposentadoria. Calcula-se que os fundos de pensão privados chilenos acumulam hoje cerca de US$ 200 bilhões em ativos, representando algo em torno de 75% do PIB do país. Trata-se de expressiva poupança que tem contribuído para o desenvolvimento do Chile, a taxas de crescimento significativas.

Para os aposentados, no entanto, o sistema, da forma como foi originalmente criado, acabou por trazer desvantagens. O valor das aposentadorias caiu drasticamente, com boa parte dos benefícios mantendo-se abaixo do salário mínimo praticado no mercado de trabalho. A gritaria dos chilenos levou o governo a fazer adaptações. Em 2008, abriu-se processo de licitações para novos afiliados do sistema com o objetivo de ampliar o número de AFPs. A maior concorrência ajudou na redução das taxas de comissão cobradas sobre os valores das contribuições. Mas as queixas perduraram. O regime de capitalização impõe alto grau de incertezas sobre as aposentadorias, além de implicar a possibilidade de peso fiscal para o governo, quando o setor privado não consegue acumular nos fundos valor suficiente para cobrir os compromissos com os segurados.

No último governo de Michele Bachelet, uma Comissão Presidencial de Pensões foi criada para avaliar o setor e propor mudanças. O trabalho é extenso e faz um bom apanhado do funcionamento do sistema de capitalização chileno. Pode ser acessado através do site: www.comision-pensiones.cl

Adotado pelo Brasil e outros países, o sistema de repartição - em que os trabalhadores contribuem para um só fundo público e cujo montante é simultaneamente repartido pelos aposentados - está esgotado pelo fato das condições necessárias para o seu funcionamento não existirem mais, com tendência de o quadro piorar. No limite, não haveria dinheiro para pagar os aposentados, a menos que o governo (e a sociedade) se dispusesse a continuar financiando um déficit exponencialmente crescente.

No caso brasileiro, a bomba relógio acionou o tic-tac nos anos 70, a partir de quando se observou uma drástica queda na taxa de fertilidade. Hoje, o Brasil aproxima-se da marca de 1,5 filho por mulher em idade reprodutiva, uma taxa similar a dos países mais desenvolvidos - 1,4 por mulher na Alemanha e na Itália, por exemplo. É insuficiente para repor a população que morre, além de significar o ingresso de menos jovens no mercado de trabalho. A janela etária de oportunidade que o país tem hoje, resultado das altas taxas de fecundidade dos anos 70 (5,8 filhos por mulher), tende a sumir rapidamente. Nos anos 90, a taxa de fecundidade já havia caído para 2,4 filhos.

Some-se, como fator agravante para a previdência, o fato das pessoas viveram mais tempo. De acordo com as Nações Unidas, a expectativa de vida ao nascer das mulheres brasileiras em 2005 era de 75 anos e de 67,3 anos de idade para os homens. Em 2018, o horizonte havia saltado mais de três anos, para 78,4 anos de idade no caso das mulheres e 71 anos para os homens.

O descompasso entre a taxa de fertilidade e a taxa de longevidade, agravado pelas idiossincrasias acumuladas na previdência brasileira (aposentadoria por tempo de serviço, tratamento super especial para os aposentados do setor público, entre outros) levou o sistema ao colapso. Mais da metade do orçamento da União, como se sabe, é gasto com a previdência. O PIB desempenha, sem dúvida, papel fundamental na equação. Crescimento econômico melhora o funcionamento da previdência social porque quanto mais gente empregada houver, maior a contribuição para os fundos, privados ou públicos. Mas é uma variável de difícil controle.

A proposta do governo, encaminhada ao Congresso, atende às necessidades de ajuste, com a obrigatoriedade da aposentadoria por idade e outras restrições que buscam amenizar o impacto dos gastos da previdência. São urgentes e fundamentais para o médio prazo, mas, a continuar a tendência do aumento da longevidade, sabe-se que outros ajustes serão necessários no futuro.

Uma alternativa talvez fosse um sistema do tipo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), administrado pelo governo, com taxas de juros de mercado, cujas contas individuais dos trabalhadores seriam alimentadas com contribuições de valores à escolha de cada um, a partir de uma taxa mínima obrigatória. O dinheiro só seria sacado com base em critérios pré-definidos, como idade mínima, entre outros.

O assunto é sério, delicado e merece muita discussão. Coloca vidas em jogo. O melhor sistema é aquele capaz de funcionar com o melhor equilíbrio financeiro possível, sem colocar os aposentados à beira do abismo.

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