Por Lucas Ferraz | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
"Não houve reação dos partidos às manifestações (...), nenhum partido pediu desculpas (...) Seria simbolismo grande", diz Álvaro Moisés
SÃO PAULO - As afirmativas e interpretações podem variar, mas 2013 é um ano que ainda não terminou no Brasil. E talvez nem termine tão cedo. Seus ecos foram sentidos nas últimas eleições presidenciais e municipais, no processo de impeachment que afastou Dilma Rousseff e ainda soam nestes dias em manifestações que pedem a realização de eleições diretas e a renúncia de Michel Temer, que balança na Presidência desde que as delações da JBS foram conhecidas, no mês passado.
Seja lá o que aconteça nos próximos dias, certo é que a fissura aberta no país desde junho de 2013 deve aumentar ainda mais, conforme tendência já registrada nas pesquisas de opinião. Com ou sem Temer, o Brasil parece caminhar para um período de instabilidade sem precedentes em sua história.
O mal-estar nacional medido pelas pesquisas junto a população em junho de 2013 aumentou consideravelmente desde então, após curto período de normalidade verificada durante o processo eleitoral que reconduziu Dilma ao Palácio do Planalto, em 2014. Mas como se viu, a euforia durou pouco tempo.
Além de um presidente impopular e igualmente suspeito de corrupção como toda a classe política alvejada pela Lava-Jato, soma-se ao caldeirão as insatisfações com as reformas trabalhistas e da Previdência em curso, vistas pela maioria da população como nocivas aos direitos dos trabalhadores, e o movimento recente do governo federal de trocar o comando do Ministério da Justiça, o que já foi lido pelos investigadores da operação como um contra-ataque à investigação - a pasta é responsável pela Polícia Federal, um dos braços da Lava-Jato.
"O país está numa situação sem chão, não existe mais nem a pinguela que Fernando Henrique Cardoso se referia para definir o governo Temer", afirma o jornalista Eugênio Bucci, autor do livro "A Forma Bruta dos Protestos: Das Manifestação de Junho de 2013 à Queda de Dilma Rousseff em 2016", publicado no ano passado e cuja conclusão faz um resumo das inquietações ainda em voga: "Os ônibus urbanos continuam caros e ruins. A máquina estatal continua paquidérmica, tanto em peso como em lentidão. Continua surda. Os hospitais públicos ainda são açougues. Há ladrões no governo, no Parlamento e nas confederações de futebol. A polícia continua matando. A velha política e os políticos velhos estão no poder. Pra completar o caldo, a mística primária dos rebeldes e a plástica primitiva dos fascistas andam em alta num Brasil polarizado, intolerante, impaciente. Uma faísca e...".
Os elementos de combustão, além dos já citados acima, encontram-se aos montes nos acontecimentos dos últimos dias ou meses:
• Greve de policiais no Espírito Santo, que quase se alastrou para outros Estados, resultando na quebra da ordem e na morte de centenas de pessoas;
• Aumento das chacinas no campo;
• Recurso à violência em manifestações como a vista em Brasília na semana passada, que levou à depredação de ministérios, e na resposta dada pelo governo, que baixou decreto colocando o Exército nas ruas;
• 14 milhões de desempregados;
• Além das graves suspeitas de corrupção contra Temer, viu-se também a derrocada de Aécio Neves, ex-presidente do PSDB e um dos principais aliados do presidente, que usou por muito tempo o combate à corrupção como bandeira política e eleitoral.
"Há condições objetivas para uma modificação radical da estrutura política do país, o problema é que não há meios para realizar essas transformações. O Estado e os partidos estão desvinculados da população, que continua bastante desiludida. Nem a inteligência propõe um caminho. Instituições não estão envolvidas no debate, na tentativa de apresentar algum rumo", afirma Roberto Romano, professor de ética e filosofia política da Unicamp.
Para Bucci, essa tensão "prenuncia algo mais ou menos explosivo". Nas chamadas jornadas de junho de 2013, os manifestantes se notabilizaram por ir às ruas sem depender de lideranças políticas ou organizações. O aumento da tarifa do transporte público serviu de estopim, mas os protestos tocaram em temas amplos, com críticas ao superfaturamento das obras da Copa do Mundo às restrições ao poder de investigação do Ministério Público Federal.
