Editoriais / Opiniões
PRF se tornou modelo de polícia do
bolsonarismo
O Globo
Corporação que deveria patrulhar estradas
vira protagonista de chacinas e investigações de caráter duvidoso
Na antológica reunião ministerial do dia 22
de abril de 2020, o presidente Jair Bolsonaro, ao seu jeito, reclamava que os
serviços de inteligência não lhe forneciam informações para proteger família e
amigos. Anunciou que faria mudanças. Desde então, houve denúncias de
interferência dele na Polícia Federal (PF) e de uso da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) em benefício de seus familiares. Mas foi na Polícia
Rodoviária Federal (PRF) que Bolsonaro e seus filhos
encontraram o braço policial e de inteligência com que sonhavam.
Uma reportagem da revista piauí narra em detalhes a progressiva transformação da PRF. De uma polícia dedicada ao patrulhamento de rodovias federais, ela se tornou uma corporação a serviço do bolsonarismo, cuja tropa de elite passou a investigar e combater crimes fora das estradas, com envolvimento em operações policiais e chacinas elogiadas nas redes sociais pelo clã Bolsonaro. É um assunto que, pela gravidade, precisa ser investigado pelo Congresso, pelo Ministério Público e demais autoridades competentes.
Assim que chegou ao Planalto, Bolsonaro
passou a tentar ampliar a atuação da PRF. Foi o ainda ministro da
Justiça, Sergio Moro,
quem baixou portaria a autorizando a atuar na segurança pública, na “prevenção
e no enfrentamento do crime”. A Associação dos Delegados da Polícia Federal
pediu ao Supremo a suspensão da medida, sob o argumento de que só uma lei
poderia alterar o escopo de atuação da PRF. Sem sucesso. O sucessor de Moro na
Justiça, André Mendonça, pressionado pela PF, anulou a portaria em janeiro de
2021. Deixou, porém, que os policiais rodoviários atuassem com outras polícias
no “apoio logístico”. O termo de sentido vago abriu a porta aos abusos.
O mais notável foi o massacre de duas
quadrilhas que planejavam uma onda de assaltos em Varginha, interior de Minas
Gerais, em outubro de 2021. O então comandante da PRF ligou para avisar a
Bolsonaro que 28 policiais rodoviários com o apoio de 22 PMs de Minas haviam
matado 26 homens que se preparavam para assaltar a agência do Banco do Brasil.
As evidências sugerem um massacre. Tão logo as mortes foram divulgadas, dois
filhos de Bolsonaro, o senador Flávio (PL-RJ) e o deputado Eduardo (PL-SP),
celebraram.
Sete meses depois da chacina de Varginha, a
PRF soube da reunião de uma organização criminosa fluminense, e 41 policiais
rodoviários de elite armaram uma emboscada a traficantes que se dirigiam ao
Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio. Na retaguarda estavam 40 policiais do
Bope. Foi a segunda ação mais letal na História do Rio, com 23 mortos, entre
eles uma moradora atingida por bala perdida.
Esses são apenas os exemplos mais graves na
atuação de uma corporação que, enquanto reduz a vigilância nos 75 mil
quilômetros de estradas federais, se revela a cada dia mais mortífera. Em 2019,
a PRF matou quatro pessoas. Em 2020, 16. Em 2021, 35. Neste ano, até junho
foram 38, inclusive um motociclista com problemas psiquiátricos, sufocado com
gás lacrimogêneo no porta-malas de uma viatura em Sergipe.
A PRF também tem, segundo a reportagem,
investido em tecnologia de investigação criminal, sistemas de escuta e
monitoramento de comunicações usados nem sempre com autorização judicial. Com a
capacidade de intrusão e maior letalidade, a PRF vem se tornando aos poucos o
modelo de polícia do bolsonarismo.
Liberalismo é principal alvo da agressão
russa à Ucrânia
O Globo
Conflito opõe democracias liberais ao
‘iliberalismo’ de Putin — valores antagônicos que definirão nosso futuro
Como em todas as guerras, princípios e
valores estão em jogo na invasão da Ucrânia. De um
lado, a Rússia de
Vladimir Putin repetindo os mesmos devaneios imperialistas da Rússia czarista e
da União Soviética. De outro, a Ucrânia de Volodomyr Zelensky, invadida por
querer compartilhar com a União Europeia (UE) valores democráticos liberais, no
momento em que a velha ordem mundial do Pós-Guerra se desintegra e surgem
autocratas em busca de espaço.
