terça-feira, 2 de junho de 2020

Marli Olmos - Os limites da tolerância e o respeito pelo outro

- Valor Econômico

Covid-19 coloca em xeque sociedades voltadas ao indivíduo

Desde o início da pandemia, grupos que apoiam o presidente Jair Bolsonaro em São Paulo habituaram-se a ocupar a avenida Paulista e arredores, nas tardes de sábado ou domingo, em manifestações com carros particulares. Estridentes e insistentes buzinadas transformaram-se na voz desse tipo de protesto.

No último fim de semana, porém, a mesma avenida Paulista foi o palco da reação de movimentos contrários ao governo. Torcidas organizadas, de fanáticos por futebol, tradicionalmente conhecidas por brigas nos estádios, fizeram as pazes para unir-se em defesa da democracia.

Nos últimos dias, cidades americanas viveram cenas de caos durante ondas de protestos pela morte de George Floyd, um homem negro, que não resistiu à brutalidade do policial branco, que ficou ajoelhado em seu pescoço durante oito minutos.

Embora as recentes reações populares nos Estados Unidos e no Brasil não sejam pelos mesmos motivos, ambas revelam como a tolerância da sociedade, em determinadas situações, começa a chegar ao limite, ainda mais num momento de nervos à flor da pele, diante do temor de novos surtos de vírus e colapso econômico.

Não foram poucas as vezes em que as carreatas na avenida Paulista bloquearam o acesso de ambulâncias ao Hospital das Clínicas. Esse desfile de carros na cidade com o maior número de mortes por covid-19 do país é uma forma de manifestar apoio a Bolsonaro, que se opõe às medidas de isolamento social.

Há poucos dias, mais uma manifestação de motoristas que usam a buzina do carro como ferramenta de protesto deixou na mesma avenida uma marca tão triste quanto revoltante.

Às 16h do dia 24, um domingo, policiais que estavam a serviço na região bateram continência no exato momento em que manifestantes que apoiam Bolsonaro passavam pela região.

Foi uma bela oportunidade para o grupo captar vídeos e exibi-los em redes sociais, dando falsamente a entender que o gesto de respeito dos soldados era uma homenagem aos manifestantes. Numa das imagens, alguns saem dos carros, batem palmas e gritam: “Viva a polícia; orgulho de São Paulo”.

Por coincidência ou não, a carreata passou pelos policiais no exato momento em que o corpo de Lucas Alexandre Leite, soldado da Polícia Militar, era enterrado no centro da cidade. Leite morreu aos 25 anos, depois de bater a viatura que guiava, na perseguição de um carro suspeito durante uma ronda.

A Polícia Militar emitiu uma nota, esclarecendo que “durante o sepultamento de Leite, os policiais do Segundo Batalhão, ao qual ele pertencia, “o honraram com continência individual e toque de silêncio”.

A essa altura, porém, uma onda gigante de disseminação de notícias falsas já havia invadido as redes sociais. O deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, foi um dos que compartilharam os vídeos. O que ele espalhou levava a legenda: “A Polícia Militar de São Paulo nunca decepciona, sempre dá o exemplo”.

A falsa interpretação da continência aos bolsonaristas transformou-se em mais um episódio da polêmica onda de “fake news”, que assola o país.

Em meio às mais diversas formas de exercitar a propagação de notícias falsas e de alguns grupos abusarem da tolerância alheia, estudiosos começam a chamar a atenção para padrões comportamentais que afloraram com a pandemia.

Em recente entrevista ao editor de Cultura, Robinson Borges, numa live do Valor, o filósofo Mario Sergio Cortella criticou as pessoas que, “usando a boa-fé dos tolerantes, são capazes de esmagar a tolerância no convívio social”. E citou uma frase do filósofo austro-britânico Karl Popper (1902-1994): “É preciso ser intolerante com os intolerantes”.

À pergunta de por que algumas pessoas preferem negar a pandemia, Cortella comentou sobre a dificuldade de cooperação e também sobre a necessidade de alguns de encontrar culpados para tudo - “algo bastante comum na história da Humanidade”. Foi o que aconteceu, por exemplo, nas campanhas de difamação contra a China, acusada de ter “criado o vírus” para dominar o mundo ou algo semelhante.

Respeito pelos outros
Mas existe, também, a esperança de que a pandemia possa despertar sentimentos positivos, como a necessidade do cuidado com o coletivo, o que poderia até levar a uma saudável transformação social.

Em recente entrevista ao Valor, o antropólogo Michel Alcoforado disse que manifestações como as carreatas barulhentas estão com os dias contados por tratar-se de um ato que ignora a causa coletiva. “Não há nada mais individual do que sair num protesto dentro de um carro particular”, disse. Para ele, o mundo para qual essas pessoas foram treinadas pode deixar de existir.

A covid-19, disse o antropólogo, serve para questionar sociedades que demasiadamente voltadas ao indivíduo. Para ele, ao contrário do modelo oriental, o sistema ocidental “foi dando tanto cartaz ao indivíduo que acabou transformando-o num problema para o próprio sistema”.

A modernidade fez surgir o indivíduo fechado e preocupado com suas ambições pessoais. Esse modelo social no qual um tenta ser melhor que o outro exige, diz o antropólogo, que você seja o melhor na profissão, o melhor aluno, o melhor empreendedor, o melhor marido, a melhor esposa, o melhor filho...

E, com isso, perde-se a ideia do coletivo, de fazer o que é bom para o mundo. Ou, como diz Alcoforado, deixar o “faço o que eu quero” para passar a fazer “aquilo que precisa ser feito”.

O médico Paulo Chapchap, diretor do Hospital Sírio-Libanês, costuma citar o uso das máscaras como símbolo de um novo olhar. Segundo ele, a dupla barreira que se cria quando duas pessoas que conversam usam essa proteção é uma demonstração de preocupação com o coletivo.

Infelizmente, muitos ainda circulam por aí com a máscara no pescoço ou pendurada na orelha. Talvez porque muita gente ainda não tenha percebido que a pandemia pode ter criado novos modelos de viver. Basta seguir uma simples regra sanitária de sobrevivência. Isso serve também para demonstrar respeito pelo outro.

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