Nas manifestações de 2015 e 2016 o foco era a saída de Dilma e do PT do poder, não se tratava de manifestação contra o status quo, como em 2013.
Não são só as pesquisas de opinião que revelam como as jornadas de junho de 2013 acentuaram o pessimismo da população brasileira. A própria classe política não soube reagir aos eventos, segundo pesquisadores e cientistas políticos e sociais entrevistados pelo Valor, o que contribuiu para acirrar as divisões brasileiras e evidenciou a incapacidade dos políticos de atuarem como um intermediário diante do impasse.
Para Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, o sistema político defendeu-se daquelas manifestações de forma a polarizar o país ainda mais. Enquanto uma metade se arvorou no combate à corrupção (caso de grupos de centro-direita ligados ao PSDB), a outra parte optou pela defesa dos direitos sociais (grupos de centro-esquerda ligados ao PT).
"As pesquisas mostraram que essas foram as duas principais bandeiras reivindicatórias de junho de 2013, o tema da corrupção e a defesa de direitos como saúde, educação e transporte. Um lado do sistema político jogou contra o outro. Tirar o PT do poder era acabar com a corrupção, enquanto esse grupo defendeu a permanência em prol dos direitos sociais", afirma Ortellado.
Detectada nas pesquisas realizadas no primeiro semestre de 2014, essa polarização esteve presente na disputa eleitoral, no segundo semestre, e no processo de impeachment de Dilma, cujo desfecho se deu no ano passado. "O campo político se estruturou dessa forma, essa é a tragédia brasileira pós-2013. A sociedade ainda está rachada", diz Ortellado.
Quatro anos depois das jornadas de junho de 2013, os políticos e principais partidos ainda não sabem como se conectar com os descontentes, movimento que o cientista político José Álvaro Moisés definiu como "emergência de uma cidadania crítica", que surgiu nas redes a partir das manifestações de 2013 e que ganhou força nos episódios posteriores pelo impeachment e até nas mobilizações das últimas semanas que pedem o "Fora, Temer".
"Não houve nenhuma reação dos partidos às manifestações, ninguém soube como reconectar, até hoje não sabe. O exemplo é a corrupção presente em todo o sistema político: nenhum partido pediu desculpas. Não se trata de ingenuidade, isso é importante, seria de um simbolismo muito grande", afirma Moisés, que preside também o núcleo de pesquisa de políticas públicas da USP.
Segundo ele, o atual momento brasileiro não encontra paralelo em nenhum outro da história, sobretudo pelo uso massivo de ferramentas como as redes sociais, cujo poder de mobilização já se mostrou poderoso nas manifestações dos últimos nãos - Moisés pontua, contudo, que o nível do debate ali presente é extremamente pobre.
Por outro lado, é cada vez maior o fosso que separa o tempo do mundo político ao da sociedade brasileira, segundo pesquisas de opinião pública. Levantamento realizado pelo instituto Ipsos, intitulado Pulso Brasil, mostra indicador da confiança da população quanto aos rumos do país. Na série histórica realizada desde 2005, a aprovação positiva se manteve inalterada do segundo semestre de 2007 (início do segundo mandato de Lula) até maio de 2013 (quando Dilma já estava no Planalto).
No mês seguinte, com o início das manifestações, a maioria da população (58%) já desaprovava os rumos do Brasil. Houve uma leve melhora no fim de 2013 e nos meses da eleição presidencial, no ano seguinte. Ainda no fim de 2014, porém, o pessimismo voltou com tudo, atingindo o ápice de 94% de desaprovação durante o impeachment de Dilma, em maio do ano passado, índice que se manteve quase o mesmo em maio deste ano (93%).
"Os brasileiros estão mais insatisfeitos, mas as pessoas não estão mais mobilizadas como antes. Virou uma coisa vazia de coxinha versus mortadela, e não saiu mais disso", afirma Danilo Cersosimo, diretor da pesquisa. Ele ressalta que a queda de confiança na política tem correlação direta nos índices econômicos como os de consumo, que também é negativo. "A situação só piorou", diz.