O maior exemplo — e uma espécie de pioneiro
— desses autocratas é Putin, já há quase 23 anos no poder. O ex-agente apagado
da KGB soviética na Alemanha Oriental consolidou a doutrina que os cientistas
políticos têm chamado de “iliberalismo” — regime em que, embora haja eleições
periódicas, as instituições democráticas são solapadas para dobrar-se aos
interesses do homem forte que governa, com restrições às liberdades de
expressão, pensamento, comportamento etc. Da Venezuela à Hungria,
de El Salvador à
Polônia, os passos dos autocratas repetem o roteiro criado e executado primeiro
por Putin.
Do outro lado da guerra, as democracias
liberais do Ocidente, sobretudo os Estados Unidos sob o governo de Joe Biden,
têm fornecido o apoio financeiro e militar sem o qual Zelensky não teria
conseguido suas importantes vitórias militares nos últimos dias.
A motivação do conflito na Ucrânia tem sido
comparada com frequência à da Segunda Guerra, quando o Ocidente também se uniu
contra o nazifascismo de Hitler, Mussolini e seus aliados japoneses. “Os
nazistas e o Império do Japão também acreditavam que os Estados Unidos estavam
fracos devido à decadência do capitalismo e à diversidade racial”, escreveu em
artigo recente o economista americano Noah Smith. O choque entre o liberalismo
tradicional e esse novo “iliberalismo” tende, segundo ele, a ocupar o espaço deixado
vago pelo fim da dicotomia entre comunismo e capitalismo que alimentou a Guerra
Fria durante décadas.
A extrema direita apoia Putin. O
primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que usou o termo “iliberal” para
definir o arremedo de democracia em seu país, recusou o pedido de Zelensky para
não comprar petróleo e gás russos. Também impediu que armas enviadas à Ucrânia
por europeus e americanos passassem por território húngaro. No mesmo contexto
está a visita descabida do presidente Jair Bolsonaro a Putin pouco antes da
invasão. No Kremlin, Bolsonaro prestou sua “solidariedade” ao autocrata, embora
seu apoio não tenha se refletido na postura do Itamaraty em organismos
internacionais.
A garantia contra agressores como Putin é a união de países para se defenderem juntos. É o que acontece na Ucrânia, com a feliz coincidência de os Estados Unidos aproveitarem a chance para dar um recado direto à Rússia e indireto à China. Se a defesa da Ucrânia for bem-sucedida, segundo Smith, os projetos expansionistas imperiais sofrerão um forte baque, enquanto o mundo busca uma nova ordem. Que ela preserve o liberalismo.
Respiro econômico
Folha de S. Paulo
Atividade e emprego ainda melhoram no país,
embora cenário de 2023 seja incerto
Em meio às várias tempestades globais, que
incluem guerra, escassez de matérias-primas e risco de recessão, a economia
brasileira respira. Com atividade em alta, queda do desemprego e incipiente
acomodação da inflação, os resultados deste ano são positivos.
Depois da alta de 1,2%
do Produto Interno Bruto no segundo trimestre, os indicadores
preliminares de julho e agosto sugerem continuidade. O IBC-Br, índice do Banco
Central que consolida o desempenho de indústria, serviços e agropecuária, subiu
1,2% em julho, um bom começo para o terceiro trimestre.
A demanda nos serviços permanece firme, com
expansão de 1,1% em julho nas vendas, enquanto prossegue a retomada de atividades
prejudicadas pela pandemia. Tal dinamismo compensa a queda das vendas no
varejo, que caíram em julho pela terceira vez seguida.
Na indústria, os números têm sido modestos,
mas favoráveis. O mesmo vale para a agropecuária, mas neste caso os prognósticos
são alvissareiros para a próxima safra. Com preços em escalada, de todo modo, a
renda do agronegócio vem batendo recordes.
