O Estado de S. Paulo
Nem a direita anticonstitucional nem a
esquerda sem imaginação são um destino
Num ambiente pavorosamente polarizado – e com
uma compreensão curta das exigências que a democracia faz aos seus
protagonistas –, um pequeno livro de Norberto Bobbio ainda pode ser lido com
proveito. Contextualizemos o livro, Direita e esquerda: Razões e significados
de uma distinção política. Eram os anos 1990 do século passado, a esquerda
estava em debandada, tanto a comunista quanto a social-democrata. Com um dos
lados em retirada, o outro, mesmo vitorioso, deixava de existir como tal. A
contraposição clássica, denominada segundo a posição das bancadas parlamentares
na França revolucionária, perdia sua motivação.
A política parecia, então, cancelada, dando lugar à mera “administração das coisas”, entendida como a ação humana possível diante da generalização das relações mercantis. A globalização inevitável dispensava direita e esquerda, impondo-se sem discussão o acrônimo raso de Margaret Thatcher – Tina, “there is no alternative”. Bobbio, com coragem intelectual, desmanchava a fantasia economicista e reafirmava, num momento particularmente difícil, a vigência da distinção e, portanto, de escolhas.
Política é sempre antagonismo, repetia o
filósofo. Em última análise, direita e esquerda separam-se segundo a visão que
têm da desigualdade humana e as soluções, melhores ou piores, que formulam para
atenuá-la ou superá-la. Contudo, não são as únicas posições possíveis nem mesmo
são indefinidamente iguais a si mesmas. Há variedades de centro, há esquerda e
direita moderadas ou extremistas, e há, também, momentos críticos em que os
próprios termos extremos perdem a “vitalidade histórica” e, na prática, passam
a impedir a inovação, mesmo estando intrinsecamente exaustos.
Descendo um pouco do céu à terra, e tomando
todo o cuidado para não incorrer nas tais falsas equivalências (que
existem...), imaginemos um país – qualquer país – capturado, por um período
histórico mais longo do que o habitual, pelo confronto sem restos entre
direitistas e esquerdistas, trumpistas e não-trumpistas, bolsonaristas e
lulistas.
Podemos ainda imaginar que as alas extremas
destes agrupamentos farão o que puderem para que a confrontação se prolongue a
perder de vista, mesmo ao custo da divisão da sociedade em metades
inconciliáveis. Podemos também supor que alas menos extremadas, provisoriamente
arrastadas no turbilhão, em algum ponto sintam a necessidade de “ir ao centro”,
reconstituindo um terreno comum e estabelecendo a normal dialética democrática
entre oposição e governo.
A reconstituição do centro político, assim
entendida, implica paradoxalmente a retomada da política como luta pela
hegemonia num significado muito preciso, que requer a legitimidade do
adversário. Além disso, é a condição de possibilidade para que a maioria dos
atores relevantes perceba as questões políticas centrais numa dada conjuntura.
Tais questões, para usar uma metáfora conhecida, são o elo que, agarrado,
permite manejar toda a corrente e, assim, produzir um novo e mais avançado
equilíbrio de forças.
Não é possível esperar que forças
subversivas, como as da atual extrema direita em escala global e também em solo
pátrio, atuem com este sentido de alta política. E, por óbvio, nem as da
extrema esquerda, como perto de nós o demonstram Cuba, Venezuela e Nicarágua,
enquistadas num estado por elas monopolizado até com o uso da violência.
O PT é um caso singular. Reformista –
fracamente reformista –, formou-se em torno de uma liderança esmagadoramente
forte. Não tem propriamente, se é que um dia teve, um grupo dirigente autônomo
em relação ao líder cultuado. Tradicionalmente encapsulou-se numa cultura
autorreferencial, avesso ao tema do centro político e a frentes que não
comandasse. Como exemplo, quase marca de nascença, a eleição crucial de 1985,
quando o candidato de união nacional só podia ser Tancredo, não Lula ou alguém
expressamente ungido por ele. O voto nulo e a expulsão dos desobedientes foram
o passo natural seguinte, assim como natural seria o voto “radicalizado” contra
o texto final da Constituição.
Mas a esquerda renasce de formas variadas,
como queria Bobbio, e muitas vezes assimila outras tradições. Gabriel Boric
compreendeu a universalidade dos direitos humanos, que, para ele, valem para
palestinos e ucranianos. Pepe Mujica, incapaz de reivindicar mandato divino
para consertar o mundo, educou seus partidários por meio de falas, aparições e
livros com os “inimigos de classe”. Os incrédulos, aliás, deveriam ler suas
“conversas sem ruído” com o expresidente Sanguinetti, de orientação liberal, a
quem sucedeu ( Conversas sem Ruído Entre Sanguinetti e Mujica, L&PM, 2023).
Nada de herança maldita. E não é a primeira vez que o paisito nos surra
clamorosamente, em 1950 no futebol; agora na política...
Nem a direita anticonstitucional nem a
esquerda sem imaginação são um destino. Como já aprendemos, na vida ou na
política, um lance de dados nunca elimina o acaso. Mas eles, os dados, são
permanentemente lançados, de modo que, apesar do acaso, não nos é permitido
excluir a possibilidade de uma esquerda autorrenovada.
*Tradutor e ensaísta, coeditor das ‘obras’ de Gramsci no Brasil
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