domingo, 22 de junho de 2025

Esquerda, direita, centro - Luiz Sérgio Henriques

O Estado de S. Paulo

Nem a direita anticonstitucional nem a esquerda sem imaginação são um destino

Num ambiente pavorosamente polarizado – e com uma compreensão curta das exigências que a democracia faz aos seus protagonistas –, um pequeno livro de Norberto Bobbio ainda pode ser lido com proveito. Contextualizemos o livro, Direita e esquerda: Razões e significados de uma distinção política. Eram os anos 1990 do século passado, a esquerda estava em debandada, tanto a comunista quanto a social-democrata. Com um dos lados em retirada, o outro, mesmo vitorioso, deixava de existir como tal. A contraposição clássica, denominada segundo a posição das bancadas parlamentares na França revolucionária, perdia sua motivação.

A política parecia, então, cancelada, dando lugar à mera “administração das coisas”, entendida como a ação humana possível diante da generalização das relações mercantis. A globalização inevitável dispensava direita e esquerda, impondo-se sem discussão o acrônimo raso de Margaret Thatcher – Tina, “there is no alternative”. Bobbio, com coragem intelectual, desmanchava a fantasia economicista e reafirmava, num momento particularmente difícil, a vigência da distinção e, portanto, de escolhas.

Política é sempre antagonismo, repetia o filósofo. Em última análise, direita e esquerda separam-se segundo a visão que têm da desigualdade humana e as soluções, melhores ou piores, que formulam para atenuá-la ou superá-la. Contudo, não são as únicas posições possíveis nem mesmo são indefinidamente iguais a si mesmas. Há variedades de centro, há esquerda e direita moderadas ou extremistas, e há, também, momentos críticos em que os próprios termos extremos perdem a “vitalidade histórica” e, na prática, passam a impedir a inovação, mesmo estando intrinsecamente exaustos.

Descendo um pouco do céu à terra, e tomando todo o cuidado para não incorrer nas tais falsas equivalências (que existem...), imaginemos um país – qualquer país – capturado, por um período histórico mais longo do que o habitual, pelo confronto sem restos entre direitistas e esquerdistas, trumpistas e não-trumpistas, bolsonaristas e lulistas.

Podemos ainda imaginar que as alas extremas destes agrupamentos farão o que puderem para que a confrontação se prolongue a perder de vista, mesmo ao custo da divisão da sociedade em metades inconciliáveis. Podemos também supor que alas menos extremadas, provisoriamente arrastadas no turbilhão, em algum ponto sintam a necessidade de “ir ao centro”, reconstituindo um terreno comum e estabelecendo a normal dialética democrática entre oposição e governo.

A reconstituição do centro político, assim entendida, implica paradoxalmente a retomada da política como luta pela hegemonia num significado muito preciso, que requer a legitimidade do adversário. Além disso, é a condição de possibilidade para que a maioria dos atores relevantes perceba as questões políticas centrais numa dada conjuntura. Tais questões, para usar uma metáfora conhecida, são o elo que, agarrado, permite manejar toda a corrente e, assim, produzir um novo e mais avançado equilíbrio de forças.

Não é possível esperar que forças subversivas, como as da atual extrema direita em escala global e também em solo pátrio, atuem com este sentido de alta política. E, por óbvio, nem as da extrema esquerda, como perto de nós o demonstram Cuba, Venezuela e Nicarágua, enquistadas num estado por elas monopolizado até com o uso da violência.

O PT é um caso singular. Reformista – fracamente reformista –, formou-se em torno de uma liderança esmagadoramente forte. Não tem propriamente, se é que um dia teve, um grupo dirigente autônomo em relação ao líder cultuado. Tradicionalmente encapsulou-se numa cultura autorreferencial, avesso ao tema do centro político e a frentes que não comandasse. Como exemplo, quase marca de nascença, a eleição crucial de 1985, quando o candidato de união nacional só podia ser Tancredo, não Lula ou alguém expressamente ungido por ele. O voto nulo e a expulsão dos desobedientes foram o passo natural seguinte, assim como natural seria o voto “radicalizado” contra o texto final da Constituição.

Mas a esquerda renasce de formas variadas, como queria Bobbio, e muitas vezes assimila outras tradições. Gabriel Boric compreendeu a universalidade dos direitos humanos, que, para ele, valem para palestinos e ucranianos. Pepe Mujica, incapaz de reivindicar mandato divino para consertar o mundo, educou seus partidários por meio de falas, aparições e livros com os “inimigos de classe”. Os incrédulos, aliás, deveriam ler suas “conversas sem ruído” com o expresidente Sanguinetti, de orientação liberal, a quem sucedeu ( Conversas sem Ruído Entre Sanguinetti e Mujica, L&PM, 2023). Nada de herança maldita. E não é a primeira vez que o paisito nos surra clamorosamente, em 1950 no futebol; agora na política...

Nem a direita anticonstitucional nem a esquerda sem imaginação são um destino. Como já aprendemos, na vida ou na política, um lance de dados nunca elimina o acaso. Mas eles, os dados, são permanentemente lançados, de modo que, apesar do acaso, não nos é permitido excluir a possibilidade de uma esquerda autorrenovada.

*Tradutor e ensaísta, coeditor das ‘obras’ de Gramsci no Brasil

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