Valor Econômico
STF e Congresso operam para tornar Lula
refém
O início da votação do orçamento secreto no
Supremo Tribunal Federal escancarou o jogo em curso entre os Poderes. A sessão
começou atrasada e o intervalo durou o dobro do usual. Ao longo da tarde,
circulou, por iniciativa de ministros partidários da acomodação, textos que
advogaram a tese de que a Corte não deveria interferir num tema de competência
do Legislativo. No limite, pregam a transparência que, de resto, já foi
determinada pela Corte e desrespeitada pelo Congresso.
A demora fez com que nem mesmo a ministra Rosa Weber, presidente da Corte e relatora da matéria, tenha proferido seu voto. A retomada do julgamento na próxima semana só deixa duas opções. A primeira é de um pedido de vista por um dos ministros a votar depois da relatora, mais provavelmente Kassio Nunes, o que pode levá-la a uma decisão liminar que dê validade imediata a seu voto. A segunda é que o julgamento prossiga mas que não haja tempo para o voto de todos os ministros, o que levará sua conclusão para a retomada do ano legislativo em 2023 uma vez que a Corte entra em recesso na semana seguinte.
A destreza dos ministros do “deixa-disso” e
a relutância da relatora em buscar a maioria em torno de seu voto sugerem que a
segunda opção seja a mais provável. Rosa Weber não distribuiu seu voto para os
colegas, tradição numa Corte em que os ministros precisam de convergência em
torno de suas teses para vê-las aprovadas. Em vez disso, o que circulou, entre
os ministros, foi o texto de um jornalista que praticamente reproduziu as teses
apresentadas pelo advogado da Câmara.
O adiamento coloca o governo eleito diante
de um dilema. Expõe-se a assumir um risco fiscal que voltou a ser de R$ 200
bilhões, com tantas idas e voltas de puxadinhos, que resolvem até as pendências
das emendas de relator que o Congresso não tinha conseguido deliberar com o
atual governo. A troco de quê? Paz legislativa, dizem os advogados da
acomodação. Por enquanto, a única paz visível é a de Arthur Lira, que reluta em
devolver a gestão do país a quem foi eleito para fazê-lo.
Não se trata de enfrentar sua reeleição à
mesa. Não é isso que está em jogo. O PT abriu mão de disputá-la. O que está em
curso é um projeto de perpetuação do semi-presidencialismo que o Congresso
implantou ao longo do governo Bolsonaro sem as responsabilidades que a mudança
de um regime acarretaria.
A ver, por exemplo, a situação em que hoje
se encontra Arthur Lira. O presidente da Câmara é pré-candidato ao Senado em
2026. Foi o deputado federal mais votado de seu Estado e elegeu mais quatro
aliados numa bancada de nove, mas seus candidatos foram derrotados na disputa
pelo governo e pela vaga ao Senado. Viu ainda o presidente eleito ganhar, com
folga, a eleição em seu Estado, sem o seu voto. Seu correligionário, o ministro
da Casa Civil, Ciro Nogueira, com quem divide o comando do PP, também é
pré-candidato ao Senado em 2026, quando acaba seu mandato. Foi igualmente
derrotado na disputa pelo governo e pelo Senado no seu Estado e viu o
presidente eleito derrotá-lo, no Piauí, com sua melhor votação no país (77%).
Arquitetos do orçamento secreto, ambos são
sobremaneira dependentes de Lula para sua sobrevida eleitoral em 2026. A
dependência é uma decorrência natural de seus planos políticos futuros, mas o
governo eleito parece ignorá-la. Tanto que Lira se viu livre pra fazer
chantagens à luz do dia.
Muitas alternativas têm surgido para que os
parlamentares não percam a bolada do orçamento secreto de uma hora para outra.
Seja por meio do aumento na dotação de emendas individuais e de comissão, seja
pela flexibilização do volume de emendas individuais que não passam pela
intermediação da Caixa Econômica Federal, as chamadas “emendas pix”. São
concessões que atendem aos interesses dos parlamentares mas não de Lira. Seu
poder não é conferido apenas pelo volume de recursos mas pela capacidade de
alocá-los, que ultrapassa, e muito, as fronteiras de seu partido. Daí a
articulação para acomodar as mudanças que deixarão tudo como está.
Lira não quer disputar influência com
ministros de legendas nas quais mandava até outro dia. Basta ver, por exemplo,
os movimentos de MDB, União Brasil e PSD. Esses partidos aproximaram-se de Lula
no segundo turno ou depois da eleição e passaram a ser cativados com a
perspectiva de ocupar pastas ministeriais. Se o fizerem com um Orçamento que
destina R$ 22 bilhões aos investimentos da União serão meros carimbadores. Em
2023, mantido o atual Orçamento, o Congresso disporá de R$ 38,8 bilhões para
emendas individuais, de bancada e de relator - estas últimas consomem metade
deste valor.
Juntos, esses três partidos têm 144
cadeiras na Câmara dos Deputados, mesmo número de cadeiras dos demais aliados
de Lula. A soma de seus votos não alcança quórum constitucional, até porque há
parlamentares dessas legendas que não vão aderir a Lula, mas também há
deputados do PP e do PL que vão votar com o governo. A aritmética sugere que o
governo vai precisar - e muito - de Lira se quiser avançar com a pauta de
reformas este ano, a começar pela tributária.
As articulações de Lira sugerem que ele não
se satisfaz com esta interlocução. Só o interesse em disputar um novo mandato
como presidente da Câmara, em 2025, parece explicar a ofensiva. Não há clima
hoje na Casa para uma emenda constitucional que lhe dê mais dois anos à frente
da mesa diretora. Até porque, ao longo desses dois próximos anos, Lula terá
como construir uma base política que almejará a condução das casas
legislativas.
Muito depende de os nomes a serem indicados
pelos partidos para o Executivo escaparem ilesos pelos órgãos de controle que
voltarão a atuar sem as amarras do bolsonarismo. Se as alternativas para manter
relevância ao deixar a mesa da Câmara são um problema de Lira, as consequências
desta PEC são uma questão a ser enfrentada por Lula. Para equacionar a pressão
fiscal de sua aprovação, o presidente eleito precisará agilizar as primeiras
medidas de seu governo - do revogaço da era Bolsonaro às propostas legislativas
que destravarão investimentos.
Daí porque a negociação desta PEC exige uma sintonia fina. Se ceder demais, compromete o início do governo. Se ceder de menos, sacrifica as relações com o Legislativo. Se entregar esta negociação ao Supremo, o governo eleito se arrisca a tomar posse respaldado pela legitimidade de 60 milhões de votos e, em breve, se tornar refém de 594 parlamentares - e 11 ministros.
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