A retomada recente se observa na criação de
empregos, que reduziu a taxa de desocupação para 9,1% no trimestre encerrado em
julho, a menor desde 2014. Embora o rendimento médio ajustado pela inflação
ainda esteja próximo do piso da série histórica, a massa salarial cresceu 6,1%
ante o mesmo período do ano passado.
Ao que parece, o crescimento
do PIB deve se aproximar de 3% neste ano. Ao mesmo tempo, a
inflação recua, em razão principalmente dos cortes nos impostos sobre
combustíveis. As projeções para o IPCA deste ano se reduziram de quase 9%, em
julho, para 6,4%. Note-se, porém, que setores como os serviços ainda estão
pressionados.
As boas notícias motivaram o ministro da
Economia, Paulo Guedes, a entrar mais
diretamente na campanha pela reeleição de Jair Bolsonaro (PL)
—o que decerto não favorece a credibilidade da gestão.
O ânimo de Guedes pode se revelar
prematuro. Para 2023, a expectativa é de desaceleração da atividade para apenas
0,5%, segundo as estimativas mais recentes.
As causas seriam a perspectiva de uma
recessão global, os efeitos crescentes da política monetária restritiva no
próximo ano, o esgotamento dos impactos da reabertura nos serviços e alguma
contenção de gastos públicos, como costuma ocorrer no início de um novo ciclo
presidencial.
Entre esses fatores, apenas os juros altos
são uma certeza. No que está sob controle do governo, o cenário dependerá
especialmente da difícil definição do Orçamento de 2023 e das regras fiscais
que valerão para os próximos anos.
Hungria autocrática
Folha de S. Paulo
País não é considerado democracia plena
pela UE; embate com Orbán está no início
Na quinta-feira (15), o Parlamento Europeu
em Bruxelas, na Bélgica, classificou o governo do nacionalista ultraconservador
Viktor Orbán —um aliado de Jair Bolsonaro (PL)— de "autocracia
eleitoral".
O termo é empregado para definir regimes
que, mesmo mantendo ritos da democracia, como eleições periódicas, concentram
poder desproporcional no governante. Autocratas tipicamente atacam as
instituições e esvaziam a possibilidade de alternância.
Essa tem sido a história recente da
Hungria, que aderiu à União Europeia em 2004. Desde 2010, quando Orbán ascendeu
ao poder pela segunda vez, sendo reeleito desde então, o país tem entrado em
choque com as normas do bloco continental em várias frentes.
Entre elas listam-se concentração da mídia,
deterioração do Estado de Direito e ataques a direitos de migrantes e
refugiados, pessoas LGBTQIA+ e mulheres.
Em abril, o Fidesz, partido de Orbán,
conquistou 135 das 199 cadeiras no Parlamento, em eleição vista como pouco
equilibrada por observadores internacionais.
Estão em jogo bilhões de euros destinados a
Budapeste no Orçamento compartilhado de €1,1 trilhão do bloco europeu para
2021-27. As regras da UE condicionam o acesso aos fundos de recuperação
pós-pandemia ao respeito interno a princípios do Estado de Direito.
A resolução do Parlamento Europeu deste mês
e uma decisão judicial da mais alta corte do bloco em fevereiro servem de apoio
político e jurídico para que a Comissão Europeia, o Poder Executivo da UE, leve
a cabo um longo processo de embate com Orbán.
Embora seja uma medida extrema, o corte de
recursos talvez seja a única solução para deter a erosão da democracia húngara.
Vale lembrar que mesmo diante de ameaças por parte da UE, o projeto autocrata
continua a todo vapor.
Apenas neste ano, há exemplos diversos. O
líder iliberal deu início à fusão dos três maiores bancos no país, controlados
por seus aliados, logo após a vitória eleitoral de abril. Em julho, criticou
países abertos a acolher imigrantes e "misturar populações".
Poucos dias atrás, o governo húngaro
decretou que grávidas serão obrigadas a escutar as batidas do coração do feto
caso decidam submeter-se a um aborto.
Não são atitudes de quem mostra alguma disposição ao diálogo e à moderação. A missão civilizatória da UE está diante de um desafio.
