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O descasamento entre as agendas econômica e social foi acentuado pela crise que eclodiu com as jornadas de junho de 2013.
O termo reforma do Estado tem tido um significado muito restrito no Brasil atual, expressando quase que exclusivamente preocupações fiscais e gerenciais. Inegavelmente é muito importante que o governo tenha contas públicas sadias e se organize de forma mais eficiente. Mas o processo reformista tem de abranger um leque maior de questões, trazendo à tona outros aspectos que precisam ser modernizados, como fizeram outros países desenvolvidos. No caso brasileiro, a falta de garantia de direitos básicos de grande parcela da população deveria levar a uma reorientação do debate sobre a modernização.
A necessidade de se ampliar o sentido do processo de modernização ficou mais evidente após uma série de acontecimentos divulgados nos últimos dias. Posseiros mortos pela polícia no Pará, a Prefeitura de São Paulo pedindo para fazer internações compulsórias de usuários de drogas, o crescimento dos homicídios e da violência em boa parte do país. O que unifica tais fatos é o desrespeito contínuo aos direitos humanos dos setores mais vulneráveis da sociedade. Os diversos níveis de governo não têm garantido aquilo que Thomas Hobbes, há séculos, considerava ser o sustentáculo do pacto social: o direito à vida.
Este cenário de barbárie, no entanto, tem preocupado menos a opinião pública do que a modernização econômica e o combate à corrupção, ambos relevantes, mas que não esgotam o núcleo duro do problema social brasileiro. Tal predominância se deve, basicamente, ao divórcio entre quem tem mais poder de influenciar a mídia e a agenda pública, de um lado, e aqueles deserdados dos direitos básicos, do outro.
Não há uma novidade nessa situação, uma vez que a história brasileira foi marcada por vários tipos de fosso entre as classes sociais. Assim foi na escravidão, no coronelismo, no udenismo de classe média que jogava mendigos no rio - no governo Lacerda na Guanabara - ou que obrigava retirantes a voltar forçadamente à sua terra natal, tal qual o janismo e seus seguidores fizeram. O autoritarismo do regime militar quis dar uma roupagem nova à "modernização conservadora", prometendo empregos e ascensão social derivados do milagre econômico. Mas a desigualdade permaneceu vergonhosa, gerando a "Belíndia" tão bem descrita por Edmar Bacha.
O legado elitista de exclusão social não será derrubado da noite para o dia, mas a redemocratização acendeu uma esperança de expandir direitos a todos os cidadãos brasileiros, reduzindo os fossos sociais. Os líderes políticos que derrubaram a ditadura e confeccionaram a Constituição de 1988 provinham de vários partidos e produziram um novo consenso: o Brasil precisaria construir um Estado de bem-estar social. Juntavam-se ali movimentos sociais, opositores históricos ao regime militar e membros de experiências subnacionais inovadoras. O resultado foi a Constituição Cidadã, liderada por Ulysses Guimarães.
O sentido desse projeto foi além do constitucional. Mesmo com os embates entre as várias forças que compunham o campo mais progressista, entre o início da década de 1980 e ao longo da década de 1990 foram gestados novos formatos de políticas públicas no plano subnacional.
De um lado, o governo Montoro, que inovou em questões como a descentralização, as ações no campo dos direitos humanos, os modelos participativos etc.. Também foi um terreno fértil para impulsionar lideranças políticas que foram essenciais na criação e desenvolvimento do PSDB. De outro lado, as experiências em prefeituras do PT espalhadas pelo Brasil afora, gerando o chamado modo petista de governar. A ampliação das políticas sociais, o Orçamento Participativo e outros formatos inovadores mexeram com a política tradicional e geraram a esperança de romper com o triste legado do país em termos de desigualdade e patrimonialismo.
A chegada ao governo federal dos dois grupos reformistas mais importantes desde a redemocratização, o PSDB e o PT, aumentou o embate entre eles. Gerou-se, inclusive, uma intepretação segundo a qual os tucanos optaram basicamente pelo reformismo econômico, ao passo que os petistas centraram seus esforços na área social. Tomada como uma dicotomia pura, essa visão está errada. Obviamente que há diferenças em termos de intensidade e visões de mundo, contudo, também existem muitas continuidades e congruências. As reformas econômicas e sociais perpassaram os governos FHC e Lula.