O Datafolha captou a mesma tendência. Segundo o último levantamento, realizado em abril, dois terços da população afirmaram não ter nenhuma preferência partidária, índice que vem crescendo substancialmente desde as manifestações de 2013, segundo o diretor Mauro Paulino. "Junho de 2013 foi um divisor de águas para o desencanto e a rejeição à política tradicional", diz. Paulino lembra que na mesma pesquisa 34% dos entrevistados afirmaram sentir vergonha de ser brasileiro, um recorde nos levantamentos do instituto.
"À medida que o tempo passa, 2013 torna-se ainda mais importante. Há vários indicadores que mostram como aquele momento despertou um desencanto que só cresce desde então", afirma Paulino.
Exemplo é o último balanço do Latinobarómetro, estudo realizado na América Latina há 20 anos e que, no ano passado, mostrou que as crises econômicas, os casos de corrupção e a insatisfação com os serviços públicos na região levaram à redução do apoio à democracia em todos os 18 países pesquisados. O Brasil é justamente o que registra o maior pessimismo com o regime democrático, que recebeu o apoio de apenas 32% dos brasileiros, o pior índice desde 2001.
Com o desencanto e o "vazio institucional" existentes, o maior desafio continua a ser, segundo o professor Roberto Romano, como canalizar o descontentamento popular. Ele é pessimista: "Não temos lideranças nacionais. Há alguns anos tínhamos algumas dezenas, mesmo com todos os defeitos. Hoje, não mais".
Alguns conseguiram tomar muito bem o pulso da sociedade, como é o caso do prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), que ascendeu rapidamente na campanha eleitoral paulistana, no ano passado, calibrando seu discurso exatamente na antipolítica, um fenômeno global. O atual momento também pode levar a extremistas como a representada pelo deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), defensor da tortura e da ditadura militar, que já aparece nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência com 15% dos votos.
"Essa fissura é muito preocupante e representa um risco à democracia. Primeiro mostra que os partidos políticos fracassaram completamente. Há a tradicional desconfiança da população com as instituições e o vazio peculiar do momento, com um claro risco de desconexão institucional. É um momento de perplexidade, com uma ausência completa de perspectiva", afirma José Álvaro Moisés.
Sem uma resposta da política e sem líderes capazes de conduzir o processo, todos olham para as ruas. Os grupos de direita que ameaçaram convocar manifestações pela renúncia de Temer e depois recuaram vão protestar contra as ameaças à Lava-Jato? Outra dúvida é se esses grupos eventualmente marcharão ao lado dos de centro-esquerda que já organizam manifestações pelas eleições diretas e contra as reformas propostas pelo governo e que estão em trâmite no Congresso.
"Até quando a direita ficará recuada? Vem aí uma ação do governo contra a Lava-Jato e só a rua pode salvar a investigação', afirma Bucci. Ele lembra que os eleitores que votaram em Aécio Neves em 2014, que engrossaram as manifestações de 2015 e 2016 contra Dilma e o PT, ficaram sem representantes diante da derrocada do político, que se licenciou da presidência do PSDB e foi afastado do Senado por decisão do Supremo Tribunal Federal pelas suspeitas de corrupção. "Será que essa turma também vai mostrar a sua ira contra o governo Temer?", questiona.
Além dos ecos de 2013, o atual momento também tem um quê de 1984, diz Bucci, citando o ano em que o país iniciava a transição da ditadura para a democracia e quando ocorreram massivas manifestações por eleições diretas - o que acabou não ocorrendo, pois a proposta de emenda constitucional para instituir o pleito não foi aprovada num Congresso ainda controlado pelo regime militar.
"Duas respostas já foram postas para tentar ocupar esse vazio. Uma delas é a Diretas Já. Outra é a convocação de uma Constituinte, ideia que já começa a circular em círculos jurídicos e que também estava presente em 1984. O que fica claro é que há uma necessidade de zerar o país, de um restart", afirma. "Mas só uma eleição geral, como teremos no ano que vem, poderá pacificá-lo. A crise provavelmente se arrastará até 2018, não há solução para depois de amanhã."
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