Ministério não é panaceia
O Estado de S. Paulo
Vença Lula ou Bolsonaro, crescerá o número de Ministérios. Mas isso de nada serve ao País se o governo não for capaz de formular boas políticas norteado pelos interesses da sociedade
O petista Lula da Silva e o presidente Jair
Bolsonaro parecem concordar que há uma solução mágica para todos os problemas
do País: a criação de Ministérios. O demiurgo de Garanhuns, até o momento,
prometeu criar nada menos do que dez pastas. O incumbente, mais quatro.
A desfaçatez de Bolsonaro chega a ser ainda
mais evidente: afinal, ele foi eleito em 2018 prometendo formar um governo
“enxuto”, com apenas 15 Ministérios, o suficiente, em suas palavras, para
representar “os interesses da população, e não dos partidos políticos”. Pois
Bolsonaro não só criou mais oito pastas durante o mandato, como agora promete
criar outras quatro, caso seja reconduzido ao cargo.
Se Lula for eleito, seu governo poderá ser
composto por 32 Ministérios a partir de 2023 – 9 a mais do que a atual
configuração da Esplanada. Isso inclui o desmembramento de pastas que já
existem, como os Ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da
Economia e da Justiça e da Segurança Pública, além da recriação de outras, como
o Ministério da Pesca, da Cultura e do Planejamento. Lula prometeu ainda a
criação de um Ministério dos Povos Originários. “Se a gente criou o Ministério
da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e o da Pesca, por que a gente não
pode criar um Ministério para tratar das questões indígenas?”, disse o petista
durante um comício em Brasília.
Já Bolsonaro pretende recriar os
Ministérios da Pesca, hoje vinculado ao Ministério da Agricultura; do Esporte,
vinculado à pasta da Cidadania; da Indústria e Comércio, hoje sob a alçada do
Ministério da Economia; e da Segurança Pública, que desde o governo de Michel
Temer compõe o Ministério da Justiça.
É inegável que há um forte simbolismo na
criação de um Ministério. É uma sinalização inequívoca para a sociedade de que
a área abarcada pela pasta é considerada prioritária para o governo que a
criou. A questão é que símbolos não resolvem problemas. Políticas públicas bem
concebidas e executadas, sim.
Um governo pode ter 40 Ministérios e não
cuidar bem das questões mais prementes para a população. Pode ter poucas pastas
e também não solucioná-las. O ponto principal, portanto, não é o número de
Ministérios. Cada governo organiza sua estrutura administrativa da forma que
julgar mais conveniente. Fundamental é haver disposição genuína para governar
tendo os interesses de todos os segmentos da sociedade como norte indesviável.
A história recente do País está cheia de
exemplos de Ministérios que foram criados apenas para acomodar interesses
políticos, no melhor cenário, ou abrigar apaniguados do governante de turno
para fins de corrupção, no pior. Há até uma expressão para essa forma descarada
de patrimonialismo: a entrega do Ministério com “porteira fechada”, ou seja, o
“donatário” de uma parte da administração pública tem liberdade para fazer o
que bem entender, nem sempre dentro da lei.
O regime presidencialista, combinado com um
quadro multipartidário, implica uma divisão do poder político que se reflete na
configuração da estrutura do Poder Executivo. Em tese, nada há de ruim nisso. O
que é inaceitável é governar por força do pensamento mágico, como se a mera
criação de Ministérios fosse, por si só, a solução para os problemas do País.
Ou, pior, conceber Ministérios para comprar apoio político e, dessa forma,
evitar a eventual responsabilização do mau governante. Sejam muitos ou poucos,
os Ministérios devem organizar a administração de forma a bem servir a
sociedade.
O problema é que tanto Lula como Bolsonaro,
a menos de 20 dias da eleição, ainda não deixaram claro quais são seus planos concretos
de governo, razão pela qual não se sabe qual será a serventia dos prometidos
novos Ministérios, caso saiam do papel. Certamente há muitos eleitores crentes
de que a batelada de Ministérios de Lula e Bolsonaro estará a serviço de um
projeto sólido de País. Mas não se pode condenar os eleitores que suspeitam de
que se trata de mais um festival de voluntarismo populista, e que, passado o
entusiasmo da criação dos Ministérios, seja o da Pesca, seja o dos Povos
Originários, os nobres propósitos darão lugar aos interesses privados dos que
apoiam o governo em troca de benesses. Para isso, nem mesmo um Ministério do
Espírito Público daria jeito.
