terça-feira, 2 de junho de 2020

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Rendimentos do trabalho nos EUA

- Valor Econômico

O avanço do trabalho em tempo parcial foi escoltado pela destruição dos postos mais qualificados na indústria

Em meio às dores e incertezas da pandemia, Anna Stansbury e Lawrence H. Summers escreveram um texto de 133 páginas para tratar da queda dos rendimentos do trabalho na economia americana desde os anos 80 do século passado.

Os autores atribuem o declínio do poder dos trabalhadores, nas últimas décadas, a três grandes mudanças. Vou poupar as aspas.

Em primeiro lugar, o ambiente político tornou-se menos favorável ao poder dos trabalhadores, reduzindo a sindicalização e consequentemente o poder de barganha dos sindicatos.

Em segundo lugar, as mudanças nas empresas: o aumento do poder dos acionistas pressionou as empresas para reduzir os custos trabalhistas, resultando em reduções salariais e precarização do trabalho à medida que as empresas, cada vez mais, terceirizam e subcontratam mão-de-obra.

Em terceiro, mudanças nas condições econômicas: a intensificação do progresso tecnológico e a concorrência de países com baixos salários aumentou o poder dos empregadores americanos.

Stansbury e Summers definem o poder dos trabalhadores como “a capacidade de aumentar os salários acima do nível que prevaleceria na ausência de tal poder de barganha. Trata-se da capacidade dos trabalhadores receberem uma participação nas rendas de monopólio geradas pelas empresas que operam em mercados imperfeitamente competitivos”.

Os autores admitem que “embora a globalização e a mudança tecnológica certamente tenham desempenhado algum papel no declínio do poder dos trabalhadores, as evidências sugerem que é pouco provável terem sido os fatores mais importantes nos EUA”.

O trabalho de Anna e Lawrence é um valioso esforço para comprovar o declínio dos rendimentos do trabalho na América. Suas bases teóricas estão ancoradas nos supostos de concorrência perfeita que concebem as remunerações de capital e trabalho encaixadas em uma função de produção (com progresso técnico neutro?). Essas condições garantem um justo estipêndio dos fatores de produção de acordo com as respectivas produtividades marginais, ou seja, conforme a contribuição que prestam à formação do produto total. A expressão “rendas de monopólio” considera que capitalistas e trabalhadores partilhavam o poder de monopólio para se apropriar dos rendimentos que excediam seus “direitos de apropriação” em concorrência perfeita.

Aprisionado em sua matriz estática, esse paradigma de “normalidade” compromete a possibilidade de se investigar as transformações do sistema capitalista. Desde os anos 1980 do século XX, o capitalismo viveu mudanças profundas que promoveram a concentração e centralização do capital, a aceleração do progresso técnico (poupador de mão-de-obra) e alterações na estratégia das empresas.

Em seu peculiar dinamismo, amparado em suas engrenagens tecnológicas e financeiras, o capitalismo contemporâneo promoveu e promove a aceleração do tempo e o encolhimento do espaço. Esses fenômenos gêmeos, podem ser observados na globalização, na financeirização e nos processos de produção da indústria 4.0.

A nova fase da digitalização da manufatura é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e melhorias na transferência de instruções digitais para o mundo físico, como a robótica avançada e impressoras 3-D.

Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a acelerar a produtividade social do trabalho e intensificar a rivalidade empresarial na busca do controle monopolista dos mercados. Os avanços da inteligência artificial, da internet das coisas e da nanotecnologia, das novidades do 5G, se associaram ao deslocamento espacial da grande empresa e acentuaram as assimetrias entre países, classes sociais e empresas.

A globalização financeira e a deslocalização produtiva são filhos diletos da estratégia competitiva da grande empresa comandada pela fúria inovadora e concentradora dos mercados financeiros. É uma ilusão imaginar que relações entre a economia real e a economia monetário-financeira são de oposição e exterioridade. São relações contraditórias, mas não opostas, inerentes à dinâmica do capitalismo em seu movimento de expansão, transformação e reprodução.

Aí estão inscritas a concentração e centralização do controle do capital monetário em instituições financeiras cada vez mais interdependentes que submetem a seu domínio a produção e a distribuição da renda e da riqueza. A pletora de ativos financeiros abrigada e concentrada nas redes de grandes e pequenas instituições apoderou-se da gestão empresarial, impondo práticas destinadas a aumentar a participação dos ativos financeiros na composição do patrimônio, inflar o valor desses ativos e conferir maior poder aos acionistas. A lógica da valorização dos estoques de riqueza financeira passou a comandar o movimento das “economias reais”.

Essas práticas financeiras associaram-se às inovações tecnológicas para ordenar as estratégias da grande empresa globalizada. Em seu movimento, detonaram um terremoto nos mercados de trabalho. A migração das empresas para as regiões onde prevalece uma relação mais favorável entre produtividade e salários abriu caminho para a diminuição do poder dos sindicatos e do número de sindicalizados.

O império do “valor do acionista” desatou surtos intensos de reengenharia administrativa e a flexibilização das relações de trabalho. O crescimento dos trabalhadores em tempo parcial e a título precário, sobretudo nos serviços, foi escoltado pela destruição dos postos de trabalho mais qualificados na indústria.

O inchaço do subemprego e da precarização endureceu as condições de vida do trabalhador. A evolução do regime do “precariato” constituiu relações de subordinação dos trabalhadores dos serviços, independentemente da qualificação, sob as práticas da flexibilidade do horário, que tornam o trabalhador permanentemente disponível.

Ex-secretário do Trabalho dos Estados Unidos, Robert Reich denunciou que próximos cinco anos, mais de 40% da força de trabalho americana estará submetida a um emprego precário.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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