quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um século antes de Barack Obama


César Felício
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A anedota é contada na revista "Courier", da Unesco, em um artigo de abril de 1951, que pode ser lido pela internet. O autor Alfred Metraux cita o relato de um viajante inglês ao Brasil em princípios do século 19, que admirou-se ao saber que determinado cidadão, mestiço, havia sido nomeado capitão-mor. "Ele era mulato, mas não é mais", teria explicado o interlocutor ao viajante. Diante da surpresa, complementou: "Antes de ser promovido, era. Mas um capitão -mor nunca pode ser mulato".

país sem maioria branca ou negra, no Brasil não houve a tensão racial explícita que matou Martin Luther King nos anos 60 e que construiu as políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos nas últimas décadas. Mas ergueu-se uma tradição de clareamento conforme a escalada da pirâmide. Uma mostra de fotos promovida pela Prefeitura de São Paulo no ano passado deixou evidente a estratégia que fez com que os não-brancos que romperam barreiras sociais jamais constituíssem uma elite parda. A mostra trazia fotos de negros ou pardos ilustres. Entre eles, o sétimo presidente da República, Nilo Peçanha.

Fluminense de Campos, Peçanha era vice-presidente e assumiu o cargo com a morte do titular Afonso Pena, em 14 de junho de 1909. Praticamente um século antes da vitória do também mulato Barack Obama nos Estados Unidos. Há evidências de que as fotos oficiais de Peçanha eram retocadas para que sua pele fosse clareada. Seu casamento com uma herdeira da aristocracia do açúcar no norte do Rio provocou escândalo e sua origem social e racial foi usada como acusação pelos inimigos políticos. Nilo Peçanha e sua família sempre negaram a mestiçagem.

Ainda que cor da pele tenha deixado de ser motivo de escândalo, a presença negra ou parda na elite política brasileira desde Nilo Peçanha é uma longa sucessão de casos isolados, pela falta de uma elite que se afirme como não-branca. Porto Alegre elegeu Alceu Collares em 1985 e São Paulo, Celso Pitta em 1996. Mas não houve, por exemplo, nenhum prefeito de capital eleito em outubro último com evidentes traços negros, ainda que o prefeito eleito de Manaus, Amazonino Mendes, goste de ser chamado de "negão". No horizonte político brasileiro, o negro com mais poder no país é o ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, sem pretensões eleitorais conhecidas.

Barack Obama nunca foi o representante de uma cota, era o único senador negro nos Estados Unidos e ganhou as eleições sem usar a carta racial. Mas há quase um consenso sobre a importância das políticas de ação afirmativa para globalizar, em sentido cultural e étnico, a elite americana. O que pode se questionar é o resultado concreto destas políticas na redução da desigualdade social.

No Brasil, onde o racismo é um crime e a igualdade civil entre indivíduos independentemente de origem e cor é uma garantia constitucional há muitas gerações, construiu-se um modelo que dá longevidade às diferenças. Segundo dados compilados pelo jornalista Vinicius Vieira, mestrando em estudos latino-americanos em Berkeley, nos Estados Unidos e autor do livro "Democracia racial, do discurso à realidade", em 2002, antes portanto de qualquer política de cotas, 13,9% da população branca conseguia chegar à universidade, ao passo que apenas 3,8% da população negra o fazia. O desnível é gritante, mais impressionante, no entanto, era as porcentagens reduzidas, mesmo entre os brancos.

É provável que uma política agressiva de cotas faça esta porcentagem se multiplicar e torne a elite política e econômica brasileira menos dissonante da composição da base do país. É uma estratégia que traz o risco de racializar as tensões sociais e que não garante, por si, uma sociedade mais aberta do ponto de vista de oportunidades. Crítico da política de cotas, Vieira lembra que nos Estados Unidos as ações afirmativas não alteraram o fato de que as minorias negras e latinas vivem nas áreas mais pobres, estudam nas piores escolas, lotam as cadeias e conseguem baixa renda na idade adulta. A vitória de Obama, vindo de Harvard e não de Harlem, é um triunfo de natureza pessoal, e não étnica, e um indício de que a elite americana começa a se tornar multirracial. Não altera o fato de que os Estados Unidos, depois de trinta anos de políticas afirmativas, seguem sendo um dos mais desiguais, se não o campeão da desigualdade, entre os países do Primeiro Mundo.

César Felício é repórter de Política. A titular da coluna, às quintas-feiras, Maria Inês Nassif, está em férias

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