O abismo que a pandemia aprofundou
O Estado de S. Paulo
Impactos da covid-19 reforçaram desigualdades regionais. Para governadores em busca de diagnóstico sobre problemas de seus Estados, ranking de competitividade é leitura obrigatória
Passados mais de dois anos desde sua
eclosão, a covid-19 continua a causar impactos econômicos e sociais em todo o
mundo, mas fica cada vez mais claro que o grau de desenvolvimento prévio de
cada país foi muitas vezes determinante para o sucesso ou fracasso da
estratégia de enfrentamento da pandemia. Há exceções, mas essa é uma conclusão
válida para a maioria das nações, inclusive o Brasil. Internamente, regiões
menos desenvolvidas também sofreram mais. É o que mostra o ranking anual de
competitividade organizado pelo Centro de Liderança Pública (CLP) e pela
Tendências Consultoria Integrada, que chega à sua 11.ª edição. Em 2022, os 11
Estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste conquistaram as primeiras posições,
enquanto os 16 do Norte e Nordeste ficaram com as últimas. Ainda que esse seja
um padrão que se repete em todas as edições do levantamento, sempre havia uma
exceção a confirmar a regra e ao menos um Estado do Norte ou do Nordeste bem
posicionado entre os primeiros 11 colocados. Não mais. Como bem definiu o
diretor executivo do CLP, Tadeu Barros, o pós-pandemia reforçou as históricas
desigualdades regionais e as diferenças entre os dois “Brasis”.
A intenção do ranking não é apontar
culpados, mas oferecer um diagnóstico claro sobre o estágio dos problemas com
base em dados e informações públicas. A partir dele, é possível avaliar quais
áreas merecem ações urgentes e articular políticas públicas com vistas a
objetivos mais amplos, como o desenvolvimento econômico, a atração de
investimentos e o aumento da qualidade de vida da população. É, portanto,
leitura obrigatória para os governadores que forem eleitos em outubro.
Para cada Estado, o levantamento reuniu 86
indicadores nas áreas de educação, infraestrutura, sustentabilidade ambiental e
social, segurança pública, inovação, eficiência da máquina pública, capital
humano e potencial de mercado. A exemplo das edições anteriores, São Paulo
continua a liderar o ranking geral – embora também esteja em uma situação pior
do que aquela que apresentava antes da pandemia. Sem surpresas, o Estado foi o
primeiro colocado em infraestrutura e educação e o segundo mais bem posicionado
em sustentabilidade e inovação. Santa Catarina continuou em segundo lugar,
seguida por Paraná e Distrito Federal, que apenas trocaram de posição de um ano
para o outro. Houve mais mobilidade entre os últimos colocados. Em 2021, Pará,
Acre e Roraima haviam ficado com as três piores posições. Neste ano, foram
substituídos por Piauí, Maranhão e Amapá.
O ranking permite que se chegue a algumas
conclusões, especialmente sobre estratégias que não têm dado certo no
enfrentamento das desigualdades. Seus resultados reforçam, por exemplo, a
necessidade de fortalecimento do pacto federativo e da aprovação de uma reforma
tributária que dê fim à fratricida guerra fiscal. A atuação paroquial do
Congresso tampouco tem contribuído. Nos últimos anos, as emendas de relator,
base do orçamento secreto, privilegiaram justamente os Estados que estão hoje
nas piores posições do ranking. Resgatar o papel da União na articulação de
políticas públicas com Estados e municípios é essencial para garantir o
enfrentamento efetivo de gargalos históricos.
Nem tudo, porém, são notícias ruins.
Roraima saiu da 27.ª posição para a 22.ª em apenas um ano, com expressivo
avanço em políticas para emissões de gases e destinação de lixo, rede de fibra
óptica, custo da energia e dos combustíveis. O Rio de Janeiro, por sua vez,
saiu da 17.ª posição para a 11.ª, um desempenho puxado por melhorias relativas
em indicadores como eficiência do Judiciário, oferta de serviços públicos
digitais, equilíbrio de gênero no emprego público estadual e redução de presos
sem condenação. Nem Roraima nem Rio de Janeiro estão no terço superior do
ranking, mas isso não é motivo para desprezar seus resultados. Eles provam não
haver terra arrasada, mas muitas oportunidades de melhoria rápida quando os
Estados trabalham na busca de soluções e do desenvolvimento de suas
potencialidades.