Depois da eclosão das jornadas de junho de 2013, o divórcio entre estas forças políticas não só se tornou uma guerra sem fim, como a agenda unificadora da continuidade foi sepultada. O descasamento entre as agendas modernizadoras econômica e social foi acentuado pela crise política, iniciada com a conturbada eleição de 2014, aprofundada com o processo de impeachment da presidente Dilma e transformada em impasse pela manutenção do moribundo governo Temer.
Por trás de toda essa anomia política estão as descobertas e conflitos gerados pela Operação Lava-Jato e adjacências. O resultado líquido disso é o esgotamento do sistema criado em 1993, no qual uma das duas forças partidárias modernizadoras comandava as reformas, tendo como âncora principal o PMDB, num processo marcado pela corrupção eleitoral.
Aqui estava outro campo de modernização do Estado brasileiro que foi jogado para debaixo do tapete: a transformação do jogo entre política, administração pública e financiamento privado de campanhas. A aposta em ter o PMDB como âncora desse jogo supunha ser capaz de usar instrumentalmente o pemedebismo para transformar o país. No final da história, PSDB e PT ficaram mais parecidos com o patrimonialismo que visavam combater. E o pior de tudo é que a maior parte do sistema político ainda é dominado por essas forças do atraso. A modificação dessa situação vai depender de uma agenda modernizadora que vai além da Operação Lava-Jato.
Em meio a essa crise do sistema político, aumenta a distância entre as propostas de modernização econômica e social do país. De um lado, o petismo e outras forças sociais ignoram a necessidade de se reformular o modelo administrativo do Estado. A ideia voluntarista de que o governo poderá fazer tudo que quiser para produzir desenvolvimento esconde os defeitos do período petista recente: a proteção ao corporativismo e às empresas campeãs nacionais afastou a esquerda de uma agenda verdadeiramente voltada ao combate da desigualdade social.
Sem ignorar os problemas de legitimidade do governo Temer, é preciso admitir que a oposição está adotando um discurso que se aproxima daquilo que o PT falava na campanha de 1989. E como disse recentemente Lula, se ele tivesse ganho a eleição seguindo aquela pauta, seu mandato teria sido um desastre. Reformas fiscais do Estado constituem condição sine qua non para garantir um governo reformista no campo social.
Do outro lado modernizador, temos hoje um PSDB apartado dos setores mais vulneráveis da sociedade brasileira. Ao entrarem no governo Temer, os tucanos estão apoiando, mesmo que por omissão, a pauta mais conservadora desde a Nova República. A política indigenista é contrária a todos os avanços pós-ditadura, incluídos aí as ações do presidente Fernando Henrique. Imagino o que diria a antropóloga Ruth Cardoso ao ver o silêncio ensurdecedor do tucanato em relação à destruição da Funai.
E não para por aí o retrocesso social. A política ambiental está sendo jogada no lixo, depois de duas décadas em que o Brasil teve até um papel de vanguarda na arena internacional. A defesa dos direitos humanos saiu do centro da agenda e discursos marcados por diversos preconceitos contra grupos vulneráveis ganham espaço no governismo.
O que a intelectualidade do PSDB, incluindo aí competentes economistas liberais e social-liberais, têm a dizer de uma visão cada vez mais reacionária no campo dos direitos que impera na gestão Temer? Os tucanos vão se casar com uma versão tupiniquim dos trumpismos que têm se espalhado pelo mundo? O PSDB paulista, enfim, foi conquistado pelo discurso malufista?
Obviamente que há vários e importantes quadros do PT e do PSDB que são essenciais para a modernização futura do país. Provavelmente eles devem estar preocupados com essa dissociação de agendas modernizadoras nos planos econômico e social, às quais se soma a necessidade de reformar o sistema político, expurgando dele o pemedebismo patrimonialista, cujos resultados levaram à destruição, nos últimos três anos, da confiança da população nos políticos. Entretanto, os principais líderes dos dois partidos, e mesmo as novas lideranças sociais que têm surgido, não têm conseguido entender o sentido amplo que a modernização deve ter no Brasil.
A esperança de romper com os modelos de transformação elitista do país está em risco. Os pobres da periferia, os negros mortos pela polícia, os índios e posseiros perseguidos por milícias locais, o meio ambiente destruído, toda esta agenda precisa ser casada com as propostas de reforma do Estado. Do contrário, manteremos o fosso social em nome da modernização. Que forças e lideranças políticas serão capazes de superar esse divórcio? Esta é a pergunta mais importante de hoje até as eleições de 2018.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP.
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