Investimento chinês retorna ao País
O Estado de S. Paulo
Brasil foi o principal destino dos investimentos chineses em 2021; o volume voltou aos níveis de antes da pandemia
Ao destinar, no ano passado, o maior volume
de investimentos para o Brasil desde 2017, os responsáveis pela expansão das
atividades das empresas chinesas no exterior demonstraram, mais uma vez, que
não se deixam impressionar por gestos de desdém ou desprezo de autoridades
brasileiras. Em 2021, as empresas chinesas investiram R$ 5,9 bilhões no Brasil,
valor 208% maior do que o registrado no ano anterior, de acordo com relatório do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).
É um claro sinal de confiança na economia
brasileira. Os investimentos no Brasil responderam por 13,6% de tudo o que a
China aplicou no exterior no ano passado. O País foi, assim, o principal
destino desses recursos em 2021.
Dados como esses devem desagradar ao atual
governo brasileiro. Há pouco, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que
“não queremos a ‘chinesada’ entrando aqui, quebrando nossas fábricas”. Na
verdade, o problema da indústria brasileira não é a entrada de investimentos
externos, chineses ou de outra procedência, que estimulam a produção e a
modernização do setor manufatureiro nacional. O que tem prejudicado a indústria
brasileira é sua contínua perda de competitividade em razão do crescente atraso
tecnológico em relação a outros países e a falta de articulação entre as ações
do governo e as iniciativas das empresas privadas.
O crescimento expressivo do ingresso de
investimentos chineses no ano passado se deve à base de comparação muito baixa
(a pandemia comprimiu a atividade econômica em todo o mundo em 2020), mas o
valor alcançado é bastante próximo dos níveis observados antes da pandemia. Em
2019, por exemplo, o País recebeu US$ 5,6 bilhões. É como se o padrão estivesse
sendo restabelecido.
O fato de o valor aplicado no Brasil em
2021 representar mais de 10% de tudo o que a China investiu no exterior no
passado, porém, mostra que o País mereceu atenção especial dos dirigentes
chineses. No ano passado, os aportes da China no mundo cresceram apenas 3,6%, o
que mostra a importância do Brasil nos planos internacionais dos chineses. Os
investimentos da China nos Estados Unidos e na Austrália, por exemplo, foram
fortemente reduzidos no ano passado.
Em valores, o setor de petróleo absorveu
85% do total aportado pelos chineses no Brasil, superando o setor elétrico, que
vinha sendo a aplicação predominante. Em número de projetos, porém, o setor
elétrico continua liderando a recepção de capitais chineses, com 46% do total.
O setor de tecnologia da informação ficou em segundo lugar quanto ao número de
projetos.
Em valores, o estoque de investimentos chineses no Brasil, no período entre 2007 e 2021, é liderado pelo setor de eletricidade, que absorveu 45,5% do total, seguido pelo setor de extração de petróleo e gás, com 30,9%. Quanto à indústria manufatureira, o investimento chinês está longe de ter alcançado volume suficiente para “quebrar nossas fábricas”, como parece temer o ministro da Economia. Os investimentos chineses nesse setor representam 5,5% do volume aplicado nos últimos anos.
País não pode dar argumentos ao
protecionismo europeu
Valor Econômico
O desmatamento acumulado na Amazônia já
alcançou quase 8 mil km2 em apenas oito meses de 2022, o maior registro dos
últimos 15 anos
A nova regulamentação da União Europeia
para produtos “livres de desmatamento”, que tem o potencial de atingir até 80%
das exportações agrícolas do Brasil para o bloco, serve como uma pequena aula
sobre a fragilidade do sistema multilateral de comércio e as consequências do
abandono de políticas ambientais na gestão Jair Bolsonaro.
Na semana passada, o Parlamento Europeu
aprovou novas regras que vedam a compra de produtos vindos de áreas de
desmatamento. Houve significativa ampliação em relação à minuta discutida desde
o fim do ano passado. A lista original contemplava carne bovina, soja, café,
cacau, óleo de palma e madeira. Foi estendida para carne de frango e suína,
ovinos e caprinos, milho, borracha, carvão vegetal e papel. O texto com a
proibição ainda precisa percorrer alguns passos antes de entrar em vigência,
mas terá prioridade da presidência tcheca na UE e deverá estar pronto até a
CoP-27, em novembro, segundo a consultoria BMJ relatou em boletim a clientes,
com base em conversas com interlocutores europeus.
Não bastasse toda a polêmica conceitual,
surgem diversos pontos controversos no detalhamento da regulamentação. Um deles
é o estabelecimento de uma poligonal para a geolocalização da produção, com
latitude e longitude, em que qualquer produto vindo de área classificada como
de desmatamento ou degradação ambiental terá entrada na UE barrada. Outro é a definição
de que florestas plantadas após 31 de dezembro de 2019 equivalem a regiões
desmatadas, pois o uso original do solo foi modificado - não fica claro, por
exemplo, como seria o tratamento dado à madeira extraída de áreas com essa
finalidade. O uso indireto de produtos associados ao desmatamento também faz
parte da normativa. Ou seja, se uma ave ou porco for alimentado com grãos
oriundos de zona devastada, a produção será enquadrada como promotora da
degradação ambiental.
De que forma essas regras serão aplicadas é
mais uma fonte de incertezas. No mínimo, aumentará o custo dos exportadores com
trâmites burocráticos para comprovar que essas exigências estão sendo
cumpridas. A insegurança das operações - com o risco de novas barreiras
aleatórias - crescerá. Na pior das hipóteses, vendas à UE serão frustradas.
Unilateralista, o novo regramento europeu é
mais um golpe ao sistema internacional de comércio, espancado pelo governo
Donald Trump com a adoção de medidas restritivas contra produtos chineses. A
Organização Mundial do Comércio (OMC), fundada em 1995 após oito rodadas
bem-sucedidas de liberalização, foi esvaziada como arena para negociações de
novos acordos. Ela sequer tem funcionado, diante da falta de juízes em seu
órgão de apelações, como instância para dirimir contenciosos. A ação da UE
reforça o sentimento que a agenda multilateral está enfraquecida, e sem sinais
de reversão.
Isso posto, há que se reconhecer como o
próprio Brasil tem alimentado sua imagem de vilão ambiental. De acordo com
dados do Imazon, o desmatamento acumulado na Amazônia já alcançou quase 8 mil
km2 em apenas oito meses de 2022, o maior registro dos últimos 15 anos. Somente
em agosto foi derrubada uma quantidade de mata nativa equivalente a quatro
vezes a área de Belo Horizonte. Além de ameaças à preservação da floresta
amazônica, em sua riqueza e biodiversidade originais, o descaso põe em xeque o
modo de vida dos povos indígenas. A sequência de maus resultados no combate ao
desmatamento, a desidratação do Ibama e do ICMBio, o discurso de tolerância com
o garimpo ilegal, o abandono de parcerias de sucesso - como o Fundo Amazônia -
minam a confiança da comunidade internacional no país. Em suma: o Brasil pode
ter toda a razão nos protestos contra o protecionismo da UE, mas o governo Bolsonaro
entrega de bandeja, aos protecionistas, os argumentos para que se fechem as
portas para produtos brasileiros.
Da mesma forma, o histórico acordo de livre
comércio fechado em 2019 entre o Mercosul e a UE encontra-se parado desde
então, sem a menor evidência de que será assinado e ratificado por Bruxelas.
Mais uma vez, é justo pensar que o lobby anti-abertura de países como França e
Irlanda joga contra a implementação do tratado, mas essa postura é facilmente
amplificada pela inexistência de argumentos convincentes de que o Brasil está
empenhado em mudar a curva assustadora do desmatamento. Cabe à ala mais moderna
do agronegócio, como grande interessada, pressionar o governo - seja ele qual
for - por firmeza e prioridade na preservação da floresta amazônica. As
consequências do descaso já chegaram, e serão sentidas em dólares.
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